Demiurgo Solar

A cosmologia neoplatônica vê o Cosmos como uma obra do Demiurgo e seus daemons. Entretanto, a cadeia demiúrgica possui subdivisões, detalhes e nuances muitas vezes ignorados e esquecidos. Este texto que vos segue, portanto, é uma apresentação introdutória da cadeia demiúrgica do neoplatonismo tardio.

Unidade Absoluta

Toda a realidade, para o neoplatonismo, é uma emanação da Fonte de todas as coisas, a Unidade Absoluta. Jâmblico, em seus escritos, divide a Fonte Primordial em duas grandes e principais metades: o Uno Inefável e o Uno-Ser (Aiôn). O Uno Inefável é o Uno além do ser e do não-ser, onde não existe nenhuma alteridade. O Uno-Ser, por sua vez, é a manifestação da Unidade Absoluta dentro do ser, ou seja, é o Uno a nível de ser.

Limite e Ilimitado

Para entendermos o motivo dessa divisão, precisamos entender o conceito de Limite (Peras) e Ilimitado (Ápeiron). O Limite é identificado com a Mônada pitagórica, ou seja, ele é o princípio de unidade, limite e definição das coisas. Já o Ilimitado é identificado com a Díade Indefinida pitagórica, ou seja, é o princípio de multiplicidade, separação e indefinição das coisas. A Mônada representa a permanência do efeito dentro da causa, enquanto a Díade Indefinida representa a separação do efeito da causa – separação realizada através de um transbordamento, ou melhor, através de um processo emanacionista.

Para não nos estendermos na questão do Limite e Ilimitado, por não ser o foco deste texto, recomendo que leiam o texto dedicado exclusivamente a isso (clicando >aqui<).

De qualquer forma, os neoplatônicos diziam que o Limite e o Ilimitado estão presentes em todas as esferas do ser e do não-ser. Logo, no Intelecto, por exemplo, existem ambos os princípios; na Alma existem ambos os princípios; na Natureza existem ambos os princípios; e assim por diante. Porém, eles argumentavam que, se isso é verdade, a Fonte Primordial deve ser diferente, pois a Fonte Primordial é uma unidade absoluta, sendo assim, ela transcende toda e qualquer alteridade, estando além da dualidade entre Limite e Ilimitado. Por isso, a Fonte Primordial de todas as coisas foi elevada para além do ser e do não-ser, sendo, portanto, completamente inefável e incognoscível.

Aiôn (Eternidade)

O Uno-Ser (Aiôn), no entanto, já é o Uno a nível de ser. Consequentemente, o mesmo está sob os efeitos da Mônada e da Díade Indefinida. Entretanto, a Mônada e a Díade Indefinida existem, dentro dele, de uma maneira unida e sem alteridade. É como se o Uno-Ser fosse uma divindade “hermafrodita” ou “bissexual” – não no sentido de atração, mas no sentido de conter em si os dois sexos. Por causa disso, o Uno-Ser é, também, “assexuado”, pois ao conter em si a Mônada e a Díade Indefinida, ele sozinho gera um filho. A geração do filho de Aiôn é dada em duas partes: o aspecto da Mônada define o filho e o aspecto da Díade Indefinida transborda esse filho pra fora de Aiôn. Ambas as partes, contudo, acontece “de uma vez só”, haja visto que Aiôn contém em si a essência do Pai e a essência da Mãe de uma maneira unificada.

Dado isso, Aiôn é a primeira manifestação da ação demiúrgica, pois Aiôn é uma emanação “horizontal” do Uno Inefável. É Aiôn que leva ao ser todas as coisas que antes, no Uno Inefável, só existiam num estado de pura potência e pura probabilidade. O Uno Inefável, dessa forma, é como um caos primordial, podendo ser tudo, mas não sendo nada. O Uno-Ser (Aiôn) é, assim, análogo a uma luz jogada na escuridão do Uno Inefável, iluminando e dando ordem ao caos. Aiôn é a manifestação perfeita da unidade absoluta dentro do ser, porque ao mesmo tempo que o Uno Inefável é a unidade no seu estado caótico e de pura potência, o Uno-Ser é a unidade no seu estado ordenado e atualizado. Aiôn, então, é o “ato de ser”, é o Ser Puro, a Forma Una mais pura existente.

Intelecto (Nôus)

Apesar disso, Aiôn, como já visto, gera um filho. O filho de Aiôn nada mais é do que o Intelecto, a mente divina (nôus). O filho de Aiôn, da mesma maneira que Aiôn se voltou ao Inefável e jogou luz na escuridão do caos, se voltou à sua fonte e a contemplou através do pensamento. Em função disso, o Intelecto (nôus) contemplou Aiôn, e dessa contemplação surgiu uma pluralidade de Ideias, a multiplicação da unidade absoluta de Aiôn. Em outras palavras, o Intelecto contemplou Aiôn e dividiu sua unidade absoluta numa pluralidade de Ideias – conhecidas como Formas platônicas.

O Intelecto, por essa razão, contém em si o Mundo das Formas platônico, sendo ele mesmo o demiurgo solar, a segunda manifestação da atividade demiúrgica. O Intelecto é o artífice e arquiteto do Cosmos, o responsável pela implantação das Formas no abismo da Matéria Primordial (Prima materia).

Sol

A implantação das Formas na matéria, toda via, é efetuada, segundo os neoplatônicos, através do intermédio do demiurgo encósmico, o qual serve como uma ponte entre o Intelecto e a matéria, através da qual as Formas são implantadas. Logo, o demiurgo encósmico está entre o reino inteligível (noérico) e o Cosmos (reino encósmico), contendo a matéria dentro de si para impor ordem a ela. O demiurgo encósmico foi identificado com o Sol. Não atoa, é o Sol que nos trás luz, é a luz do Sol que torna possível a distinção de uma forma da outra, é o Sol que nos revela a essência divina. Acredita-se que essa glorificação do Sol pelos neoplatônicos tenha, inclusive, influenciado Copérnico na formulação do heliocentrismo.

Conclusão

Recapitulando:

  • O Uno Inefável horizontalmente emana o Uno Ser, Aiôn, o Ser Puro, o “Ato de Ser”;
  • Aiôn, uma deidade “hermafrodita” ou “bissexual”, emana e gera seu filho, o Intelecto, a mente divina (nôus);
  • O Intelecto, através do demiurgo encósmico, implanta as Formas na matéria, com o demiurgo encósmico agindo como uma ponte, através da qual as Formas são implantadas e a ordem é transmitida ao Cosmos;
Demiurgo

Nota: é importante mencionar que o Sol é o nosso demiurgo encósmico. Se houver vida em outros sistemas estelares, a respectiva estrela será o demiurgo encósmico. Além do mais, outras perspectivas também são válidas. Por exemplo, da perspectiva da galáxia, o demiurgo encósmico é o buraco negro presente no centro da galáxia.

Portanto, Aiôn é a primeira manifestação do demiurgo; o Intelecto é a segunda manifestação do demiurgo; e o Sol é a terceira manifestação do demiurgo. Aiôn era identificado com a Eternidade; o Intelecto era identificado com Helio-Zeus, Helio-Mithra ou Helio-Júpiter; e o Sol era identificado com o filho dessas divindades – geralmente, Febo ou Apolo.

Bibliografia

SHAW, Gregory. “Theurgy and the Soul: The Neoplatonism of Iamblichus”. Pennsylvania State University Press, 1971.

CLARKE, Emma; DILLON, John M; IAMBLICHUS. “De Mysteriis”. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2003.