Livros
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Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro

“Como organizar a sua biblioteca”, diferentemente do que seu título indica, em nada lembra um guia de arrumação à la Marie Kondo. A última obra do ensaísta e editor Roberto Calasso, que chega agora ao Brasil, explora a ordenação de livros como um tema metafísico. “De fato, poderia oferecer uma boa oportunidade para indagar uma questão capital: o que é a ordem”, escreve o autor italiano, morto em 2021. “Uma ordem perfeita é impossível, simplesmente porque existe a entropia. Mas não se vive sem ordem. Com os livros, como também para as outras coisas, é preciso encontrar uma via entre essas duas frases.”

Para Calasso, organizar livros é um eterno work in progress, um problema sem solução. Se a descoberta de uma biblioteca nova nos dá a impressão de entrar em uma floresta, como aliás já comparou o bibliófilo Alberto Manguel, é porque ambas funcionam como um organismo plural e complexo, em “perene movimento”. Suas aparentes desordens criam uma ordem toda própria, a qual ainda não fomos apresentados. Não por acaso, o escritor italiano tem tanto apreço pela política de boa vizinhança nas estantes, uma disposição aberta ao acaso e à serendipidade. “(...) na biblioteca perfeita, quando se vai em busca de um livro, acaba-se pegando um que está ao seu lado e que se revela ainda mais útil do que aquele que estávamos procurando”, escreve.

Flertando com o caos, Calasso propõe todas as técnicas de organização — e nenhuma delas. A ordem pode ser “geológica (por camadas sucessivas), histórica (por fases, caprichos), funcional (ligada ao uso cotidiano num determinado momento), maquinal (alfabética, linguística, temática)”. Recursos que funcionam muito bem em algumas áreas podem ser desastrosos em outras. O importante, afinal, é fugir de um critério único e monolítico.

Na contramão do exibicionismo atual, em que bibliotecas alheias ganham destaque em lives e reuniões por videoconferência, Calasso defende a circunspeção. Ele tinha o hábito de esconder seus livros por trás de pergaminhos — um tipo de papel de seda usado por antiquários franceses. “O pergaminho deixa muito mais difícil, para um ocasional visitante, identificar os títulos dos livros. E isso freia qualquer excesso de intimidade”, justifica o autor.

Visíveis ou invisíveis, não há dúvidas de que a maneira de organizar os livros diz muito sobre os donos deles. Bibliotecas são extensões de nós mesmos, de nossas histórias de vida, da nossa relação com o tempo e com o espaço. Seguindo a linha metafísica de Calasso, publicamos aqui quatro perfis de bibliotecas pessoais com trajetórias muito diversas, da mais antiga à mais jovem, da mais utilitária à mais afetiva, da repleta de obras raras e centenárias a uma construída após uma infância sem livros.

Todas desiguais e perfeitas, à sua maneira.

‘Como organizar uma biblioteca’. Autor: Roberto Calasso. Tradução: Patricia Peterle. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 144. Preço: R$ 64,90.

Ruy Castro, jornalista e escritor: espirro contra fungos

O escritor e jornalista Ruy castro — Foto: Brenno Carvalho
O escritor e jornalista Ruy castro — Foto: Brenno Carvalho

Há 55 anos, Ruy Castro descobria pela primeira vez o desafio de montar uma biblioteca. Ele tinha 10 anos e ganhou de seu pai uma prateleira para acomodar os Sherlocks, Tarzans e Arséne Lupins que lia sem parar. Repleta de clássicos como “Os Três Mosqueteiros” e “A Ilha do Tesouro”, sua coleção precoce já somava cem títulos.

— Todos se perderam no tempo, claro, mas, de uns 30 anos para cá, de tanto encontrar em sebos exemplares iguaizinhos aos que tinha, consegui reconstituir quase toda a biblioteca de infância. Achei até as mesmas edições dos gibis, Mandrake, Capitão Marvel, Álbum Gigante, muitos mais.

Hoje, Ruy tem 11 estantes e diversos outros depósitos não-certificados de seus livros (banheiro, cozinha etc.). O escritor gosta de organizar sua coleção por autores e ordem alfabética. Outro critério é a afinidade: a literatura vai nas prateleiras de literatura, brasileira na de brasileiros, e por aí vai.

—Às vezes, um livro é muito alto, não cabe em pé. Sou obrigado a achar uma prateleira em que ele caiba e isso bagunça minha organização.

Para Ruy, “toda biblioteca que se preze é um pouco bagunçada”. O imortal da Academia Brasileira de Letras, aliás, torce para que não exista uma biblioteca perfeita — e, se existisse, não seria a dele:

— Você tira um livro da estante para consultar e nem sempre tem tempo para botar de volta. Ou precisa ter uma pilha deles ao seu lado no computador. Uma biblioteca muito certinha só serve para ser mostrada às visitas.

Sua relação com os livros também mudou — com o tempo, ela ficou baseada menos no lado afetivo e mais no profissional. Compreensível, já que os livros são o principal acessório de trabalho do conhecido autor de biografias. Mas há uma exceção recente que une os dois lados. É a coleção de literatura carioca dos anos 20, que acumulou ao fazer “Metrópole à beira-mar”, sobre o Rio dos anos 1920. São primeiras edições de obras de João do Rio, Gilka Machado, Benjamim Costallat e muitos outros:

— Como são livros centenários e cheio de fungos, às vezes me perguntam se uso máscara para lê-los. Digo que não, que uso o espirro. Os fungos saem voando.

Pedro e Bia Corrêa do Lago: acervo conjugal

Pedro e Bia Corrêa do Lago em sua biblioteca — Foto: Domingos Peixoto
Pedro e Bia Corrêa do Lago em sua biblioteca — Foto: Domingos Peixoto

O casal Pedro e Bia Corrêa do Lago divide uma coleção de 20 mil títulos, mas cada um dos dois tem seu próprio jeito de arrumá-los. A solução foi dividir a biblioteca em três andares. No terceiro, ficam os itens de Pedro. No segundo, os de Bia. E, no primeiro, os comuns, em especial os livros de arte, de fotografia e de iconografia. Ambos consideram a atual uma extensão de suas primeiras bibliotecas.

Bia começou a sua aos 7 anos, juntando obras de Monteiro Lobato em uma estantezinha no quarto. Queria imitar o seu pai, Rubem Fonseca (1925-2020), um dos maiores escritores brasileiros do século XX. A editora herdou a ampla biblioteca de oito mil livros de Fonseca.

— Meu pai tinha muito livro, e eu também queria ter a minha bibliotecazinha — conta Bia. — Na organização, sigo até hoje o que ele fazia. Meu pai dividia primeiro por ficção e ensaio. Dentro da ficção, dividia por poesia, ficção nacional e ficção estrangeira, sempre por ordem alfabética. Já os livros de ensaios eram divididos por tema, como história, filosofia, arquitetura. E, dentro desses temas, a divisão também era por ordem alfabética.

Pedro, por sua vez, prefere organizar pela afinidade de temas. Tópicos especialmente importantes para o bibliófilo e colecionador são os de catálogos de leilões e os livros de referências de documentos. Ele é dono do maior acervo privado do mundo de cartas, documentos e manuscritos.

Essa gigantesca biblioteca conjunta ainda está sendo organizada em uma casa da Gávea para a qual o casal acabou de se mudar. Pela primeira vez na vida, eles experimentam o prazer de reunir, em um só lugar, um acervo que se encontrava disperso (em diferentes imóveis e cômodos). Bia e Pedro, porém, se relacionam de maneira distinta com os livros. Para ela, o mais importante é a qualidade de uma edição. Já ele tem seus caprichos de colecionador.

— A imensa maioria da minha biblioteca é composta de livros de leitura, mas também sou sensível a primeiras edições, a exemplares com encadernações bonitas e dedicatórias — diz Pedro. — Toda a minha vida colecionei livros importantes. É impossível dizer qual deles é mais valioso. Gosto muito das minhas edições (originais) de Proust, claro. Tem dias que a gente acorda achando que um é mais valioso que outro.

Leoni Lane, booktoker: uma vida em estantes

A booktoker Leoni Lani — Foto: Edilson Dantas
A booktoker Leoni Lani — Foto: Edilson Dantas

Aos 26 anos, a booktoker Leoni Lane guarda todos os 950 livros que já teve na vida. O hábito foi determinante na escolha de sua atual casa, no bairro de Itaim Bibi, São Paulo. Nela, a influencer conseguiu realizar o sonho antigo de ter um cômodo apenas para a sua coleção.

— Gosto de manter todos os meus livros comigo porque cada leitura é um mundo que vivi, e os que não li são universos que ainda não explorei — diz Lane. — Tenho livros de quando era adolescente, tenho livros novos e também clássicos que são inspiração de todos os dias. A coleção começou praticamente desde que eu nasci. Meus pais sempre liam livros antes de eu dormir, então sempre tive eles ao meu redor.

A biblioteca só aumenta, nem por isso Lane pensa em abrir mão dos seus queridos livrinhos..

— Eu sempre falo que não existe isso de “muitos livros” e, sim, prateleiras pequenas!

Como organizar seus livros: Leoni Lane

Como organizar seus livros: Leoni Lane

Lane começou a gravar vídeos há nove anos, mas a atividade só ganhou público quando ela começou a produzir conteúdos sobre livros. E de como arrumá-los, claro. Este é um tópico recorrente para a influencer, já que uma porcentagem considerável de seus 32 mil seguidores no YouTube e quase 400 mil no TikTok estão sempre pedindo dicas de como arrumar suas bibliotecas. Em um vídeo publicado esta semana, ela mostra como construiu uma estante com as próprias mãos (e ferramentas, claro).

— Gosto de organizar os livros por ordem alfabética de autor porque, para mim, é o único jeito que minha cabeça funciona e o único jeito que eu consigo me entender — diz a influencer, destacando a grande quantidade de Agatha Christie na letra A. — Gosto também de catalogar meus livros para não me perder. Cada vez que chega um livro novo eu anoto em uma planilha e colo um selo com meu nome.

Para ela, só existe uma biblioteca perfeita: a que aparece no desenho animado “A Bela e a Fera”. Ou não.

— Acho que, na verdade, toda biblioteca é perfeita desde que tenha um sistema no qual o dono possa se achar — opina. — Quando os meus livros estão bagunçados, afeta meu humor e meu trabalho. Acaba com meu dia. Uma biblioteca bagunçada faz minha criatividade ir por água abaixo. Mas, se os livros estão arrumados, minha vida está arrumada.

Miguel Sanches Neto, escritor: biblioteca como ruína

O escritor Miguel Sanches Neto e sua biblioteca — Foto: Divulgação
O escritor Miguel Sanches Neto e sua biblioteca — Foto: Divulgação

Os primeiros livros de Miguel Sanches Neto foram comprados com o dinheiro que ganhou nas lavouras do seu Paraná natal. Nascido em uma família sem livros, só começou a ler de forma sistemática quando ingressou no Colégio Agrícola, como interno, aos 15 anos. Dois anos depois, após trabalhar como peão e montador, iniciou sua primeira biblioteca pessoal.

Com o tempo, os livros se tornaram objetos ao mesmo tempo sagrados e profanos. O escritor criou o hábito de cheirá-los assim que os abre. Todos os que já leu têm anotações a lápis e trazem a data em que a leitura foi terminada.

— Os livros são verdadeiras fichas de leitura, prontos para eu escrever sobre eles se for necessário — conta o professor universitário e romancista premiado.

Neto é autor de “Herdando uma biblioteca”, um volume de crônicas que celebra os livros misturando ficção e autobiografia, o seu Eu e o seu duplo. Ele descreve o pequeno Miguel como um órfão precoce de pai analfabeto que se empenha em conseguir os livros que não conseguiu herdar. Já o Miguel adulto da vida real tem uma vasta coleção para deixar de legado. Periodicamente, doa para projetos de leituras os títulos que não estão no seu campo de interesse. Ainda assim, guarda o mesmo anseio do garoto que corria atrás dos livros no interior do Paraná.

— Toda biblioteca é uma ruína — diz. — Os livros que faltam nela talvez sejam mais importantes do que os que a compõem.

Para se achar em suas prateleiras — são 128 até o momento —, o escritor busca uma técnica transversal de organização. Só há dois núcleos na biblioteca: livros de autores da língua portuguesa e os de autores dos demais idiomas. Estes estão organizados pela letra do sobrenome, sem critérios rígidos e com algumas ironias. Por exemplo: BORGES, Jorge Luis está ao lado de BUKOWSKI, Charles.

Para Neto, “a verdadeira biblioteca é interior”. Ela se deixa ver naquilo que dizemos ou escrevemos.

— Quando minha biblioteca está desorganizada é porque estou com depressão — conta. — Recentemente, ela passou por uma longa desordem depressiva. Neste período, eu mal conseguia tomar nota nos meus diários. Depois que organizei as prateleiras, voltou a vontade de escrever.

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