Enjoying your free trial? Only 9 days left! Upgrade Now
Brand-New
Dashboard lnterface
ln the Making
We are proud to announce that we are developing a fresh new dashboard interface to improve user experience.
We invite you to preview our new dashboard and have a try. Some features will become unavailable, but they will be added in the future.
Don't hesitate to try it out as it's easy to switch back to the interface you're used to.
No, try later
Go to new dashboard
Published on Feb 08,2017
Like
Share
Download
Create a Flipbook Now
Read more
Published on Feb 08,2017
Antonia e Suas Filhas Read More
Home Explore Antonia e Suas Filhas
Publications:
Followers:
Follow
Publications
Read Text Version
More from LivrosDeLer
P:01



P:03

Título original: Antonia and Her Daughters Copyright © 2012 por Marlena de Blasi Copyright da tradução © 2013 por GMT Editores Ltda. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores. tradução: Livia de Almeida preparo de originais: Shahira Mahmud revisão: Cristhiane Ruiz, Fernanda Lizardo e Magda Tebet projeto gráfico e diagramação: Marcia Raed capa: Lisa White imagem de capa: iStockphoto.com adaptação de capa: Ana Paula Daudt Brandão produção digital: SBNigri Artes e Textos Ltda. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ De Blasi, Marlena Antonia e suas filhas [recurso eletrônico] / Marlena de Blasi [tradução de Lívia de Almeida]; Rio de Janeiro: Sextante, 2013.

P:04

Sextante, 2013. Recurso digital. Tradução de: Antonia and her daughters Formato: ePub Requisitos do sistema: D33a Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7542-957- 0 (recurso eletrônico) 1. De Blasi, Marlena – Viagens – Toscana (Itália) 2. Mulheres – Toscana (Itália) 3. Vida rural – Toscana (Itália). 4. Toscana (Itália) – Usos e costumes. 5. Livros

P:05

e costumes. 5. Livros eletrônicos. I. Título. 13- CDD: 914.58 02230 CDU: 913(450.82) Todos os direitos reservados, no Brasil, por GMT Editores Ltda. Rua Voluntários da Pátria, 45 – Gr. 1.404 – Botafogo 22270-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2538-4100 – Fax: (21) 2286-9244 E-mail: [email protected] www.sextante.com.br

P:06

Para Larry G. Martin, de Deer Park, Illinois Como Barlozzo, ele também deve ter sido um dos 36. Apareceu uma noite dessas e mudou tudo para sempre.

P:07

Nota da Autora Antonia e suas filhas é uma história real. Para preservar a privacidade da família e seu estilo de vida, mudei nomes e ambientei a narrativa em um outro lugar da Toscana, diferente daquele onde tudo de fato aconteceu. Em 2010, aos 89 anos, Antonia faleceu em paz pouco antes do amanhecer de um dia de maio, 12 dias após nosso último encontro. A história que me relatara no verão de 2003 ela transmitiu às filhas, por meio de uma série de cartas que começaram a ser escritas em 2004, todas encontradas entre seus documentos pessoais. Embora Antonia sempre manifestasse o desejo de que eu escrevesse o livro – depois que eu tiver partido –, também deixou registrada essa vontade nas cartas. Suas filhas, netas e bisneta concordaram com este desejo, e todas essas mulheres, em especial as que chamei de Filippa e Luce, me incentivaram a levar o projeto adiante. Tive dificuldade de incluir nesta narrativa diversas passagens. Em muitas ocasiões, fiquei tentada a omitir alguns detalhes ou, pelo menos, enfeitar a verdade aqui e ali. Senti vontade de excluir vários trechos das minhas primeiras anotações, porém – mesmo com angústia – eu os mantive. Esta é a obrigação moral de um narrador quando assume a tarefa de contar a história de outra pessoa.

P:08

Sumário Capa Créditos Dedicatória Nota da Autora Prólogo 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Receitas Agradecimentos Conheça outros títulos da autora Conheça os clássicos da Editora Sextante Informações sobre os próximos lançamentos

P:09

Prólogo Inverno Os últimos raios de sol desaparecem em meio a nuvens escuras e amareladas. Na frente das portas dilapidadas do número 34, na via del Duomo, acenamos um addio para o grande caminhão azul, um emaranhado de tiras e lonas chacoalhando na carroceria vazia enquanto ele escala a suave encosta de pedras em direção à catedral. Como se esperássemos por um sinal, ficamos ali, Fernando e eu, abraçados, muito depois que o veículo desaparece. Ah, é verdade, acho que este deve ser o momento em que nos viramos, abrimos as portas, subimos a escada e vamos para o salão de baile, restaurado, esfregado, envernizado, estofado, já-perfumado-pela-lenha-da-primeira-lareira-acesa-da- manhã. Durante os dois últimos anos rezamos, sonhamos e juntamos todas as nossas economias para um dia chegar a esse momento. E agora? Pela primeira vez, não há ninguém por ali martelando, praguejando e cantando. Ninguém. Nenhum dos cinco peões napolitanos que se tornaram como filhos para nós dois, nem os estofadores, que – como confeiteiros que precisam atravessar um corredor para entregar um pudim flambado – haviam carregado cortinas e bandôs, peça a peça, poltronas e sofás, um por um, pelo emaranhado de becos desde suas oficinas até aqui, o número 34, passando por vizinhos reunidos pelo caminho para dar uma olhada no trabalho do dia. Tanto vermelho – quase tudo é de algum tom de vermelho –, eles tagarelavam, fascinados. Também se foi o carpinteiro que fez dois pés da mesa mais curtos do que os outros dois e jurou que tinha sido de propósito, dizendo que o desnível dava uma perspectiva correta ao ambiente. Eu ainda fui capaz de lhe perguntar sobre os pratos que, com certeza, deslizariam e colidiriam com aqueles da pessoa na base da inclinação. Enquanto ele balbuciava sobre fazer a experiência de servir pratos de sopa e copos com variadas quantidades de água, para demonstrar as leis da física, disse – com o desdém de quem se dirige a um forasteiro, uma postura comum com a qual o estrangeiro deve aprender depressa a lidar com alguma tolerância: “Aqui se ‘arruma’ a vida para que ela se adapte à arte.” Também se foi o marmorista com cílios espessos como os de um pônei, que pisava firme, de aposento em aposento, com um punhado de correntes e o rosnado de um carrasco pronto para torturar a superfície da pedra, e o eletricista, que, como tinha tão pouco a fazer pois os lustres e os candeeiros eram a vela, acabou ajudando o encanador. Todos se foram. Formávamos uma família grande, exuberante e extremamente funcional, mas agora não sobrou ninguém – exceto nós dois. Nossos pertences estavam desembalados, a cozinha pronta, havia feijões brancos e pancetta e um

P:10

ramo de sálvia cozinhando lentamente junto com vinho tinto numa panela de barro em banho-maria, o baldacchino de madeira amarela que trouxemos de Veneza para a Toscana e para cá estava montado, com seu colchão de seda vermelha recheado de penas, havia lenha empilhada no terraço dos fundos, roupa de cama no baú, brocado e seda adamascada estendida, pregada, revestindo toda e qualquer superfície por menor que fosse. Quando subirmos aquelas escadas, finalmente estaremos em casa. Então por que Fernando e eu estamos aqui fora, no frio? – Não deveríamos subir? – pergunta ele. Olho para Fernando que me observava, esperando o fim de meu devaneio. – É claro. Vamos tomar um banho, descansar e... – E depois vamos caminhar até a piazza e nos sentar um pouquinho no Foresi. Va bene? – Você acha que alguém da velha turma vai aparecer? Miranda, talvez. Ou Neddo. Talvez Barlozzo. Acha que alguém vai aparecer? – Depois de ficar tão próximos durante esses dois anos de espera e de trabalho, acho que eles acreditam que vamos encontrar nosso próprio modo de comemorar a primeira noite no salão de baile. – Eles têm razão, não é? – Claro que sim. Agora venha comigo. O bico arredondado de minhas botinas bate na parede de cada degrau raso. Eu os conto enquanto subo: uno, due, tre, quattro, como se não soubesse que são 28. Chego ao umbral de nossas portas duplas, ainda escancaradas, os batedores com cabeça de mouro estremecendo contra as placas enferrujadas sob a rajada de vento e neve que desce, rodopiando, da claraboia aberta. Assim como açúcar peneirado. Olho sobre a balaustrada para o pátio lá embaixo e vejo que o dono da mercearia vizinha segurou Fernando para uma conversa sobre futebol. Sem querer entrar – não sem ele –, sento-me atravessada no último degrau, as costas acariciadas pela aspereza da velha parede. Com uma perna cruzada sobre o joelho, fecho os olhos e respiro fundo para acalmar as batidas fortes de meu coração, dizendo a mim mesma que nada mudará muito agora que estamos em casa. Vamos continuar nossas explorações pela cidade e comuni vizinhas, vagaremos pelas feiras pela manhã, tomaremos nosso espresso acompanhado de doces no Montanucci. Cozinharemos e assaremos. Equilibrando nossa vida na

P:11

cidade com o tempo no campo, perambularemos por bosques e campos e entre vinhedos a cada estação. Caminhando pela relva úmida nas manhãs de outono, mandando passarinhos para o alto das árvores, vamos cutucar com galhos os veios retorcidos das raízes de carvalho e as folhas apodrecidas, onde se espalham porcini gordos e com cheiro de terra e de algo escuro e proibido. Enquanto enchemos nosso cesto já sentiremos o sabor deles, sobre uma grelha, assados na fogueira, recheados com gotas de bom azeite verde e alho, o sumo respingando sobre grossas fatias de pão na panela colocada debaixo deles. Colheremos groselhas-negras nas valas, espetaremos as mãos nos espinhos de roseiras silvestres, juntaremos castanhas do tamanho de ameixas, gravaremos cruzes nos miolos e as cozinharemos até que as cascas tostem e se rompam. Em abril, cravaremos na macia terra primaveril e sob as raízes de novas folhagens a antiga espátula feita à mão, presenteada por Neddo. Amarraremos a verdura em maços com os pedaços de barbante de cozinha, coisa que Miranda me ensinou a carregar no bolso da saia. Salada para o jantar. Vamos alugar um terreno de um daqueles lavradores em Canonica e prenderemos tomateiros em estacas de bambu, cuidaremos de melões que amadurecem em estufas e plantaremos vinte fileiras de flor de abobrinha. E quando os botões amarelos ficarem tão grandes quanto lírios, nós os colheremos, lavaremos com água da fonte de Tione, sacudiremos para secar, acenderemos uma fogueira com lenha em uma cova à beira da campina, passaremos as flores em massa à base de cerveja e fritaremos na hora. Crocantes, douradas, da panela direto para a boca, tantas quanto conseguirmos comer. Pão fresco, alface fresca, azeite do meu jarro, flocos de sal esfregado pelas nossas mãos. Nada mais além do vinho. Ficará fresco, talvez frio lá em cima, quando a luz do dia der lugar a uma lua vermelha no céu de maio. Lanternas amarelas ladeando a rua até o portão romano lá embaixo parecerão estrelas dispersas. Luca e Orfeo lá estarão, assim como Miranda, Neddo e Tilde. Também Barlozzo. Ainda serão nossos dias rotineiros. E os dias durarão tanto quanto nós. Pelo tempo que o embate entre nossos destinos e nossas tolices permitir. São tolices inevitáveis. No final das contas, um belo projeto para um ou dois últimos capítulos de uma vida. Para aquelas fases que a Poliana que há em mim sempre vai encarar de uma forma romântica e para as fases que são reais como a terra em que pisamos. De fato é um belo projeto. Mas então o que é esse aperto que sinto em meu peito? Uma espécie de temor, não é? Sem nome, sem forma, sem rosto? Qual é a palavra em galês? Hiraeth. Não é exatamente medo, e sim uma espécie de anseio, acredito. Um tipo de tristeza. Será que sentirei falta dos destroços, do imbróglio, da expectativa, da necessidade de improvisar e levar a vida adiante, dos personagens que entravam e saíam, os figurantes de uma farsa? Sim. Será que eu me perdi de mim mesma na turbulência de toda a movimentação? De

P:12

novo, sim. Quero continuar sendo paparicada durante mais tempo neste lugar fantasioso onde estamos em casa mas não nos sentimos em casa, aquela região distante e nebulosa em algum ponto entre o começo e o fim? Transição. Lavori in corso, trabalho em andamento. Acho que sim. Mas os princípios são seu forte, esqueceu? A mulher com uma vida digna de um conto de fadas, esqueceu-se disso também? Ele a vê do outro lado do aposento e sabe que é ela... não é essa a fantasia de todas as mulheres? Então, em uma minúscula igreja medieval, com sua fachada de tijolos vermelhos diante da laguna veneziana, no crepúsculo opala das chamas de centenas de velas e da fumaça almiscarada de incenso, eu me casei com ele e vivi mil dias em Veneza. Nove anos de páginas esvoaçaram até agora e, esta noite, estamos nos instalando no salão de baile recém-reformado de um palazzo do século XVI, em uma cidadezinha nas colinas da Úmbria... é, uma vida de conto de fadas. Com direito a sua cota de demônios, sustos e tropeções no escuro. A fantasia de toda mulher é a própria vida real. Somos muito parecidas, todas nós. Apesar do crepúsculo opala e da troca de olhares no salão. Como todo mundo, tenho direito a me questionar, certo? Tenho direito ao temor sem nome, ao coração palpitante. Até mesmo a uma crise de sete anos entre mim e Fernando, vinda com certo atraso. Há algum problema em Camelot, algum tremor sob o solo? Mesmo o mais puro dos amores é inconstante. Outra característica da condição humana. Resistimos, rejeitamos e raramente reconhecemos nossa inconstância. Como se fosse um pecado vacilar, sentir insegurança, se cansar, fechar a porta. Trancá-la. Mas não é isso. Você sabe que não. O que quer que seja este temor sem nome, ele é só meu. Sou eu e as Moiras. Jesumaria, o que está acontecendo comigo? Há quanto tempo comecei a compreender que não é a vontade nem são os atos, nem os méritos, nem os pecados que dão forma a nossas vidas? Foi quando perguntei para a irmã Mary Paul por que eu seria punida, quando outra era a desonesta? – É o destino – respondera ela, retirando o lenço do esconderijo de sempre, em uma de suas mangas, assoando o nariz de um jeito que produzia o ruído de um navio que parte e depois recolocando o lenço no mesmo lugar. O destino, minha criança. – O destino é a mesma coisa que Deus? – perguntei.

P:13

– Acho que Deus é outro nome para o destino. Um de seus muitos nomes. Destino é um nome mais antigo. – Então por que não oramos para o destino? – Porque Deus é um ouvinte mais atento. Estávamos de pé na pequena cela que era seu escritório e cheirava a cera de polir, tinta e a galhos carregados de maçãs verdes que invadiam a janela aberta. Ela se sentou na cadeira diante da escrivaninha, em vez de escolher a maior, que ficava atrás, e me puxou, para que eu sentasse em seu colo. Eu podia ver bem os pelos castanhos de seu buço, arrepiados como os de um gato, e de perto ela parecia mais triste do que quando estava mais longe. – Então o destino é um santo? – perguntei. – Não, não é um santo. – É como um demônio? – Também não é como um demônio, nada parecido com um demônio, embora às vezes... – Às vezes o quê? Eu tentei não olhar para o buço da irmã, mas foi impossível. – O destino não é fácil de explicar – disse ela. – Como os milagres, os mistérios e aquelas coisas na Bíblia? – Ele é parecido com aquelas coisas. – Sei. É a fé, de novo. Só acreditar sem perguntar tantas vezes por quê? – Creio que seja assim. – Mas isso me incomoda. Nem tanto o que aconteceu hoje de manhã, mas sobre Jesus. Entendo a parte em que ele era um bebê, quando la Madonna forrou seu berço com palha, cantou para ele e todos os animais vieram se deitar perto dele. E quando cresceu, era gentil e bondoso e mesmo assim aqueles soldados o mataram, fazendo la Madonna chorar. Por que Deus não ajudou Jesus? Se Deus pode fazer qualquer coisa, então por que Ele...?

P:14

– É mais um “por quê”, não é? – É o mesmo de por que Deus não me ajudou hoje de manhã? – Não acredito que seja. Hoje de manhã foi... – O destino? Então o destino é mais forte do que Deus? – Não sei, minha criança. Acho que os dois são o mesmo. Não creio que nos seja permitido saber. Eu não me lembro sobre o que mais conversamos, mas por muitos anos, e às vezes até hoje, desejei ter tocado em sua mão naquele dia. Em seu rosto. Mesmo quando criança eu sabia que eu ficaria bem, mas me perguntava se ela também iria ficar, se é que um dia esteve bem. Então aos 6 anos, sentada no colo da irmã Mary Paul, fui apresentada ao destino. Os fios da vida já estão sendo tecidos, não? Aguente firme e deixe a vida criar sua própria forma. No entanto, existem aqueles pequenos espaços que as Moiras nos designam. Aquelas estreitas canaletas entre uma coisa e outra. Faça um bom trabalho. Faça o bastante. Depois faça mais. Então é o bastante? Todo esse saltitar sobre velhas pedras de um caffè para um bar, de uma lojinha querida para outra... atravessando o rio e o bosque, brincando de coletar, a camponesa chique em saia de tafetá verde-água, usando o antigo cardigã de Barlozzo? Minhas mãos de fornarina enfiadas em suas luvas cortadas. É o bastante? Não sei como avaliar essas coisas que fazem com que eu seja quem sou. Se eu pudesse me olhar em um espelho menos generoso que o meu, quem eu veria? Uma mulher diferente daquela que conheço? Daquela que se tornou um tanto divertida com a idade, vestida para um papel em La Bohème enquanto vai à feira, arrumando a mesa de jantar em um trigal, procurando ouvir um rouxinol, as mãos na farinha, os pensamentos nas nuvens, calculando o tempo de tudo em um dia, em uma noite, de modo a não perder as mudanças da luz. Depressa. A luz não vai esperar, você sabe. Volto para a balaustrada e me debruço para procurar Fernando. Acendendo os cigarros um do outro, ele e seu amigo estão entretidos na conversa. Observo a neve úmida pingando nas pedras, o som de uma corda de harpa em tom menor. Eu me pergunto quem era ela, a mulher que olhou dessa balaustrada antes de mim. Esperando com alegria, horror e aflição. Aquela que subiu os 28 degraus em um vestido renascentista com a bainha enlameada. Aquela no vestidinho preto com uma estola de arminho e um chapéu com um véu. Em idade de casar, feia, decrépita, radiante, alisando as saias, beliscando as bochechas, arrancando

P:15

os cabelos, eu me pergunto. E como chegou a minha vez de ficar aqui para dar a mão a fantasmas neste lugar devastado e tão silencioso, a não ser pelo som da corda de harpa e a voz abafada de meu consorte? A fera ainda dilacera meu peito. As Moiras. Alisando as saias, beliscando as bochechas, arrancando os cabelos, quanto de alegria, horror e aflição elas destinaram para mim? Fernando subiu o primeiro lanço da escada e dali me disse: – Giovanni precisa de um pouco de vinho e que alguém carregue suas coisas do magazzino. Não está se sentindo muito bem. Entre. Vou subir daqui a alguns minutos. Eu o observo da balaustrada e lhe digo para não se apressar. Quando estava atravessando o portone, ele se vira. – Aliás, Giovanni disse que Neddo passou por aqui e pediu para avisar que vai estar de volta às sete, mais ou menos. Ele estava com um primo ou algo assim. Giovanni não sabia exatamente quem era. Neddo retira uma garrafa de tinto de cada bolso do agasalho e um saco de papel do bolso interno. Ele lança o conteúdo do saco através do umbral. – Sale. Para afastar os fantasmas. – Já pendurei ramos de alfazema em cada porta para acolhê-los. Ele nos abraça ao mesmo tempo. – Tanti auguri – repete ele várias vezes. – Muitas felicidades. – Ah, lui si chiama Biagio. – Neddo apresenta seu companheiro. – Chou, Fernando, apresento-lhes um membro de minha família toscana. É o marido de minha irmã Giorgia. Pequenino, bronzeado como o trigo de agosto, Biagio também traz garrafas nos bolsos. Eu acho graça por ter imaginado como passaríamos nossa primeira noite oficialmente em casa, no número 34. Neddo falou com Miranda que falou com Tilde. Não, ele não teve notícias de

P:16

Barlozzo, mas acha que viu sua caminhonete estacionada perto da scuola materna, quando ele e Biagio passaram por lá. Começo a calcular. Temos feijão. Também pão. Metade de uma finocchiona, salame da Toscana perfumado com erva-doce silvestre. Peras assadas. Vai dar tudo certo. Batidas na porta. Barlozzo carrega o vinho que vai presentear dentro de uma sacola plástica pendurada em seu ombro, como se uma criança abandonada dormisse lá dentro. Miranda coloca, com delicadeza, uma caixa de madeira com frutas em meus braços estendidos. – Piano. Piano – adverte. Sopa de castanhas e porcini em uma tigela coberta por um prato e envolta em um pano de prato. Coelho assado recheado com linguiça. Neddo trata o cunhado com deferência e Barlozzo faz o mesmo. Dessa forma Biagio se destaca à mesa, ao fogo. Como seu pai e seu avô no passado, ele é o fattore, o feitor, de uma grande propriedade na região oeste da Toscana – Il Castelletto. Ele é um grande contador de histórias; seu repertório de causos – não importa onde comecem ou terminem – parece girar em torno de uma mulher. A mesma mulher. Uma mulher chamada Antonia. – Os pais dela eram lavradores em uma pequena propriedade das colinas Lunigianan. Antonia era alta, de corpo bem-feito, cabelos escuros e rebeldes, aos 17 anos; eu tinha apenas 9 na época, mas me lembro como ela era naquele tempo e posso lhe contar. Ela foi cortejada pelo signor Tancredi, filho caçula de meus patrões, os de Gaspari, e eles acabaram se casando. O matrimônio da filha de um lavrador com um filho da nobreza. Não se falou de outra coisa em seis vales durante muitos dias. Não, não é verdade. De forma alguma. O falatório não terminou depois de dias. Nem mesmo depois de anos. A verdade é que mesmo depois de todo esse tempo, com as guerras e as epidemias, nascimentos e mortes, amores e traições e tudo mais que aconteceu, as pessoas continuam a falar sobre Antonia. Ela é um personaggio, uma espécie de heroína, uma anti-heroína. Voluntariosa, excêntrica, bela. Ainda é bela. Santa padroeira, sereia, rebelde, fanática, uma para cada momento. De qualquer maneira, ela é completamente toscana. Assim como suas filhas. Ela tem duas: Filippa e Luce. E elas também têm filhas. As de Filippa se chamam Viola e Isotta; a de Luce é Sabina. Isotta também tem uma filha, Magdalena. Sete mulheres. Quatro gerações. Todas elas são amazonas de olhos azuis e moram juntas naquele palacete com... vocês vão ver por si mesmos um dia desses. Espero que sim.

P:17

Nossos queridos amigos partiram. Fernando está no terraço fumando o último cigarro da noite e eu sirvo a saideira, conhaque em duas minúsculas taças de prata. Recosto-me nos azulejos mornos diante do fogo para esperá-lo. Penso em Antonia. O que o pequeno Biagio disse dela? Uma santa, uma fanática? Uma sereia. Disse que é bela. Pergunto-me quanto de alegria, horror e aflição as Moiras lhe destinaram. Acho que ela não sentiu as garras de uma fera dilacerando seu peito. Ou será que sentiu? Datas de nascimento Antonia: 1920 As filhas de Antonia: Filippa: 1939 Luce: 1945 As filhas de Filippa: Viola: 1962 Isotta: 1964 A filha de Luce: Sabina: 1966 A filha de Isotta: Magdalena: 1984

P:18

1 Primavera Preciso cumprir o prazo de entrega de um original. Contrariando um pacto que fiz comigo mesma, sobre a forma como conduziria minha vida de escritora, estou brincando com meus limites. Consentindo com as distrações. Talvez convidando-as. Elas assumem duas formas: a primeira é Emily, a minha mais querida e velha amiga dos Estados Unidos, que veio passar uma semana e já está há quase dois meses; a segunda é a equipe de três operários que se ocupam diariamente com os reparos naquilo que acabou demonstrando ser uma restauração não tão bem-feita da cúpula de seis metros em nosso salone. Quando amanhece, Emily sobe a escada rangente que separa seu quarto do nosso e tamborila com as longas unhas vermelhas na porta de madeira. Abro e vejo seu sorriso envergonhado. Isso me faz lembrar de minha filha, quando tinha entre 4 e 6 anos e, no meio da madrugada, entrava em meu quarto depois de atravessar um pequeno corredor. “Mãe, achei que você talvez estivesse se sentindo sozinha”, dizia ela. Emily permanece na entrada, com minhas botas em suas mãos. – Vamos caminhar? Na maior parte do tempo, é ela quem fala. – Eu me sinto melhor aqui na Itália. Esqueço o que ele fez. Esqueço-me de me importar. Esqueço-me de me importar com os motivos que o levaram a fazer aquilo e com o que ele pensa. O que pensa de mim. O que pensa dela. E de tudo. Aqui é como se eu tivesse saído de dentro de uma caixa e encontrasse a luz. Ah, vou acabar voltando para ele. Não que eu consiga perdoá-lo, mas voltarei para ele. Nunca teria coragem, você sabe, de... de... fazer o que você fez. E se não desse certo? O que eu faria? – Se não desse certo o quê? – Se recomeçar a vida sem ele não desse certo? – Mas a vida com ele não está dando certo. Já descobriu isso. E mesmo assim você voltará. O que vai fazer? Fingir? Armar uma boa vingança contra ele? “Cry me a river. I cried a river over you.”

P:19

– Seria ótimo. – Você sabe que não seria. – Não, não seria tão bom assim, eu acho. O que quero mesmo é conhecer outra pessoa. Queria ter um Fernando para mim. Alguém encantador, que me cortejasse e me fizesse sentir jovem, bonita e desejada. – É isso que você acredita que aconteceu comigo? – pergunto-lhe. Ponho as mãos em seus ombros e a sacudo. – Olhe para mim, Emmy. Todas essas coisas foram e são verdade. Mas elas retratam apenas parte da história. E talvez nem seja a melhor parte. Na verdade, não é mesmo... – Eu sei, eu sei, já me contou e eu entendi, mas mesmo assim você faz tudo parecer muito fácil. Você e Fernando são tão perfeitos juntos, o jeito que ele olha para você, sempre a tocando, seu sorriso para ele como se tivessem se casado há uma hora... e além disso você escreve, cozinha e mora em um salão de baile... Fez tudo ficar tão bonito e acolhedor, e todo mundo adora estar aqui... e... – Emmy, Emmy, pare com isso. Pare de medir e comparar. Pare de invejar. Uma coisa de cada vez. Se você voltar para aquela vida, tudo aquilo que a fez sair correndo para cá estará à sua espera. Haverá muito o que fazer. E não estou me referindo apenas a ele. Mas conhecendo-a como conheço, e sabendo como ele é, acho que o melhor que conseguirão será uma espécie de détente. E isso será suficiente para você? Uma vida agradável. E se vocês dois se convencerem de que isso basta, vai tudo pelos ares na primeira ventania mais forte. E sempre há ventanias fortes, Em, não se esqueça disso. A reconciliação não é tão boa quanto pensam. Mal secam as lágrimas e são feitas as promessas, aquilo que provocou o rompimento já está ressurgindo. Retomar uma vida que já foi dolorosa, mas melhorou um pouco, é um sonho frágil. Nós nos sentamos no degrau mais alto do duomo, sozinhas na piazza, exceto pela presença do varredor de rua que passa uma velha vassoura de bruxa, feita de palha, sobre as pedras, e da viúva Pasqualetti, envolta em xales, andando depressa, rumo a sua casa, depois de alimentar os gatos na cava. Dois fantasmas, negro contra o rubor do céu. – Então vou tentar um sonho diferente, aquele que vim viver na Itália. Afinal, viver aqui, o simples ato de sair para comprar um saco de tomates se transforma numa incursão por outro mundo... e aí eu encontraria o homem certo e... – diz ela. – E bem depressa você vai ouvir o lamento das esposas italianas... sono tutti

P:20

egocentrici, grandi mammoni... são todos egocêntricos e apegados às mães. Você não está esperando coisas demais da geografia? E do próximo homem. Para não falar do pobre saco de tomates... Acho melhor começar em casa, ou seja, começar por você. Para ficar pronta para o que der e vier. Faça seu trabalho primeiro, Em. – Não sei se quero. Além do mais, você não diz sempre que ninguém muda? Somos nós mesmos eternamente. – Certo, mas podemos crescer, nos esforçar para aprimorar nossas qualidades e tentar minimizar os defeitos. Já o caráter constitui a nossa essência. É permanente como a cor dos olhos. – É um pensamento assustador. Somos o que somos. Como o Popeye. “Sou o que sou, um marinheiro.” Meu Deus, você acredita mesmo nisso? Não podemos voltar atrás. Não podemos mudar. O que resta então? – Em seu caso, existem duas opções: aceitar vocês mesmos do jeito que são e enfrentar a realidade; ou não aceitar e começar a trabalhar. – E você? Fez seu trabalho? – Tive mais sorte do que você. Comecei cedo. Eu era muito velha quando era jovem. Aprendi a confiar em mim mesma, a ficar amiga do destino. A exigir mais de mim do que de qualquer outra pessoa. E, de alguma forma, sempre me senti rica. Mesmo quando não tinha um centavo. Principalmente nessas ocasiões. Às vezes eu me sentia quase constrangida diante de tudo o que eu tinha. Tudo o que eu sentia dentro de mim. Acho que foi por isso que comecei a escrever. Em todo caso, estou mais jovem agora. Respondendo à sua pergunta, sim, fiz meu trabalho. E ainda estou fazendo. Emily sacode a cabeça e diz: – Estou cansada demais para me submeter a toda essa introspecção. Acho que não vou gostar de boa parte do que posso encontrar. Prefiro simplesmente ir em frente e ver o que acontece. Ela se vira para se recostar em mim. Ficamos em silêncio, o raspar da vassoura como um metrônomo. Em seguida ela muda de posição para me olhar. Sua voz é tão delicada quanto uma antiga colher de prata, ela ergue uma taça invisível, o rosto transformado por um soluço: – Comer, beber e voltar a casar.

P:21

De noite, quando o fogo está baixo, Emily diz, como uma criança para sua mãe: “Não me deixe.” E eu não a deixo. Ela precisa do conforto da mesa, de um bom vinho tinto, do pão ainda quente do forno. Nas primeiras semanas de sua visita, ela mal saía da cama, a não ser para comer e beber, e mesmo agora ela vagueia pela cozinha, sentindo os aromas, levanta as tampas das panelas, abre as portas do forno, acaricia as garrafas de vinho separadas para serem aquecidas até a hora do almoço, se esforça para pronunciar um obrigada meio abafado. O mínimo que posso fazer é cozinhar para ela. E embora esteja fazendo isso por ela, por que não para o trio de gesseiros? Enquanto lavo a louça desses festivais diários, chego a ranger os dentes ao pensar em tantos livros que existem com páginas de agradecimentos a essa ou aquela fundação pelos dois anos felizes e serenos que me permitiram escrever este livro. Outros listam um grupo de 61 pesquisadores, leitores, amigos insones, incentivadores em geral durante os oito anos e os infindáveis esboços deste livro. Como sempre, meu editor me concedeu um ano para a conclusão da obra. Trabalho sozinha em um minúsculo cômodo vermelho que fica sobre um supermercado e um restaurante, que diariamente recebe um grupo de quarenta americanos agitados, sob os cuidados de um guia turístico local. Eles almoçam, bebem grandes quantidades de um vinho nada decente e, enfim, se aglomeram, soltando gargalhadas sob minha janela até que o guia turístico – revigorado, embora atrasado, depois de desfrutar de uma tigela de pastasciutta feita pela mãe e de um breve appuntamento galante com sua amante – chegue para levar os quarenta de volta para o ônibus. Nunca tive um leitor ou um amigo a quem pudesse recorrer para me reconfortar no meio da noite. É minha culpa se dei a meu trabalho a condição de jobette – uma hora aqui e ali como um socorro entre crises. Basta. Preciso de alguns meses sozinha em um sótão no sétimo andar. Um sótão sem fogão. Uma cabana sobre um penhasco à beira-mar sem fogão. Uma castanheira oca. Praticamente qualquer lugar sem fogão. Sabendo que não terei nenhuma dessas opções, penso em alternativas, mas elas não existem. Então penso em Neddo. Eu poderia me hospedar em sua casa em Canonica. Como ele é viúvo há muitos anos, com filhos já adultos, sua antiga fazenda tem mais quartos vagos do que habitados. Neddo é um cozinheiro magnífico, que tem ciúmes de sua cozinha e de seus métodos. Ele será meu salvador. – É claro que pode, amore mio – responde ele, embora eu ainda precise lhe dizer exatamente quais são meus planos. – Seria apenas por alguns meses. Cinco ou seis dias por semana. Das seis da

P:22

manhã até o final da tarde. Eu não pretendo trabalhar o tempo todo, é claro. Talvez nós pudéssemos caminhar juntos por uma hora, ou eu poderia descansar perto da lareira se você... – Sim, sim, sim. Concordo com tudo. Comece hoje. Biagio está aqui, aliás, chegou na noite passada, trouxe umas aves para pendurar e dois kili de farinha de milho Garfagnano. Ele também trouxe vinho, umas garrafas daquele tinto de Gaspari caríssimo, e acabou de me perguntar se Fernando viria jogar baralho hoje à tarde. Dio buono, quando ouvir as novidades sobre você, é capaz de não querer mais ir embora. Imagine os almoços e... – Fantastico, Neddo – minto acintosamente. – Glorioso. Biagino. Carteado. Farinha de milho Garfagnano e aves podres. Será perfeito. Neddo conta tudo a Biagio, que logo tem outra ideia. É ele quem aparece para me fazer uma visita mais tarde, no mesmo dia, e anuncia que o que eu de fato preciso, mais do que um quarto na casa de Neddo, é da absoluta tranquilidade de sua casa. Não a casa onde ele mora com a esposa em Castelletto, mas o santuário de pedra com apenas um aposento, em um pinheiral próximo, onde ele se instala para caçar. – Uma lareira com 4 metros e duas toras de carvalho envelhecido, uma cama, uma cadeira, uma mesa. Panelas e caçarolas, meio garrafão de tinto, um de azeite. Fica a menos de 4 quilômetros do vilarejo. Saio às sete para levar pão para Antonia e levarei para você também. Due alimentari, un forno, un macellaio, un norcino, un bar, due trattorie, un antiquario, una parrucchiera. Duas mercearias, uma padaria, um açougue, outro que só trabalha com porcos, um bar, duas trattorias, um antiquário, um cabeleireiro. E há uma pequena feira às terças e aos sábados. Porchetta, formaggi, verdure. Porco assado em fogo de lenha, queijos, verduras. Você vai ficar bem. Deixaremos que Fernando a visite nos fins de semana. – O-que-acha? Seria-só-até-que-eu-conseguisse-terminar-o-original-dois-meses- talvez-três-eu-conseguiria-fazer-tanta-coisa-sem-barulho-sem-Emily-sem- fogão... Estou tentando contar toda a história antes que ele comece a virá-la de cabeça para baixo e eu comece a me sentir egoísta e tola. Uma prima donna. Seus recursos são sempre mais refinados. “Você diz que uma cozinheira de verdade pode cozinhar com uma lata. E uma escritora de verdade? Se você é mesmo uma escritora, então pode escrever em qualquer lugar, sob quaisquer circunstâncias.

P:23

Não é verdade? Se você fosse uma escritora.” Estamos a sós no terraço do Foresi e, embora ainda não sejam oito horas, um dos filhos faz movimentos delicados para indicar que precisa fechar. Mesmo assim, Fernando acende um cigarro e inala a fumaça pelo nariz, o preâmbulo habitual para uma ofensa. Com o fósforo ainda aceso, ele diz: – Emily vai embora no fim de semana. Conversei com ela hoje de manhã. Está pronta para... para retomar a vida dela. Falei muito pouco. – Ele sopra o fósforo. – Você não tinha o direito de dizer nada... – Acredito que tinha, sim. E Emily também. Ela me agradeceu. Sinto vontade de sacudi-lo. – A partida de Emily não resolve o meu problema... – Seu problema é que você costuma criar desculpas para não escrever. Esta tem sido a questão desde que nos mudamos para cá. E muito tempo antes disso. Agora tenho vontade de virar a mesa, esmagar o cigarro contra o seu nariz adunco e um tanto grande. Pergunto-me se ele tem razão. E daí se tiver? – Não vou mais agir como se escrever fosse uma diversão, uma espécie de diletantismo para preencher o tempo enquanto o pão está crescendo, ou nos intervalos entre espressi e passeggiate. É o meu trabalho. Não, não está certo. É uma espécie de fome. Uma gana. Eu não consigo deixar de escrever. Além do mais, é tudo que temos, tudo que temos para nos manter. – Percorremos o curto trajeto de volta para o número 34 e estamos subindo os degraus. – Repense na sua aposentadoria precoce e não remunerada. Com seu currículo de 26 anos de experiência, por que não procura trabalho em algum banco? Acho que um homem, relativamente jovem e capaz, estar sem trabalho não é nada bom, e além disso eu... – Você me espanta. Não quer apenas se instalar como uma eremita nas montanhas, mas também quer que eu abandone minha aposentadoria e... Você realmente está sugerindo que eu deveria trabalhar? – Achei que essa sugestão ofenderia sua delicada sensibilidade veneziana, meu amor, mas é isso mesmo, estou sugerindo que você trabalhe. Se seus dias tiverem uma estrutura, o mesmo acontecerá com os meus. Do jeito que as coisas andam, disponho apenas de migalhas de tempo para escrever. Quando sobram. Além do mais, não sabemos se o que ganho com a venda dos livros vai continuar

P:24

mantendo adequadamente... – Mantendo você adequadamente, bancando sua sede de viagens e as toneladas de tecido... estadias de um mês em Paris... 110.000 lire no Emilio, no mês passado, só em queijo... Estamos agora no interior do salão de baile, sentados lado a lado no sofá, preferindo não olhar diretamente um para o outro. Então eu digo: – Você vai lembrar que também gosta de queijo, e dos meses que passamos juntos em Paris e que cada guardanapo que usa foi feito a partir daquele tecido todo, assim como seus lençóis e... – E esse vestido ridículo que você está usando... – Ridículo? Como foi que ele se tornou ridículo de repente? Não é tão diferente dos meus outros vestidos. – Talvez não seja o vestido. O vestido em si é... ele fica bem em você. Mas não com essas botas. As botas é que são ridículas. Prefiro com sandálias. Quantos pares de sandálias você tem com todas aquelas tiras e fitas? – Uso as botas para me sentir confortável nos 4 ou 5 quilômetros que caminhamos sobre o pedregulho dessa cidade todos os dias, sem falar nas ocasiões em que andamos nas colinas. – Então use tênis como as outras americanas. – Nunca usei tênis. Usei sapatilhas de balé cor-de-rosa presas a meus pés com fitas elásticas até quando jogava hóquei na grama, na escola. – Você nunca jogou hóquei na grama. – Joguei, sim. Duas vezes. Peguei emprestado um taco e um disco e fiquei treinando sozinha no banheiro. Vi que não era para mim. De qualquer jeito, nunca vou usar tênis... É uma questão de conforto psicológico. Sinto-me como uma pata quando estou de tênis. – Você parece uma partigiana quando está de botas. – Prefiro ser partigiana a ser uma pata. – Eu disse partigiana e não perdiz.

P:25

Levanto-me para andar pelo aposento. Olhando sobre o ombro, respondo: – Ouvi muito bem o que você disse e ainda prefiro ser partigiana a ser uma pata. Uma coisa é assumir a responsabilidade pelo nosso sustento. Isso eu tenho feito, continuaria a fazer da melhor forma possível o tempo todo. Mas quando você exige mais atenção, quando se ressente das horas, passa a contá-las, anda de um lado para outro diante da porta como um animal rebelde, quando se irrita se eu paro e converso com um leitor, ou... É como se você preferisse que eu fosse um fracasso anônimo que conseguisse ganhar imensas somas de dinheiro. Você é, em essência, impassível e quer que eu seja impassível com você, desde que, em algum momento no meio da madrugada e sem insinuações sobre nossa impassibilidade, eu continue a escrever livros que vendem. Nada disso é justo, Fernando. Você exige que eu seja responsável e isso me faz sentir sufocada. Sim, é isso. Eu me sinto sufocada. – O que quer dizer sufo-cada? – Meu Deus! Não importa. Quer dizer apenas que estou cansada. – Sufo-cada. Nunca ouvi esta palavra como sinônimo de cansada. De repente, nossa discussão absurda acaba com qualquer raiva que eu possa estar sentindo, e o olho pela primeira vez. Vejo sua perplexidade. Estávamos falando em inglês, um raro acontecimento entre nós, inserindo alguma palavra italiana apenas de forma ocasional. Sei como é tentar ser compreendida em um idioma que não é o seu. Também sei que todas as vezes que um de nós se esquece da humildade, isso indica que o outro deve tomar uma atitude. Sorrio-lhe e me aproximo dele. – Não é isso que quer dizer, de forma alguma. Neste momento, não consigo explicar muito bem o que é. Ele me puxa para mais perto, coloca minha cabeça debaixo de seu queixo, com muita suavidade, e diz: – Não consegue porque está cansada demais ou porque eu sou impassível? Não consigo compreendê-la. – Nem eu consigo compreendê-lo. A beleza está aí, não é? Pelo menos, podemos culpar dois idiomas. Por não conseguirmos nos entender. Lamento muito pelos casais que não dispõem de um argumento tão conveniente. As portas da sacada se abrem para a noite de abril e ele vai até lá. Seria um

P:26

mero acaso ele ficar sob o único feixe de luz dourada que vem da luminária da parede sob o vicolo Signorelli? Ele segura a balaustrada de ferro com as duas mãos e ergue o queixo. Um Shylock meditativo atravessando os mares. Aproximo-me dele e paro depois de passar pelas portas. – Você é menos impassível do que italiano. Pior: veneziano. Você é você. Nunca foi, nem por um segundo sequer, outra pessoa além de si mesmo. Sua magnífica pessoa. Sua pessoa mais ou menos magnífica. Quanto a mim? Você tem razão. Estou bancando a artista frágil. Ele se volta ao ouvir aquilo, apoia os cotovelos na balaustrada, pousa o olhar em algum ponto acima de mim e segura o cigarro entre o polegar e o indicador, um astro do cinema alemão da década de 1930 soltando fumaça entre os dentes. Passo a falar italiano: – Alguém disse uma vez que “Um escritor é um expatriado não importa onde viva”. Talvez tenha sido eu. É possível que não seja tão fácil para você viver com alguém duas vezes expatriada. Com a escritora que eu sou e que, pelo simples fato de ser uma escritora, precisa com frequência se manter emocionalmente distante. Com a estrangeira que eu sou e que, pelo simples fato de ser de outro lugar, precisa sempre ficar um pouquinho separada. – Você pode ficar separada, como chama, dessa cultura, mas não está separada de mim e compreendo melhor agora que você requer um tipo especial de... Vou ajudá-la, vamos organizar nosso tempo para que... não é preciso que você... Ele está me segurando com força contra a aspereza de seu colete Donegal, e eu amo o cheiro de espresso, vinho tinto e cigarro do homem italiano que ele é. Em seguida diz: – Nunca passamos uma única noite separados desde que você foi morar em Veneza. Nenhuma. – E durante todas as noites e dias desses nove anos, em geral fizemos nossos planos de vida de acordo com suas necessidades. Desde o início. Desde o primeiro dia eu sabia que seria assim. Que você teria o comando. Compreendi isso e por mim estava bem. Eu me sentia plena. Ainda está bem. Na maior parte do tempo. É só que, neste exato momento, tenho minhas próprias necessidades. Ficar isolada por um tempo e trabalhar. Terminar o livro. Não estou me rebelando. Adoro os passos de nossa dança. Sempre adorei. Só por algum tempo, quero ficar a sós na cabana de Biagio no bosque.

P:27

2 Dois dias depois – com Biagio empoleirado na beirada do banco traseiro de nosso carro –, seguimos Neddo enquanto ele conduz o velho Ford preto de Biagio pelas estradas sinuosas de Lunigiana, no oeste da Toscana. Colinas vulcânicas escavaram desfiladeiros profundos, ocultaram aldeias elevadas, dependuradas em encostas íngremes. Parece uma terra abandonada e a sensação aumenta à medida que seguimos montanha acima. Quase três horas se passam e até a delicada tagarelice de Biagio já silenciou. Uma curva fechada à direita, em seguida uma estrada de terra batida em meio a um bosque de pinheiros e abetos e então chegamos. Pelo menos, paramos atrás de onde Neddo parou. Fim do caminho. Nenhuma casa à vista. Fernando ora range os dentes ora pragueja sotto voce. Eu ficarei alegre a qualquer custo. Biagio e Neddo descem primeiro e avançam para dentro do bosque, que parece mais com a Noruega do que com a Toscana. Uma faixa de água azulada jorra logo abaixo do caminho. As cigarras cantam. As folhas das árvores balançam com a brisa suave e criam um crepúsculo esverdeado ao meio-dia, a luz obscura ainda mais sedutora com as faixas de luz opala que atravessam as folhas. Nossas botas esmagam agulhas de pinheiro, ressecadas e avermelhadas, e tufos de sálvia silvestre. Nós três estamos rindo, como crianças se divertindo. Então eu a vejo. A casa, não tão pequena, é quadrada e feita com grandes pedras arredondadas. O telhado de ardósia azul-escura é íngreme. Galhos de lilás estão presos por trás de uma grande cabeça de javali em latão sobre uma porta dupla, tinta verde desprendendo-se das fissuras da madeira envelhecida e, nas laterais, duas janelas, compridas e estreitas, contornadas por esquadrias pretas e reluzentes. – Desisti do meu projeto de reforma depois das esquadrias. Parecem umas feridas reluzentes junto das pedras, não é? O pai do meu pai construiu o lugar. Para os de Gaspari. Naqueles tempos, os cavalheiros costumavam ter um lugar indevassável. Como se algo o distraísse, Biagio desvia o olhar, o rosto contorcido. Em um instante ele se volta, com um sorriso grande demais, e pergunta: – Carina come casina boscosa, no? É uma bela cabana no bosque, não é? – Biagio empurra a porta para abri-la e fica para trás – Avanti, avanti. Ah, antes que eu me esqueça – diz ele apontando para o lilás na velha porta verde –, a única coisa que vou lhe pedir é que troque as flores na porta diariamente. Costumo fazer isso

P:28

quase sempre, e Giorgia também, mas acho que você poderia cuidar disso enquanto estiver por aqui. Reparei que sempre tem flores, galhos ou coisa parecida na sua porta e... – Farei isso com prazer, Biagino. – Quando o lilás e a forsítia acabarem, a giesta vai estar florescendo e aí temos as flores de pessegueiro e ameixeira, mas se preferir flores silvestres... No outono, misturo folhas amarelas de carvalho e frutos vermelhos; no inverno, galhos de pinheiros, mas meu arranjo favorito é prender um pedaço da vinha com cachos de uva na manhã da colheita. É meu preferido, mas, como eu disse, qualquer coisa... – Ele agita o braço, nos convidando a entrar. Há um único aposento com talvez 40 ou 50 metros quadrados, o ar impregnado de bolor, fumaça e vinho, paredes de estuque, teto baixo com vigas de carvalho enegrecido. Uma minúscula lâmpada está pendurada e presa com fita adesiva na ponta de um arame grosso, que balança de uma das vigas. Biagio mexe no interruptor para acendê-la. – Ecco, Venere, veja Vênus – diz ele, sorrindo para a lâmpada. A lareira é alta e profunda o bastante para que alguém durma em seu interior, equipada com um espeto giratório de ferros manipulado por correias onde poderia se assar um alce. Ela está varrida, as toras prontas. O chão é de xisto escavado na terra e as hastes de pequenas flores azuis se erguem entre as pedras próximas à porta. Sobre uma mesa rústica está uma garrafa verde para o azeite, uma jarra para o vinho, um castiçal de ferro. Nas sete cadeiras é possível imaginar velhos caçadores sentados com suas taças, para cantar e lamentar seus esforços. Um armário aberto, pintado de verde, quase cede com o peso de um suprimento desordenado de pratos e copos. A madeira está em toda a parte, empilhada com precisão, e feixes de gravetos esperam junto às pedras da lareira. Uma cama de latão, imensa, com uma decoração atordoante e três colchões empilhados, está posicionada contra uma parede caiada, os lençóis e as cobertas cuidadosamente dobrados sobre ela. Na mesa de cabeceira há um vaso de onde sai um galho de pinheiro. Uma escada de dois degraus fica do lado da cama. – Você costuma dizer que sou a verdadeira heroína de A princesa e a ervilha, e finalmente encontrei a cama certa – digo sobre o ombro, dirigindo-me a Fernando, que patrulha o espaço com o olhar, a partir da entrada. – É maravilhoso, não acha? Austero. Ascético. Biagio está perguntando a Neddo: “Chi é questa principessa?” E Fernando quer

P:29

saber: – Você verificou se há pregos sob a colcha? Biagio afasta para o lado uma cortina de encerado verde, suspensa por um semicírculo de ferro, revelando uma pia de pedra e uma boca de gás. Uma geladeira minúscula, adequada para uma casa de bonecas, equilibra-se em estacas de madeira. Sobre uma tábua de cortar carne cheia de facas está um paiuolo de cobre e um jarro com colheres de pau. Biagio corre para o outro lado do aposento. – Ecco il bagno. Veja o banheiro. Embora esteja pendurado um encerado verde idêntico ao outro, dessa vez o bastão é circular e revela um chão de concreto inclinado, com um ralo no centro, um chuveiro de mão, um vaso sanitário e outra pequena pia de pedra. Há um enorme espelho Campari Soda pendurado com arames, um tanto torto, cuja grande inclinação permite a visão da parte inferior do corpo da pessoa. Depois de concluir o passeio, Biagio se ocupa com o fogo, Neddo serve vinho e Fernando volta a praguejar a sotto voce. – Todo aquele dinheiro para reformar o salão de baile... Por que você não me disse que realmente queria brincar de Spartacus e Sura... trouxe as correntes? – Ele solta fumaça na minha cara. Pego a mão de Fernando, empurro-o porta afora e caminhamos de volta pela trilha próxima ao riacho, seu chiado parecendo mais alto agora, sem as risadas. Uma mulher – robusta e de meia-idade, usando um vestido escuro e estampado com flores amarelas, lenço branco e limpo cobrindo a cabeça – sobe a trilha carregando, na altura dos quadris, um cesto coberto por um pano. – Ah, buongiorno, buongiorno... sono Giorgia, la moglie di Biagio. Sou Giorgia, a esposa de Biagio – diz a mulher, rindo e pousando o cesto para apertar nossas mãos. – Trouxe um lanchinho, mas se precisar de alguma coisa é só pedir. Não repare na casa. Os olhos dela são luminosos e negros como carvão, a pele, bronzeada pelo sol, esticada sobre um queixo quadrado. Posso ver o rosto de Neddo no de sua irmã. Fernando levanta o cesto, oferece o braço a ela e caminhamos de volta para a casa. Sei que preciso estabelecer os limites agora ou vou acabar dependendo de Giorgia. Como seria fácil! – Si, si, Biagio e Neddo, loro mi hanno detto, ma... Sim, sim, Biagio e Neddo, os

P:30

dois me disseram, mas... Giorgia descarrega o conteúdo do cesto, troca gracejos com o marido e o irmão, começa a fazer a cama e eu a ajudo. Os homens arrumaram o pão, prosciutto, peras amarelas e metade de uma roda de pecorino. Como se quiséssemos ficar separadas dos homens, Giorgia e eu nos sentamos na cama com os pratos, ela ainda pedindo desculpas, mortificada, diz ela, por ter uma hóspede morando nessa casa diroccata, uma casa em ruínas. Entre fatias de pera cortadas com um canivete que mantém preso ao cinto do vestido, ela faz uma lista das minhas alternativas: a casa dela, a casa da irmã dela no vilarejo e a mansarda em Castelletto. Conversando, revirando os olhos, saboreando a pera, Giorgia torna a cena familiar. Como se fosse uma recepção de boas-vindas. Giorgia dá ordens aos dois homens, conduz ambos até a caminhonete, diz que prefere andar a voltar para casa de carro, adverte-os a não beber mais até a hora do jantar e fala que a alface e os últimos aspargos precisam ser colhidos. Os pratos e os copos foram todos lavados e colocados nas prateleiras, a cama de princesa arrumada e afofada, minha área de trabalho montada, uma vela acesa. Fernando se senta de cócoras, perto do fogo, remexendo-o. Em voz baixa, ele diz: – Ainda não consigo entender por que estamos fazendo isso. – Por favor. Já falamos várias vezes sobre esse assunto. Não estou ficando aqui porque não quero estar com você. E sim porque quero ficar em paz com meu trabalho. Preciso muito terminar este livro. O que não seria possível com os operários derrubando tudo e com o início da temporada em Orvieto... mas você sabe disso. – É, sei disso. Agora sento-me no chão ao lado dele e digo: – Você vai ficar bem, você vai... – Sei que vou. Os homens estarão trabalhando no salone e ficarei com eles. E Barlozzo pediu que eu concedesse a ele dois dias da semana. O quarto de hóspedes precisa de alguns reparos, depois das arrumações noturnas dos armários e das estantes feitas por Emily. Precisa de mais uma demão do velho bordô, de qualquer maneira. Sei que Neddo vai me visitar. Já estou com minha agenda toda ocupada. E vou sair de Orvieto nas manhãs de sexta-feira para estar

P:31

aqui a tempo de levá-la para almoçar. Teremos dois dias e meio para nós dois. – Talvez nem tanto. Veremos. Eu adoraria caminhar por esses pequenos vilarejos. Poderíamos passar algum tempo em Garfagnana... – Eu já imaginava que logo ia ressurgir seu desejo de viajar por aí. Planejarei pequenas gitarelle para nós dois, vou reservar lugarezinhos simpáticos para as noites de sábado. – Ótimo. Agora, por favor, está na hora de você partir. Quanto mais ficar... mais difícil será... Estou lendo um texto quando batidas na porta – suaves, insistentes – me distraem. É Giorgia e seu cesto, sei que é. Mais um cobertor. Uma jarra com leite quente e conhaque. Preciso tentar convencê-la de novo... – Não queria assustá-la. Sabe, estava só de passagem... Os olhos cor de mirtilo são cintilantes e destacam-se na escuridão que se aproxima. – Eu sabia que você não partiria. Ele me segura, me dá um beijo perto da orelha e pergunta: – Você queria mesmo isso? – Sim. E não. – Ouvi o não. – Fernando, por favor, não... Com delicadeza, eu o afasto, mas só um pouco. – Eu vou partir, sair deste lugar. Deixar você em paz, para que trabalhe. Mas não quer dizer que eu precise voltar para Orvieto. Fui até a casa de Biagio e Giorgia. Biagio diz que eu poderia ajudá-lo se ficasse na companhia dele. Neddo também vai ficar. Pelo menos por algum tempo. E Neddo chamou Barlozzo, que disse que também está vindo. Acho que virá. E Giorgia está determinada, tem uma lista de... – A ideia era fazer um retiro e você está transformando tudo em uma farra

P:32

toscanaccia. – Não sou da Toscana, nem Neddo é. E não planejamos uma farra. Vamos trabalhar. Giorgia vai cuidar disso. Se pensar bem, vai ver que é o plano perfeito. Todo mundo ganha. – Você não trouxe sequer um par de meias... – Uns cinco ou seis, na verdade... uma pequena bolsa... para o caso de um imprevisto... – Não vou cozinhar. Pão, azeite, vinho. Uma panela de feijão. Talvez uma panela de feijão. – Eu nem estarei aqui. Você vai comer o que quiser. Podemos ir até a aldeia à noite para jantar. Este lugar parecerá muito pequeno depois de um dia de trabalho. – Por favor, não resolva como as coisas vão parecer para mim. – Giusto, é justo. – Ele assente com a cabeça. – Vou passar os dias trabalhando com os ragazzi, e você com o livro. À noite, ficamos juntos. Vamos só experimentar. Prometo ir embora se você não estiver de acordo depois de dois dias de experiência. Só dois dias. É tudo o que eu peço. – Mas sem contato algum, do amanhecer até o anoitecer. – Nenhum contato. Vou dar uma caminhada agora. Volto depois do pôr do sol. – O que vai acontecer dentro de quatro minutos.

P:33

3 Trabalho e caminho. Como quando tenho fome e durmo o sono de uma criança feliz. Uma solidão cotidiana que nunca experimentei. Prospero. Mas se não houvesse Fernando, se não houvesse um grande e arrebatador amor em minha vida, será que eu estaria me sentindo solitária? Acho que sim. Acho que ele é o luxo que torna tudo isso uma felicidade. Escrevo um bilhete para lhe dizer isso. E digo que uma quinta-feira nunca pareceu tão longa. Hoje é quinta-feira. Ponho o bilhete debaixo do travesseiro, do lado em que ele costuma se deitar na cama. Amanhã à noite ele estará aqui. No domingo passado foi Giorgia quem me salvou da tarefa desagradável de desfazer o “comitê de trabalho”: disse para Biagio cuidar dos afazeres dele e mandou Neddo e Fernando de volta para Orvieto. Depois de se recusar sumariamente a se juntar ao grupo, Barlozzo permanecera em casa. Imagino a resposta dele ao receber o telefonema de Fernando. “Deixe-a em paz.” O cabelo penteado com gel com fragrância de lima e dividido ao meio, bigodes aparados, a velha jaqueta de couro em estilo aviador pendurada no ombro, meu consorte – trazendo presentes – desce pelo caminho em uma tarde de sexta-feira. Espero por ele. Cautelosos, tímidos, depois de quatro dias de separação, nós nos cortejamos. Ele traz óleo de néroli e velas de canela. Sirvo prosecco, resfriado nas águas do riacho, em um calice veneziano cor-de-rosa que achei na loja de antiguidades do vilarejo. Passo para ele uma tigela com morangos silvestres menores do que a ponta dos dedos de um bebê. As janelas se abrem, as esquadrias batendo contra a pedra, então nos deitamos na cama de princesa e vemos a escuridão chegar. Alguém de Castelletto sobe a trilha do riacho num trote a cavalo, fazendo com que os jovens javalis interrompam sua passeggiata vespertina e voltem correndo para o mato. Leio trechos que escrevi e ele me conta as notícias, o que cozinhou, como se sente. Diz que Neddo se mudou para o quarto de hóspedes lá de casa e que se sente muito importante, banca o maggiordomo quando Barlozzo faz visitas. Acho que Fernando está, ao mesmo tempo, satisfeito e com ciúme da minha paz. O amor é ambivalente. O dele e o meu. Depois de uma longa sessão de trabalho matinal, coloco pão, vinho e um pouco dos presentes de Giorgia dentro de uma mochila Prada vintage e parto para as

P:34

colinas. Quantos banquetes em quantos lugares já foram guardados nesta velha bolsa preta? Eu caminho até encontrar o lugar certo para me sentar. Um gole demorado no vinho frio, partir o pão, um suave córrego sob a luz de maio, às duas da tarde na Toscana. Outro tipo de luz. Outro tipo de Toscana. Esta terra não é um casto território de aquarela. Não há ciprestes em zigue-zague em uma campina verde e aveludada, nenhum pasto amarelado cascateando, dolcemente, até o horizonte. Nenhuma cidadezinha de telhados vermelhos, empilhada no alto de algum afloramento telúrico. Aqui o Tirreno geme aos pés de íngremes penhascos de xisto, e as ovelhas vagam feito nuvens nos pastos em platôs. Nos castelos arruinados em montes espinhosos, as sombras uivam como lobos, dizem os moradores. Esquálidos rochedos alpinos envolvem o território como um portão meio arrombado, e foi aqui, nas fendas de seus corações brancos, que Michelangelo caminhou em busca de sua pedra. Esta aqui é outra Toscana. Oito vacas cor de cobre em um pequeno pasto, um campo de terras devolutas cortado por uma alameda de carvalhos, as árvores descendo e recolhendo-se no bosque mais à frente. Trancados por uma corrente, portões de ferro arqueados cobertos por roseiras silvestres erguem-se solitários no meio da campina. O que costumavam abrir? A quem impediam de entrar? Oliveiras baixas e antigas videiras ladeiam a estrada branca, nos fossos há urtigas e flores cujos nomes desconheço e não preciso saber. Amarelas, principalmente azuis. Roxas. Espinhosas. Estou sozinha. Como a criança que desejava fugir – e guardou pão com geleia no bolso – para dormir debaixo da mesa de jantar. Solidão é estar longe da pessoa amada, compreendo agora. Caminho depressa e me sento. Deito na grama áspera, conto onze distantes toques de sino em San Agostino. Em algum lugar, um riacho corre, melros guincham formando uma tatuagem precisa no céu. Uma placa com letras largas e cor de laranja anuncia: Vino e olio vendita diretta. Vinho e azeite à venda. O equivalente toscano da banca de limonada. Tive uma no passado. Não na Toscana, não no campo, mas na calçada de concreto diante da casa de madeira de Maria, na Warren Street, 408. As garotas do outro lado tinham se preparado para fazer negócio. Chamavam-se Annie e Doreen. Com 10 e 11 anos, enquanto eu tinha 8. A irmã delas, Marion, era bem mais velha, usava um vestido de algodão com uma pequena gola de renda e batom, que ela guardava no bolso e aplicava enquanto olhava pelo espelho lateral da caminhonete de Buonome, sempre estacionada parcialmente sobre a calçada. Acho que tinha 15 anos. Marion foi marcante em minha vida. Ela me fez seguir a trilha dos lábios pintados. Eu queria o vestido dela e os sapatos baixos de couro branco com os cadarços amarrados em laços perto dos dedos do pé. E queria ainda mais aquele tubo prateado. Passo a mão no tubo de Russian

P:35

Red, bem guardado em meu bolso. Limonada, 5 centavos, escrito em letra cursiva na placa de Annie e Doreen. Se eu pudesse ganhar meu sustento, talvez não precisasse voltar. Talvez Maria me deixasse ficar. Recebi um caixote de madeira da mulher do café em Jay Street, minha banca era menor que a delas. Limonada gelada, dois copos por dez centavos. A jarra de Maria era de vidro, redonda e achatada, com cerejas pintadas nas laterais. Usei açúcar mascavo em vez de açúcar comum e precisei mexer com força. As cerejas na jarra me deram uma ideia. “Poderia me ceder o vidro de cerejas em conserva que está na geladeira?” Um novo cartaz. Limonada gelada com uma cereja, dois copos por dez centavos. Um sucesso gastronômico precoce. Ainda precisei voltar. Ainda estou tentando ganhar meu sustento. Meu sustento, meu lugar, meu equilíbrio. Tentei ser muito boa na casa de Maria, quase invisível, abrir mão das minhas necessidades, conquistar o coração dela. Vendendo limonada, tentando fazê-la feliz. Quando Fernando me pediu em casamento, havia apenas alguns dias que eu o conhecera, eu era a mesma criança de 8 anos, ansiosa em agradar. Mesmo naquele primeiro momento, as necessidades de Fernando e seus desejos eram límpidos como o ar após a chuva. Disse a mim mesma: “Só dará certo se eu for para Veneza com poucas exigências. Outra espécie de invisibilidade. Fernando deve comandar. E não porque ele sempre comandou, mas porque ele nunca precisa.” Não se trilha um caminho minado, não existe alegria forçada. É só que, entre nós dois, eu sou aquela que já está plena. Não. Eu sou aquela que já está suficientemente plena. “Devem ser as filhas”, penso. É o final de tarde de um dia em que trabalhei sem parar e por isso deixei minha caminhada até o vilarejo para esse momento. Duas mulheres esguias caminham de braços dados um pouco à frente. Uma delas usa jeans e sapatos de amarrar, os cabelos grisalhos puxados para trás em um rabo de cavalo. A outra usa um vestido comprido marrom, o mesmo cabelo grisalho preso em um coque e arrumado casualmente com fivelas de tartaruga. Elas param no caffè para onde também estou indo. Ao entrarem, o barista se aproxima. Faz uma reverência contida primeiro para o coque, e em seguida para o rabo de cavalo. Espantando-o e rindo, as duas trocam saudações com todos que se encontram no pequeno e estreito estabelecimento. Sentam-se e ainda não vejo seus rostos. Para falar a verdade, como eu poderia saber se seriam mesmo da família da Antonia de Biagio? Na habitual pose de indiferença adotada pelos forasteiros, estou esperando minha vez no bar quando o rabo de cavalo se vira para mim, abre um sorriso imenso e se levanta, com as mãos estendidas – as palmas para cima –, como se estivesse se dirigindo a uma saudosa amiga.

P:36

– Você deve ser Marlena. Sou Filippa, filha de Antonia. Venha nos fazer companhia, por favor. Gostaria de chá? – Muito obrigada, mas eu, eu... – Eu sei, eu sei. Biagio nos explicou, tanto ele quanto Giorgia se encarregaram de garantir sua privacidade. Não vamos aparecer sem avisar nem incomodá-la de forma alguma, mas como você está aqui... Estamos perto uma da outra, então ela me puxa em direção à mesa delas. – Antonia, quero apresentar Marlena a você. Marlena, esta é Antonia. Antonia? A famosa Antonia de Biagino? Estarrecedoramente bela, é verdade. As sobrancelhas retas, espessas e ainda escuras destacavam os olhos dela. Antonia está conversando com outra mulher. Duas outras, na verdade, uma que sentou em uma das cadeiras da mesa e outra que está agachada junto a ela, falando em voz baixa. Antonia olha para mim. – Ah, l’americana. Se uma pedra de gelo pudesse falar, teria aquela voz. Sem dizer mais nada, Antonia volta a dar atenção às outras, e Fillipa me conduz de volta para o bar, uma sentinela acompanhando um vassalo depois de uma malsucedida audiência com a rainha. – Se precisar de alguma coisa, conte conosco. Você pode enviar um bilhete por Biagio ou... – Não, não, está tudo indo bem... um bom ritmo para... tão tranquilo... – Não consigo terminar a frase. Antonia foi mesmo tão rude quando me pareceu? – Adorei conhecê-la, Marlena – Filippa está dizendo. – Biagio e Giorgia se desmancharam em elogios. Sentem-se muito importantes... “Uma escritora em casa”. – Ela diz a última frase em inglês. – É, bem, não é assim... – E não fique impressionada com a reticência de Antonia. Para ela, qualquer um que não seja da região é um pouco suspeito. Está com 83 anos e... Dois goles de espresso e saio do caffè. Oitenta e três? Parece mais uma mulher de 60 anos bem conservada. De qualquer forma, parece curiosamente indolente para uma fanática... De fato é bela, mas o jeito com que disse “Ah,

P:37

l’americana”... E por que Filippa – que deve ter mais de 60, já que a mãe tem 83 – se apresentaria como filha de Antonia? Por acaso ou de propósito, Filippa aparece com frequência no caminho que segue o riacho nos finais da manhã, ela descendo enquanto eu subo. Às vezes, vejo-a sentada, lendo ou juntando folhas de agrião que brotam nas margens. Trocamos acenos, saudações e desejamos um bom-dia uma para a outra. Nada além disso. Já são duas, talvez três semanas dessas saudações passageiras quando, certa manhã, ela pergunta se eu encontrei os bancos de pedra que ficam no alto do caminho. Digo que encontrei. – Gostaria de se sentar um pouco? – Sim. – Seu trabalho vai bem? – Ah, claro, estou... – Venho querendo me desculpar com você. Pela grosseria de Antonia... Ela... – Fiquei espantada com a indiferença dela, embora meus primeiros contatos com muitos orvietani tenham sido bem parecidos. Não se preocupe... Fiquei um pouco decepcionada, porque Biagio sempre falou dela com tantas palavras de adoração... – Entendo. Foi o primeiro amor dele, eu acho. Biagio tinha 10 anos quando Antonia veio morar em Castelletto. Ela estava com 18 anos. Desde então ela o enfeitiçou. Mas é o que acontece com todo mundo. Eles a amam. Todo mundo que não ama... – Posso convidá-la para almoçar mais cedo? – pergunto. Para desviar o assunto de Antonia, retiro o pão de minha mochila. Um saco de cerejas. Queijo. Começo a partir o pão, e de dentro do bolso da calça jeans Filippa retira a faca que a vi usar para cortar folhas silvestres. Ela corta uma pequena fatia de pecorino. – Tenho vinho no cantil, se quiser... – ofereço. – Não, está ótimo. Aliás, você não é alemã, é? Quero dizer, os americanos sempre têm uma linha genealógica tão complexa, meio isso, meio aquilo...

P:38

Uma pergunta e uma divagação um tanto estranhas. Só consigo rir, sacudo a cabeça antes de responder. – Não tenho antepassados alemães. Não que eu saiba. Mas por que... – Só pergunto porque... bem, Antonia sofre com antigas feridas de guerra, uma física e muitas outras emocionais. Meu padrasto e um de meus avós fizeram parte da Resistência. Pelo que eu entendo, eles eram a Resistência nessas paragens. Eu tinha 5 ou 6 anos. Não me lembro de quase nada... – Então, para Antonia, a guerra ainda existe. – Não é que ainda exista... mas ela segue o estilo do ancien régime. Rígidas ideias territoriais... Ela continua sensível em relação a qualquer forma de ocupação. Com isso, quero dizer que ela desaprova forasteiros que desejam um pedaço da Toscana para si. – Não apenas os alemães, então... Os americanos também. – Sim, e os ingleses, os holandeses e até outros italianos. Mas ela se ressente mais dos alemães. – É, ela é bem rigorosa... até os italianos? – Antonia não se considera italiana. É toscana. O resto da Itália é apenas um território que cerca a Toscana. Posso lhe garantir que não estou exagerando sobre o modo como ela vê os fatos. – Então todos nós, os outros, somos invasores? – Ah, sim. Para Antonia, são. E à medida que fica mais velha, os sentimentos ficam mais fortes. Ou talvez ela sinta cada vez menos a necessidade de censurá- los. Com certeza suas opiniões foram influenciadas pelo tempo que passa a cada ano com os primos de Gaspari em outra parte da Toscana. Entre Pienza e Montepulciano. Conhece a região? – Moramos por dois anos em San Casciano dei Bagni. Essa área era nosso quintal. – Então talvez você possa começar a compreender. – Não muito. – Muito dos antigos casolari foram adquiridos por estrangeiros. Apartamentos nos vilarejos também. A maior parte por alemães e americanos. Alguns holandeses.

P:39

– Mas isso acontece em muitas áreas da Toscana e da Úmbria. Nos últimos tempos os poloneses e os russos se juntaram às fileiras, e brasileiros, argentinos... – Eu não contaria isso para Antonia. De qualquer maneira, os alemães são a pedra em seu sapato. Ela qualifica os ingleses e os americanos de irritantes. O termo que ela usa para se referir aos alemães é deselegante demais para ser repetido. A alcunha mais moderada para os ingleses e americanos é colonos. Bastante apropriado, não acha? Afinal, tendem a se unir, a falar apenas a própria língua, a lamentar a falta da geleia de laranja e do queijo cheddar, de um hambúrguer decente, ficam irritados porque todas as trattorie preparam a mesma comida... carnes curadas e aqueles pãezinhos com azeite e tomate, massa, massa, massa, costeletas de porco, linguiças, javali selvagem, aqueles pombos nojentos e imensos bifes sangrentos. E panna cotta e tortas de geleia... Sei fazer uma torta melhor. Querem vir para cá porque é diferente e saem por aí tentando reproduzir a imagem do lugar de onde vieram. Filippa é espirituosa. Suas provocações são espertas, o sotaque americano é anasalado. É bom que eu não esteja morrendo de vontade de falar, pois ela deixa pouco espaço entre as acusações. Agora diz: – E existe uma espécie de atitude eduardiana entre eles, principalmente os americanos. Compram uma ruína e estalam os dedos para chamar um séquito de cortesãos para cumprir suas ordens: pedreiros, encanadores, eletricistas, marmoristas, pintores, jardineiros, cozinheiros, empregadas, seu elenco pessoal de adoráveis camponeses. A voz americana volta a aparecer. Ela recita um diálogo entre duas pessoas: Você não acha o máximo Giacinto e Giuseppe? Quer dizer, apesar de cheirarem mal e... E aqueles dentes... É, os dois dentes projetados como... Eu me pergunto se eles conseguem... Eu sei, eu também me pergunto... Mas são uns queridos... Queridos, sim, mas ainda é preciso ficar de olho o tempo todo... Eu sei, eu sei. Todos os camponeses roubam. Está no sangue.

P:40

Meu Charlie está certo. Melhor ficarmos todos juntos. Meu Deus, não é a mais pura verdade? Filippa ri, satisfeita com a comédia, e estou rindo com ela, sacudindo a cabeça e me lembrando de declarações quase idênticas que ouvi pessoalmente ao longo dos anos. Ela tem mais a dizer: – A coisa mais estranha é que os estrangeiros não sabem, fingem não saber ou não se importam com o que os nativos dizem ou pensam sobre eles. Acham mesmo que se alguém da região lhes deseja um bom-dia, acabaram de se transformar em membros da família. Se soubessem... Eles confundem o impulso paternalista característico do camponês com afeição. Quando um camponês, com as mãos nos quadris e os olhos brilhantes, cumprimenta um desconhecido ou lhe deseja felicidade, ele está provavelmente desempenhando um papel. Somos uma raça de atores, mas os camponeses são mais habilidosos do que o restante de nós. Tudo o que existe entre um morador da região e um forasteiro são relações comerciais. E de desconfiança mútua. – Boa parte do mundo gira graças à força da desconfiança mútua. A Itália não tem o monopólio dessa mercadoria. E quanto aos estrangeiros que vêm para a Itália e trabalham durante muitos anos para restaurar não apenas uma casa abandonada, mas também as terras devolutas que os próprios toscanos deixaram para trás depois da Guerra, quando trocaram a miséria de ser um meeiro pela de um operário? E quanto aos que... – Sim, sim, mas eles fazem isso por diversão... entretenimento. Eles se imaginam senhores de terras e desfilam por aí como barões porque espremeram oito litros de óleo de suas árvores e depois saem para exibir o feito como se fosse uma obra de arte. “Já viu? Já viu o azeite do Jack?” – Ela volta a guinchar com um sotaque americano. – E para qual círculo do inferno você destina os estrangeiros que vivem aqui durante os melhores anos de suas vidas, aqueles que... – Está se referindo aos estrangeiros que, depois de largar tudo, vêm para cá porque é o único lugar do mundo onde desejam estar? Aqueles que não têm outra casa em Frankfurt ou Los Angeles ou em alguma cidadezinha perto de Amsterdã? Aqueles que abraçam a comunidade e que levam a mesma vida dos moradores locais? Esses pertencem a outra categoria. São raros. Não estamos falando deles. – Compreendo.

P:41

É claro que não compreendo de forma alguma. Filippa tira o elástico que prende seu cabelo, puxa a cabeleira cacheada mais para cima da cabeça e recoloca o elástico. Olho para ela e tento encontrar em seu rosto algum traço da fisionomia da mãe, alguma característica que eu tenha guardado. O rosto de Antonia tem formato de coração, com uma testa larga e achatada, maçãs do rosto salientes e um queixo pontudo. O nariz longo e fino é perfeito para gestos arrogantes. Já Filippa tem uma faccia piena, um rosto cheio. Seus grandes olhos azuis, claros como o gelo de um lago do norte, são os mesmos de Antonia. Como se tivesse acabado de perceber que vinha zombando de americanos diante de uma americana, Filippa para e sacode as mãos. – Espero que entenda que o que eu disse não tem relação com você, é claro. Você é casada com um italiano, você é... – Tudo bem. De verdade. O seu ponto de vista é o do nativo. Já ouvi isso antes. Dos venezianos, dos san cascianesi, dos orvietani. Exposto, porém, com menos... hostilidade. – Eu... bem, eu estava apenas... – Não estou ofendida. Nem discordo de muitas de suas impressões. – E onde você se encaixa? Entre os forasteiros? Entre os habitantes? – Na maior parte do tempo, fico na minha. Nunca fui muito boa bancando a expatriada. Costumo me juntar ao coro dos habitantes do lugar onde estou, embora sempre tenha consciência de que não sou nem posso me transformar em habitante. Fico feliz por não pertencer a nenhum lugar. Ou quem sabe a todos os lugares? Não consigo decidir. Filippa me encara, baixa o olhar quase como se estivesse constrangida por mim. Posso ouvir seus pensamentos: “Poveretta.” Ela é quarta, quinta ou sexta geração de toscanos? Com certeza sou uma aberração para ela. E para a maioria das pessoas. “Onde fica seu lar de verdade? Você não sente falta de casa? – Pertencer a nenhum lugar ou a todos não é o mesmo que ser meio nômade, solta na vida e sem vínculos. As paredes e as janelas erguidas em determinado terreno podem ser maravilhosas e amei todas as que tive, mas por que me restringiria a elas? É o lar que fica dentro de mim que eu não consigo abandonar. – O lar que fica dentro? Você quer dizer...?

P:42

– A “festa móvel”, a paz que me acompanha nas viagens. Autoconfiança. Eu a construo tijolo a tijolo desde a infância. Filippa se curva para tirar uma cigarreira de prata do bolso da jaqueta de tweed que ela despiu e deixou cair entre ervas e flores silvestres. Ela me oferece um cigarro e eu sacudo a cabeça. Observamo-nos com atenção enquanto ela risca um fósforo em uma minúscula caixa vermelha. Depois sorri e, jogando a cabeça para trás para recostar-se no tronco de um carvalho, traga profundamente. Faminta de fumaça, ela a engole e solta o pouco que não conseguiu engolir em minúsculas nuvenzinhas desfeitas. Ela me olha. – Você fala como Antonia. – Desculpe-me, mas sinceramente espero... – Ah, não. Não me refiro ao comportamento que você viu no vilarejo, de forma alguma. Você é muito contida. Ao mesmo tempo, é espirituosa como ela, e igualmente misteriosa. Você disse: “Sou feliz sem pertencer a nenhum lugar.” Antonia também diria isso. Sem esclarecimento posterior. Qual era o nome do filme em inglês? Five Easy Pieces. Algumas palavras incisivas. Ponto final. Mesmo quando Antonia é grandiloquente, resmungando ou pregando, recordando, mesmo então, temos a impressão de que ela omite exatamente a melhor parte. A pior parte. Um de meus truques. “Coitus interruptus verbal”, alguém chamou assim. “Você provoca”, dissera ele. Outro acrescentou: “Você fala por meio de identidades falsas, mas sei que um dos personagens é você.” O vento bate, fresco, sedutor, e o capim alto se dobra quase até o chão, permanece curvado por um ou dois segundos e depois volta a se erguer, curva-se de novo, e as flores com longas pétalas amarelas, cabeças inclinadas de forma insolente, dançam entre suas folhas. Eu digo: – É verdade. Tenho mais facilidade para escrever do que para falar. – Isso provavelmente facilitou as coisas para você, que vive em meio a uma classe de oradores. – Acho que sim. – Então você está feliz em pertencer a nenhum lugar e Antonia está feliz em pertencer somente à Toscana. E se cercar apenas de toscanos. Mas há outros na família que adorariam vender uma parte da terra, algumas das construções

P:43

ociosas ou talvez transformar Castelletto em uma espécie de retiro turístico. Um resort. Acomodações, restaurantes. Talvez um campo de golfe. Uma piscina. Basta Antonia ouvir isso para ela fazer um alvoroço. – Eu não teria imaginado que haveria um número significativo de desconhecidos batendo nas portas dos corretores imobiliários por aqui. Ou julgaria que só atrairia os turistas mais aventureiros. A região, mesmo maravilhosa, dificilmente se encaixa na imagem que as pessoas que sonham com a Itália têm da Toscana. – Essa é a questão. Aquela outra Toscana está ficando sem propriedades. A Úmbria costumava ser chamada de “a próxima Toscana”, e você, que mora onde mora, tem que admitir que as previsões estavam corretas. Há quem diga que nossa região da Toscana é a próxima. – Então seu temor, o temor de Antonia, em relação à “ocupação” é, por enquanto, apenas teórico? – Teórico, sim. Mas, como eu disse, uma parte da família quer apressar o processo. Há uma grande desavença, talvez insuperável, entre nós. – Acho que só as famílias com um único membro não contam com desavenças. E, mesmo assim, nem sempre. E a sua, quantos vocês são? – Depende de quem for responder a você. Antonia diz que somos sete. Sete mais Biagio e Giorgia. De certa forma, ela tem razão. Nossos homens, maridos, amantes, companheiros, vêm e vão ao longo dos anos. Meu Umberto é o único que permaneceu constante. Antonia insiste que nossos 43 anos de casamento ainda não são suficientes para lhe garantir a condição plena de integrante da família. E ele é um de Gaspari. Primo em terceiro grau. Fomos apresentados em um casamento, quando ele tinha 16 anos e eu, 12. Ela quer me falar mais e meu sorriso a convida. Gosto mais dessa Filippa, sem a voz zombeteira. Soltando o cabelo, ela volta a ter 12 anos. – Mesmo naquele tempo, a gente sabia o que estavam querendo aprontar. Nós dois dóceis, cada um de seu jeito, deixamos que eles fizessem planos, beliscassem nossas bochechas e revirassem os olhos. E calculassem o que cada um dos lados ganharia com a união. – E foi só isso...? – Em algum momento, nós realmente nos apaixonamos. Não me lembro se foi em outro casamento ou talvez em um funeral. Numa reunião familiar

P:44

obrigatória. Lembro que eu tinha 17 anos e ele estava perto de ser laureato quando começou a fazer visitas a Castelletto. Certa vez trouxe o pai, e os três, Umberto, seu pai e Ugo, meu padrasto, passaram horas infindáveis caçando ou montando a cavalo, vagando pelo caminho dos carvalhos, todos corados, rosados, vozes estridentes, de braços dados. Necessidades entrelaçadas. O anel de rubi da mãe de Umberto deslizou para meus lábios com o último gole de vinho tinto durante o jantar, certa noite, e todos na mesa sabiam da surpresa dele, menos eu. Sim, acho que estávamos mesmo apaixonados. Depois de todos esses anos, concordamos na maior parte dos assuntos, ficamos à vontade um com o outro. Rimos muito. Nunca desejei um grande amor que me consumisse, e Umberto é todo o amor de que eu necessito. Às vezes, porém, me pergunto como seria aquele outro tipo de amor. Acho que deve ser assustador. Filippa desvia os olhos e diz as últimas palavras mais para si mesma do que para mim. Voltando a me olhar, ela fala: – Umberto, minha irmã Luce e eu tomamos conta das fazendas. Da parte comercial. A venda do azeite, do vinho e, ultimamente, do queijo. Outras colheitas. Nosso trabalho abrange cada vez mais aquilo que foi, no passado, de responsabilidade de Biagio. Oficialmente, Biagio permanece como o fattore, mas, com o passar dos anos, nós e um pequeno grupo de pessoas lhe oferecemos apoio. Antonia percebe como é forte o senso de propriedade que há em Biagio. Guai a chi lo tocca. Ira contra aquele que o toca. Ela e Biagio são... bem, os dois têm uma longa história. Amici del cuore, amigos do coração, um defenderia e protegeria o outro até a morte. – Você disse que ele era apenas um garotinho quando Antonia... – Sim, um garotinho que nasceu velho, que nasceu sábio. – Então tem você e Luce... – Maria-Luce. Maria da Luz. Ela recebeu o nome da minha avó paterna. Pelas histórias que Biagio e Antonia nos contam, a primeira Maria-Luce e Antonia eram inseparáveis. Ela morreu logo depois de meu pai. Quando eu ainda era um bebê. – Só vocês duas então, você e sua irmã... mais ninguém? – Ninguém. Só Luce e eu. Você ainda não a conheceu, não é? Ela quer vir aqui para cumprimentá-la... Acabou de voltar dos Estados Unidos. Reuniões com importadores... de vinho, azeite e alguns outros de nossos produtos.

P:45

– Ela é... vocês são parecidas? – Não muito. Somos parecidas fisicamente, mas temos personalidades diversas. Luce é animada, extrovertida, perfeita para o papel de representante de Castelletto para o mundo lá fora. Prefiro os bastidores. – É casada? – Já foi. No segundo ano da universidade, em Bolonha, teve um romance com um estudante de medicina, Pietro Beneventano da Siracusa. Vinha de nobre linhagem siciliana, mas tinha os bolsos vazios. Casaram-se numa manhã de sábado na prefeitura de Bolonha, trocaram de roupa e começaram a cuidar da tarefa de transferir os pertences de Pietro para o apartamento que Luce dividia com uma colega do curso de arquitetura. Depois partiram para L’Osteria del Sole para beber com os amigos. Luce informou Antonia por telegrama. Antonia e eu, acho que Umberto estava conosco, conhecêramos Pietro durante uma visita a Luce alguns meses antes. Antonia disse que ele era uma creatura simpatica e ficou maravilhada com seus olhos... petrolio, conforme ela descreveu, negros com raias de verde e prata. “Como se os árabes e os normandos ainda estivessem lutando naqueles grandes poços negros”, arrematou. Filippa faz uma pausa e depois prossegue: – Mas, a partir de então, Luce só mencionava Pietro de passagem, nunca o convidava para Castelletto, parecia feliz em rever seus antigos namorados quando fazia visitas nas férias. Por isso, a notícia de seu casamento com Pietro foi um choque. Depois que Sabina nasceu e eles se separaram, foi Pietro quem apareceu para fazer uma visita. Foi ele quem explicou para Antonia que os dois só se casaram para que a criança fosse legítima. Antonia e Ugo, o pai de Luce, meu padrasto, ofereceram-se para criar Sabina em Castelletto enquanto Luce concluía os estudos. Mas minha irmã, que recusou até um aumento na mesada, fez tudo sozinha. Conseguiu alugar um apartamento maior, contratou uma babá em tempo integral, e ela voltava correndo das aulas para amamentar Sabina, para brincar com ela, passear pelo campus ou sob os pórticos dos antigos palazzi. Com frequência, ela a colocava em uma bolsa canguru presa ao peito e a levava para palestras. Nas salas disponíveis da universidade, ela pôde dar aula de conversação em italiano, três vezes por semana, para um grupo de mais ou menos vinte estudantes estrangeiros. O pouco que cada um lhe pagava ajudava com a despesa do aluguel. Luce nunca perdeu o prumo. “Nem você”, penso eu. Sou um acessório de sua peça de Strindberg, poupando- lhe de falar com as árvores. Sozinha. Agora sem botas, quase deitada no banco

P:46

de pedra, minha bolsa é um travesseiro. Filippa prossegue: – Minhas meninas tinham 4 e 2 anos nessa época. Viola, a mais velha, e Isotta, a caçula. Uma vez por mês, ou mais, eu levava as duas de carro até Bolonha e passávamos alguns dias com Luce e Sabina. Com três crianças com menos de 5 anos, vagando pelas feiras, cozinhando, limpando, alimentando e banhando, quando tudo ficava finalmente em paz, eu me deitava no sofá perto da escrivaninha de Luce e lia durante metade da noite, enquanto ela escrevia seus trabalhos. Debruçada e olhando para o outro lado, às vezes eu erguia um braço por trás da cabeça, estendia a mão em sua direção e, sem dizer nada, sem tirar os olhos do trabalho, ela esticava a dela ao encontro da minha. Também, de vez em quando, Luce vinha para perto de mim, se sentava a meu lado, abaixava-se para me dar um beijo, dizer algo do tipo “Nunca poderíamos fazer isso se mamma estivesse aqui; ela estaria comandando o espetáculo, dando ordens para que fôssemos aqui e ali...” Embora eu não concordasse, eu não dizia nada. Como se Luce tivesse uma mãe diferente da minha, eu nunca compreendi por que ela se sentia assim, por que o que era verdade para ela não era para mim. Não naquele tempo, não naquele momento. Eu não compreendia. Mas agora entendo. Minhas próprias filhas, Viola e Isotta, tiveram mães diferentes. Ainda têm. Mas como isso acontece? Amamos um filho mais do que o outro dependendo da forma como eles nos amam? Será que Viola era mais fácil de ser amada por demonstrar um amor ardente por mim? O amor, de todo o tipo, não seria aquecido ou esfriado pela reciprocidade? Acho que sim. Filippa continua: – Ou será que uma criança sente que é menos amada do que outra e então se torna seu próprio soldado, defendendo-se da dor desse sentimento? Ou da dor daquela verdade? E então se faz mais difícil de ser amada? Talvez comece conosco. É mais provável que tenha começado muito antes de nós. Alguns diriam que a dor é transmitida assim como os traços do rosto, o formato dos olhos. Não acredito. Não quero acreditar. – Isso também parece coisa de Antonia. Filippa esfrega a unha de um polegar na pedra áspera do banco, lixando energicamente sua ponta. Olha para a unha e volta a esfregá-la na pedra. – Você tem filhos? – Tenho um casal. Os dois são ótimos, ambos embarcaram em suas próprias jornadas, embora sejam um tanto diferentes.

P:47

– Diferentes de você ou um do outro? – As duas coisas. Filippa me olha, espera que eu fale mais. Tudo o que consegue é meu sorriso, enquanto começo a guardar as coisas na mochila. Abro e fecho o zíper dos bolsos, rearrumando. Afasto os pensamentos de minha filha. Sem me esconder, sem fingir, jogo uma velha cortina escurecida em minha mente. Por trás dessa cortina, a voz dela ainda está nítida, mas não tão próxima: “Mãe, você me feriu.” De várias formas. Claro que sim. Eu queria muito que você tivesse me conhecido quando eu tinha sua idade. Ou quando eu tinha 10 anos. Queria um conto de fadas para você e talvez tenha sido assim que eu mais lhe feri. – Já está voltando? – pergunta Filippa. – Por que não fica um pouco mais, é a hora mais bela da tarde, não acha? Não consigo me lembrar da última vez em que tive tanto para dizer a alguém. Deixe-me terminar de falar sobre Luce e então você pode ir... Vejamos... Quero ficar e quero partir, mas é Filippa quem decide por mim e reassume seu Strindberg. – Depois que se formou, ela trouxe Sabina para casa. Depois de Luce demonstrar sua independência, sua atitude possessiva em relação à filha... então, bem... Sabina é uma mulher extraordinária, aliás. Devotada à mãe e à avó, escolheu o papel de pacificadora. Ou será que era o único papel que ainda estava vago? É casada com Gianluca, comandante da marinha e professor da Accademia Navale, em Livorno. Gianluca vive no apartamento deles na cidade, enquanto ela permanece aqui aparando as arestas entre Luce e Antonia, e cuidando da casa com Giorgia. Gianluca se encontra com ela nos fins de semana. Como eu disse, nossos homens vêm e vão. – E como são suas filhas? – Viola é a mais velha. Uma beldade de um jeito parecido com o de Antonia. Seu tipo de beleza é um dom, eu acho. O tipo imperfeito, aquele que dura para sempre. Ela também demonstra algumas das qualidades de Antonia, embora de uma forma toda sua. Antonia morre de amores por ela e permite suas excentricidades. Viola foi estudar na França e permaneceu lá até entrar na casa dos 20 anos. Começou a estudar enologia e acabou se tornando aprendiz em uma prestigiosa propriedade em Bordeaux. Casou-se com o caçula daquela família. Uma verdadeira fábula, com cerimônia de casamento ao crepúsculo entre vinhas de folhas amarelas, recém-colhidas, sob um sol cor-de-rosa e dourado. Voltou para casa depois de três anos. Nunca se divorciaram oficialmente, mas...

P:48

Depois que passou a cuidar da produção do vinho daqui, ela fez disso um grande sucesso. Tornou-se a queridinha das publicações de vinho da Europa. Como eu disse, uma beldade. Filippa faz uma pausa e depois prossegue: – O apartamento dos de Gaspari em Florença é onde Viola mora no inverno e onde Antonia e eu costumamos ficar. Com ela e seu companheiro, seu fidanzato de longa data. Un vero fiorentino, um autêntico aristocrata florentino, ele é mais velho do que ela. Do que eu também. Vagando em meio às glórias sombrias dos antigos aposentos, ficamos bem quando estamos juntos, os quatro, um buscando conforto no outro. Durante o dia cada um faz o que quer e de noite ficamos juntos. Principalmente no Frescobaldi. Depois fazendo uma algazarra no silêncio fantasmagórico da Signoria, cantando “Che gelida manina” sob a loggia perto de Judith e Holofernes, vamos nos sentar e cumprir o ritual de tomar uma xícara de chocolate no Rivoire. O inverno combina com Florença, não acha? Ela continua: – Ah, sim. Eu estava lhe falando sobre minha Viola. Ela é feliz do jeito que as mulheres que tiveram mais de uma vida podem às vezes ser. Vivendo com determinação antes que os arrependimentos pudessem contaminá-las. Ela está satisfeita com suas decisões. E prospera. O mesmo não acontece com Isotta. – Como é Isotta? – Uma avvocato. Uma advogada que divide sua firma e às vezes sua vida com Guglielmo. Embora mantenham um pequeno escritório aqui na aldeia, onde Isotta cuida de boa parte dos assuntos de trabalho, a sede é em Gênova. Guglielmo mantém um apartamento por lá. Ela diz que ele também mantém uma mulher. Isotta oscila entre o desespero e a discrição, encontrando consolo ora num ora noutra, nunca exatamente para devotar-se a ele. Minha filha tinha 20 anos e viajava com colegas quando se apaixonou por um belga. Um belga casado com quem ela teve uma filha. Magdalena está com 18 anos. Embora ele não tenha voltado a aparecer na vida dela, e nunca tenha aparecido na da filha, acredita-se que Isotta ainda não se recuperou do episódio. Por compreender isso, Guglielmo espera. Ele vem a Castelletto em quase todos os finais de semana. Além de seu rapporto com Isotta, Guglielmo é o avvocato di fiducia, procurador, de Antonia. O pai e o avô dele eram advogados dos de Gaspari e por isso ele tem uma ligação histórica com a família. Antonia fica do lado de Guglielmo, chama Isotta de boba. Não falamos que existem desavenças? Pode-se dizer que Isotta as cultiva. Com Guglielmo, com sua irmã, com sua filha, comigo. Com Antonia.

P:49

– E você... você com Luce? – Nós tentamos. Embora Luce sempre tenha acreditado que eu fosse a filha preferida de Antonia, nós tentamos. Ela e eu. E o desapreço mútuo entre ela e Antonia, apesar das intervenções de Sabina, é notório. Ao mesmo tempo, uma não consegue viver sem a outra. Luce tem inveja de Antonia. De sua beleza, de seu encanto, é claro. Mais ainda, eu acho, de sua coragem. Antonia nunca deixou de fazer o que precisava ser feito. Na maior parte do tempo, parecendo que tudo era fácil. Uma personagem formidável para servir de exemplo a uma filha. E depois há aquele feitiço que Antonia lança por onde passa. O mundo sorri para Antonia, e acho que será sempre assim. É uma característica nata, e não adquirida. Acho que quando eu estava crescendo eu desejava que Antonia fosse diferente. Menos vibrante. Mais parecida com as outras mães. Luce nunca abandonou este desejo. Elas permanecem na clássica disputa entre a adolescente e sua mãe. Como acontece com muitas mulheres. Com o tempo, Luce parece ter me colocado junto de Antonia no âmbito de suas intenções de punir e de reverenciar, tudo executado com simpatia. Eu? Não aceito nem uma coisa nem outra. Para mim, Luce se desvaneceu de tal forma com o passar dos anos, que às vezes não consigo enxergá-la. Com os olhos fechados, Filippa parece ter chegado ao final do primeiro ato. Sem falar nada, calço as botas, deixo-as desamarradas e pego minha bolsa. Digo em voz baixa: – Filippa, foi um prazer... Mas ela desperta, sem permitir que eu me despeça. – Precisa mesmo ir? Eu... – Foi ótimo e, bem, conversamos sobre tantas coisas... – Eu falei sobre tantas coisas... com uma ouvinte tão paciente... Ela pega a jaqueta no chão, sacode as folhas de capim, as flores e a veste... – Espero que me desculpe. Por aqui, todo mundo já sabe tudo sobre todos, ou pelo menos acham que sabem, por isso... eu não tenho a oportunidade de falar com alguém novo com muita frequência. – Antonia se encarrega disso, tenho certeza... Rimos, e ela quase chora de tanto rir. Filippa estende o braço para arrancar uma

P:50

folha do carvalho atrás dos bancos e limpa-a com a lâmina da faca. Coloca no bolso da jaqueta. Eu estico minha mão para ela, viro-me e começo a descer pelo caminho em um passo um tanto arrastado, pois minha perna esquerda está dormente, mas Filippa continua a falar. Fingindo não ouvir, eu viro para acenar. Ela está correndo atrás de mim. – Quase esqueci. Você está convidada para o jantar de hoje à noite. Apresentação de honra. – Eu, eu não... você compreende que... Quer dizer. Espero que sua mãe não se sinta ofendida, mas... – Que divertido... a ideia de Antonia se sentir ofendida. Ela entende muito bem sua intenção de permanecer sozinha, mas pede que abra esta exceção. Acho que você despertou a curiosidade dela. Ou talvez a ideia que ela faz de você tenha despertado essa curiosidade. – Filippa, não posso... – Va bene. Se mudar de ideia, saiba que será bem-vinda. Acho que seremos onze hoje à noite. Em grupo é mais seguro. Buon lavoro. Bom trabalho. Mexendo na bolsinha que está no bolso da jaqueta, mais uma vez ela adia minha partida. Temo que ela esteja prestes a falar de novo, mas em vez disso se debruça em minha direção e põe uma das mãos no meu rosto. – A propósito, nós usamos roupas formais no jantar. Antonia prefere assim.

P:51

4 Quando volto para casa, subo na cama de princesa e começo a leitura dos textos escritos pela manhã. Tento lê-los. Quanto das sete vidas das sete mulheres Filippa me relatara? Eu devia ter feito uma fogueira e trazido uma colcha. Mais um pedaço de queijo. Penso em como Filippa se distancia da típica discrição toscana e minha cabeça gira com ex-maridos franceses, amantes belgas, casamentos arranjados, céus róseos e dourados, mães e filhas, nobres florentinos, alemães agressivos, colonos eduardianos. Guglielmo mantém um apartamento por lá. Isotta diz que ele também mantém uma mulher... Há uma desavença, grande e insuperável, entre nós. Você fala como Antonia. A propósito, usamos roupas formais no jantar. Antonia prefere assim. Deixo as folhas de lado, tiro a roupa e vou para trás da cortina de encerado verde. Uma longa chuveirada. Pronta para um bom jantar. Acho que seremos onze hoje à noite. Em grupo é mais seguro. Não é que eu tenha mudado de ideia. Que eu tenha reconsiderado o convite, decidido aceitá-lo. É que – mesmo enquanto eu o recusava – era indiscutível que eu estaria lá. Filippa sabia disso antes de mim. Será que ela também sabia que, embora eu tivesse ficado estarrecida com uma parte do que me contara, eu havia aplaudido seu desempenho, apreciado ouvir uma italiana divagar sobre suas reflexões e conclusões? Por nove anos tenho me sentado e me levantado, caminhado e me deitado ao som de discursos repletos de baboseiras. Os italianos voltam atrás em suas palavras. O que é berrado e jurado sobre a bruschette e algumas finas fatias de finocchiona é retirado entre garfadas cheias de pappardelle con funghi porcini que se leva à boca delicadamente aberta, desconsiderado enquanto se desliza um pedaço de casca de pão sobre os caldos com vinho de um brasato e – ao se limpar, com a ponta do guardanapo, uma sujeirinha de zuppa inglese do queixo bem esculpido – volta a ser proposto. Os italianos vivem retirando o que dizem. Entre eles mesmos e, duas vezes mais rápido, com os estrangeiros. Basta um caso para ilustrar o que digo... No início da minha vida de expatriada, sentei-me em meio ao cheiro de suor, urina e perfume caro do compartimento da primeira classe de um trem rumo a Milão. Era de manhã cedo. Eu estava sozinha com um homem, que contribuía mais do que eu para dar o toque de perfume caro à atmosfera do vagão. Tweed escuro, olhos escuros – de Santa Lucia até momentos antes de nossa chegada à Centrale e em uma voz mais paternalista do que lasciva, ele propunha os êxtases de uma tarde passada em sua companhia. De forma eloquente, ele prosseguiu

P:52

com a ladainha, enquanto eu olhava pela janela. De vez em quando, porém, eu não conseguia evitar um olhar de desdém em sua direção, diante de tantos absurdos. A única vez em que falei algo foi para um fiscal quando, com o trem ainda esperando a partida em Veneza, ele aparecera para pegar as passagens. Diversas vezes, durante a viagem, deixei o compartimento para dar uma olhada nos outros vagões, em busca de um assento diferente. Os poucos que sobravam ou que se tornaram disponíveis prometiam ainda menos serenidade do que o meu com o galã de fala mansa. Enquanto o trem chegava a Milano Centrale, levantei- me, juntei minhas coisas, desejei um bom-dia ao tweed escuro e cheiroso. Ainda sentado, o homem colocou sua mão com leveza sobre meu braço. Com os olhos escuros sorridentes, ele então me disse: “Presumo que você pensa que andei lhe fazendo alguma proposta. Ah, cara straniera, está completamente enganada. Você pode conhecer as palavras, poveretta, mas o que são elas sem o legado de alguns milhares de anos de implicações metafóricas?” Rejeitado, ele não me deixaria partir sem me garantir que eu é que havia sido rejeitada. Um recurso astuto usado com resultados brilhantes no xadrez, na esgrima, em qualquer tipo de combate entre inimigos, amantes ou vizinhos de assento em um trem. O fato de Filippa ter se mantido fiel a um mesmo ponto de vista por metade da manhã e durante boa parte da tarde – embora eu não compartilhasse de sua opinião – fez com que eu me sentisse revigorada. Lustro minhas botas com um calzonetto, mas continuam surradas e a terra da Toscana se prende às travas dos calçados Doc Martens. Azeite de oliva num pano de prato já esgarçado, massageio o couro amolecido pelo tempo, bato as botas contra a parede para soltar a lama ressequida das solas. Melhor. Das poucas roupas que tenho comigo, escolho uma longa saia preta e justa e, sobre ela, coloco um velho vestido preto Marithé, dando um nó ao lado do quadril com as pontas dele. Apoiada sobre um dos joelhos, tranço o cabelo diante do espelho Campari Soda, prendo as espessas tranças ruivas sobre a testa. A senhora Antonia vai ficar surpresa ao ver que uma pagã americana utiliza grampos de tartaruga iguais aos dela. Opium. Pronta. O portão principal de Castelletto fica a 1,2 quilômetro de subida por um caminho de cascalho branco, a partir do ponto em que termina a trilha do riacho. É o que diz Biagio. Nuvens azuladas encobrem uma meia-lua de maio no céu que escurece enquanto parto colina acima, com uma pequena caixa de bombons Montanucci na bolsa, o presente de Fernando sacrificado para minha anfitriã.

P:53

Penso em Biagio enquanto caminho. Como costuma fazer na maioria das tardes, ele apareceu para o chá, hoje às cinco horas. Nosso ritual informal. Se fui para o vilarejo a essa hora ou se ele ainda está ocupado, ambos compreendemos. Às vezes, ele vem junto com Giorgia. Na maioria das vezes, vem sozinho. Hoje depois de testemunhar – como ela disse mesmo? – que eu vivo em meio a uma raça de oradores, acolho o bálsamo do querido Biagio. Como sempre, ele anuncia sua chegada cantarolando em falsetto. – Amore mio, sono io. – Vieni, vieni, sono qua. Ao entrar, ele pendura na maçaneta seu antigo basco cinza, com o forro de seda preto e branco rasgado. Esfrega as palmas das mãos diante do fogo, mesmo quando não está aceso. Ou será que ele age como quando está diante de algo que o agrada? Muita coisa agrada Biagio. – Come va? – pergunto, cumprimentando-o com três beijos. – Magnificamente bene – responde. – Querido Biagino, você sempre parece estar magnificamente bem? – Acho que sim. Talvez por causa de uma coisa que meu pai me disse quando eu era um menino. Homem de poucas palavras, certo dia enquanto trabalhava a meu lado na lavoura, ele se levantou e olhou para mim, acocorado, escavando batatas. Ergueu o olhar para o sol, secou o rosto com a manga. Então disse: “La morte é più vicina della camicia, figlio mio. A morte está mais próxima do que sua camisa, meu filho.” Eu não tinha a mínima ideia do que ele queria dizer, por ter 8 ou 9 anos na época. Talvez sessenta anos tenham se passado antes que eu voltasse a pensar naquelas palavras. Num dia quando olhava no espelho e vi este velho refletido, comecei a compreender o que meu pai queria dizer. “A morte está mais próxima do que sua camisa.” Desde então, todas as manhãs quando pego minha camisa, io faccio le corna, faço chifres contra a morte, antes de vesti-la. Até agora tem dado muito certo, e não importa o que eu esteja fazendo, pensando ou sentindo, existe sempre uma pequena sensação de contentamento por ter enganado a morte mais uma vez. Coloco os dedos na posição correta: mínimo, indicador e polegar estendidos, os outros dobrados. Faço com as duas mãos, levando-as em direção ao piso de pedra. Um voto geral de boa sorte. – Brava – diz ele –, mas amanhã lembre-se de sua camisa, está bem?

P:54

Faço um ligeiro estardalhaço em torno do chá, usando coisas que trouxe de casa. Uma chaleira Staffordshire que ele parece amar loucamente, passando os dedos calejados sobre o desfile em azul e branco de senhoras, com crinolinas e cachinhos, tomando chá sob um salgueiro à beira de um riacho. Duas xícaras que quase fazem conjunto com a chaleira, se não fosse pela cor. Nada de açúcar ou leite para nós, apenas pratinhos com geleia ou compota de pêssego ou figo das feiras ou o marmelo ao rum que Giorgia me traz em jarras de um litro. Aqueço- o até se tornar líquido e então bebemos como se fosse sopa ou misturamos ao chá. Biagio gosta. Ele termina, dobra o guardanapo quatro vezes até formar um pequeno triângulo, coloca-o na bandeja para a próxima vez. Hoje eu queria ter lhe contado sobre o tempo que passei com Filippa, mas não lhe disse nada. Chego ao alto da colina e lá está. Il Castelletto. Jesumaria, é como se fosse um pequeno vilarejo aqui em cima. Com botas de montaria e jeans, uma camisa avolumando-se sobre a cintura fina, com cinto, um colete de camurça de cor castanha, cabelo grisalho longo e belo, ele sai da penumbra de uma varanda magnífica e ampla e fica sob a luz amarela de candeeiros pendurados nas vigas. Ele carrega uma grande braçada de lilases. – Buona sera, signora. Sono Umberto. Benvenuta a Castelletto. E’ una serata splendida, no? Boa noite. Sou Umberto. Bem-vinda a Castelletto. Está uma noite esplêndida, não acha? – Ele estende o cotovelo para que eu possa apertá-lo, gesto de saudação que eu considerava exclusivo dos chefs de cozinha com mãos molhadas. Gosto desse Umberto. Sigo em direção à porta, para abri-la para ele, mas Filippa já está ali, ao lado de outras duas. Luce e Isotta. Luce, a irmã de Filippa – perfeita para o papel de representante de Castelletto para o mundo lá fora –, e Isotta, a filha mais velha de Filippa – Não falamos que existem desavenças? Pode-se dizer que Isotta as cultiva. Acho que acertei. Aperto as mãos estendidas, ouço com atenção as apresentações feitas por cada uma, tento associar os nomes aos rostos, tarefa que não é tão simples neste grupo de sósias. “Grazie, grazie”, respondo ao coro de “benvenuta” enquanto Antonia abre caminho entre elas. Sem dizer uma palavra, ela põe a mão nas minhas costas, como uma professora de dança faria com uma criança tímida, e me impele pelos ladrilhos vermelhos surrados, fazendo-me atravessar um corredor iluminado a velas, adornado por tapeçarias, até chegar a um aposento amplo como uma catedral.

P:55

– Ecco, olhe – diz ela. – Si accomodi. Fique à vontade. A luz das velas e da lareira cria uma névoa opala no ar e seria difícil precisar a época desse salão infinitamente comprido e amplo. Tetos com vigas de madeira, tapetes turcos em vermelho e amarelo lançados sobre ladrilhos encerados, as paredes parecem avermelhadas como um pêssego maduro. Velas largas de cera de abelha reluzem como tochas em candeeiros de ferro negro colocados entre amplas portas duplas envidraçadas que se abrem para a varanda e, mais além, para as videiras e oliveiras e os picos retorcidos das montanhas. Velas finas de cera de abelha em um candelabro de prata avançam pelo centro da mesa de refeições, descoberta, a madeira antiga clareada por limpezas ancestrais. Catorze poltronas revestidas por capas de lona cor de marfim são distribuídas um tanto afastadas naquele espaço monumental. Percebo agora que o lilás não é branco como imaginei, mas amarelo bem claro, e galhos inteiros estão entrelaçados aos braços e pés do candelabro. O lilás tremula em imensos vasos brancos e azuis colocados em cada lado de um aparador no estilo império, derrama-se de vasos rasos de terracota ao lado de divãs de seda amarela, de forma que a pessoa esbarra neles quase sempre que se move, mandando as florezinhas para os ladrilhos e os tapetes. Em amplas cornijas douradas, nature morte de diversas épocas estão penduradas, uma sobre a outra em uma parede inteira, de cima a baixo. Em todas as mesas e prateleiras, amontoadas no interior de cristaleiras, há fotografias em molduras de prata, a maioria delas um tanto escurecida. Os únicos objetos em maior número do que as velas e as fotos são os livros. Pilhas deles oscilam perto de cada cadeira, e estantes que vão do chão ao teto cobrem as paredes com uma área de pelo menos 12 metros. Cortinas de veludo vinho drapejadas com longas franjas dividem o espaço, não exatamente em “aposentos”, mas sim em “cenas”. Na extremidade oposta começa a cozinha. A luz de velas dá lugar à eletricidade com lâmpadas de 15 watts no formato de chamas que reluzem em lustres de ferro trabalhado. Na cozinha de Antonia deve parecer estar sempre anoitecendo. Cadeiras estofadas com plumas e sofás de dois lugares, um piano de meia cauda em ébano, um tanto surrado, a tampa aberta, a poucos metros das bancadas de trabalho, dois Bertazzoni com cinco bocas, um Aga branco. As quatro mulheres se ocupam com a preparação de numerosos itens, trocando exclamações sobre o progresso, o tempo, os acontecimentos do dia. No intervalo, cantam stornelli – canções folclóricas da Toscana – com uma esplêndida locução digna de Dante, os Cs glotais soando quase como se falassem castelhano. Antonia as acompanha. Eu gostaria de saber a letra. Alguém aperta um botão e os lamentos selvagens de Vasco Rossi entregam un senso della vita. Desta vez eu sei a letra. Aventais pesados de algodão negro protegem o que parecem ser vestidos vintage

P:56

dos anos 1940 – seda com estampas florais e leves ombreiras, saias na altura da panturrilha –, elas são como parentes afetuosos, metendo-se no trabalho das outras, cantando com toda a força de suas vozes enganiçadas. Embora Filippa seja a irmã mais velha, com uma diferença de seis ou sete anos – não foi o que ela disse? –, ela parece bem mais jovem do que Luce. Maria da Luz, adoro seu nome. Luce é mais elegante, cabelo curto, cachinhos negros despencando sobre as bochechas. Para ela, nada de coque, nada de tranças. Sombra bronze nas pálpebras, o que acentua o azul de jacintos... um azul diferente do de Antonia e Filippa. Unhas feitas, uma safira Bvlgari no dedo mínimo, uma pulseira combinando, caída no pulso. Acho que o que faz Luce parecer mais velha é o fato de estar perfeitamente arrumada. Isotta tem traços bem semelhantes aos das outras, mas dispostos com menos arte eles compõem um rosto menos belo. Peitos arqueados e firmes sobre os corpetes dos vestidos, a mesma altura, os mesmos traseiros empinados e arredondados que os italianos chamam de alla braziliana, o que todas compartilham é uma sensualidade poderosa e indiferente. Todas menos Antonia. Esguia como uma jovem árvore, ela oscila, zumbe, no epicentro da algazarra. Fico feliz por estar aqui. – Já experimentou carabaccia? – Recuperando o fôlego depois de cantar, é Luce quem pergunta. – Onde ela poderia ter experimentado carabaccia? A maioria dos toscanos com menos de 60 anos, para não mencionar os estrangeiros, nunca ouviu falar nisso. – Antonia responde por mim. – Para falar a verdade, eu gosto. Tanto da história quanto da própria sopa. Como aconteceu com tantos presentes que ela lhes deu, os franceses tiraram partido da papinha de cebola de Catarina. Quer dizer, depois de se livrarem dos temperos. Mas carabaccia é um nome bem mais bonito do que soupe à l’oignon. Anos atrás, numa feira de antiguidades em Figline Valdarno, encontrei quatro pequenas assadeiras com formato de barco e eu... Pensando que o silêncio coletivo é um sinal de que dei uma resposta longa demais, interrompo a frase. Mas a truppa está soltando gargalhadas e eu não entendo o motivo. – Ah, mater mia. Cuidado – adverte Luce. E eu também me pergunto o que isso quer dizer. Apesar de toda a beleza do lugar, de todos os tesouros que as cercam, não há nenhuma solenidade, nenhuma afetação em seus modos. Embora Giorgia e

P:57

Biagio ajudem no serviço – como ajudam a cuidar de tantas coisas em Castelletto –, eles também se sentam à mesa e jantam. Formam de fato uma família. Não é algo que eu tenha visto ou conhecido antes. Deixando mais da metade da mesa vazia, Antonia junta as cadeiras, desliza os pratos e a prataria pesada para uma nova posição, com Giorgia atrás dela reposicionando os copos. Antonia bate palmas. Sentamos. Biagio aparece com duas jarras com pintas verdes cheias de vinho branco gelado, e logo com outras duas e, como é costume na casa, todos servem outra pessoa, de forma que ninguém serve a si mesma. A si mesmo. Numa extremidade da mesa está Luce, Antonia na outra. Em um lado está Magdalena – filha de Isotta e bisneta de Antonia. O viço de sua beleza de 18 anos, ao estilo Botticelli, ajuda a visualizar como as outras devem ter sido no passado. Ela é muito chegada a Antonia, e com frequência a abraça, acaricia seu cabelo, arruma um grampo de tartaruga. À direita de Magdalena está Filippa, depois Biagio, Giorgia e eu, à direita de Antonia. Do outro lado senta-se Giangiacomo – louro, alto e magricela, abençoado com um sorriso tímido e bonito –, fidanzato de Magdalena. Guglielmo, Isotta e Umberto completam aquele lado da mesa. Pela primeira vez olho para a senhora Antonia com atenção. Ela está com uma das mãos no queixo, a outra ajeitando o cabelo. A sua pele tem cor de creme batido com uma colher de sopa de baunilha. Leite manchado com espresso. Uma Juno de longas pernas, seios fartos, bancando a matrona toscana em um fino vestido de lã marrom e tamancos de veludo negro com um salto minúsculo; se alguém folheasse o vasto portfólio do gênero feminino em busca da deusa arquetípica, com certeza faria uma pausa no retrato de Antonia. Ficaria boquiaberto e fecharia o livro. Ainda preciso me acostumar com a ideia de que ela tem 83 anos. Depois dos brindisi, quando todos se levantam para bater os copos com todos da mesa, Magdalena e Isotta começam a passar bandejas com bruschette preparadas com aspargo branco assado. São muito delicadas, rechonchudas, tostadas, deixando nenhum gosto metálico na boca, nada para confundir o sabor límpido e ácido do vernaccia de Castelletto, o vinho que, segundo Antonia, é apenas uma das obras-primas de Viola. Giorgia então se levanta, Isotta em seguida, ambas retirando as baixelas para que Luce e Filippa possam colocar na mesa tigelas pequenas no formato de barcos, cobertas por tampas. Luce se abaixa para me dar um sorriso ao colocar a minha. – É igual à sua?

P:58

Quando todos estão servidos e sentados de novo, Antonia faz uma contagem regressiva e, num gesto teatral, as tampas são retiradas, o ar subitamente tomado pelos vapores de cravo e canela. Carabaccia, é claro. Um caldo bem temperado com cebolas caramelizadas até virar uma espécie de geleia, as menores das ervilhas frescas cozidas nele por um ou dois minutos, antes de o vinho branco ser despejado para dar equilíbrio e intensidade. A poção é exuberante. Ao levar à boca a grande colher de prata, aspirando as especiarias, sente-se pena dos franceses. Outra configuração da brigada retira as tigelas e troca a prataria. É Biagio sozinho quem traz a arista. Segurando a bandeja de porcelana branca nas palmas das mãos ele a coloca diante de Luce, que se encarrega de cortar. Um lombo de porco com osso, branco e de textura fina, esfregado com uma pasta de alecrim, alho roxo e fresco, sal e bom azeite verde; foi assado, piano piano, em vernaccia no fogão a lenha da varanda. A carne se desmancha sob a faca de Luce. Enquanto ela corta, Filippa distribui os pratos aquecidos com um purê de favas, servindo colheradas de caldo sobre aquela pasta aveludada e mais sobre a arista. Filippa e Magdalena distribuem pratos limpos, depois põem na mesa duas grandes tigelas brancas com alface silvestre temperada apenas com azeite e sal. As filhas de Antonia trabalham juntas de forma esplêndida, enquanto ela – a própria Juno, sorridente, dando gargalhadas – se inclina na minha direção, de uma forma quase cúmplice, para dizer algumas palavras em meio à algazarra geral. Sopeiras rasas, com beiradas enfeitadas por flores, guardam o fine pasto, o final da refeição. Ricotta de leite de ovelha feita com o leite da noite anterior – cozida e esfriada –, o leite dessa manhã acrescentado, a massa novamente cozida. Ri- cotta. Re-cozida. Como pode ser simples o idioma italiano. Trazendo as marcas dos velhos cestos de vime onde secou durante o dia todo, as colheradas são mais brancas do que a porcelana dos pratos, e os grossos fios de mel de castanheiro derramados por cima me fazem lembrar xarope de bordo respingado na neve e alunos do terceiro ano em galochas vermelhas marchando pelo bosque no inverno. Moedores de pimenta são colocados aqui e ali na mesa e passados adiante. Mel e pimenta. Um dueto de sabores renascentistas que reflete a vida. Doce e forte. Dolceforte. Dolce salata. O mel reconforta. A pimenta arde. O que seria a vida sem um dos dois? – Ah, sim, sim, estou trabalhando muito bem – respondo o que penso ser uma pergunta que Antonia já fez duas vezes. Ela acabou de voltar a seu lugar depois de dar uma volta pela mesa. – Bene. Mi fa piacere. Que bom. Fico feliz em saber.

P:59

Antonia começa a dizer algo mais, porém a voz de Umberto desvia minha atenção. Da animação de seu lado da mesa, escuto algumas palavras e, volta e meia, uma mesma frase. Ele se dirige com frequência para Isotta, para Luce, e de vez em quando para Guglielmo, os três lhe fazendo perguntas. Ospitalità. Hospitalidade. Turismo. Umberto diz “bed and breakfast” diversas vezes, em inglês. Então é essa a “desavença” a que Filippa se referiu. Umberto, acompanhado por Luce, e de vez em quando por Isotta, fala de um projeto para transformar propriedades abandonadas em alojamentos turísticos, um restaurante campestre, uma escola de culinária, um centro de bem-estar. Un complesso moderno, ele chama. Um complexo moderno. Sente orgulho dessa expressão, ele a repete, experimenta em inglês. Conta com os dedos todas as construções ociosas que esperam por uma utilização: celeiros, estábulos, um moinho de água, uma capela, uma cabana usada para a fabricação de queijo e há quinze anos fechada pelo governo, seis das nove casas de fazenda que costumavam ser habitadas pelos de Gaspari. Com o passar do tempo e a dissolução da mezzadria, o sistema de meação, eles preferiram a conveniência de modernos condomínios em vilarejos próximos a encarar os desconfortos da tradição. Ele fala da falta de opções rurais e elegantes para os turistas nessa parte da Toscana. Refere-se demoradamente aos sucessos de lugares semelhantes em regiões mais famosas da Toscana: o Val d’Orcia, Chianti, as regiões produtoras de vinho próximas a Montalcino e Montepulciano. A Toscana deles, diz Umberto, não é menos encantadora, nem é menos rica em história e cultura, porém é quase desconhecida pelos turistas e fala-se pouco dela nas publicações de viagem... – Alleluia por isso – diz Antonia, com ênfase suficiente para que todos olhem para ela. De seu lugar na outra ponta da mesa, Luce – bochechas coradas pelo vinho, afastando cachinhos úmidos da testa – olha para mim e diz: – Não é que estejamos todos de acordo a respeito do bom senso desse projeto, mas mesmo se estivéssemos nada aconteceria. Mamãe é uma plutocrata. – E xenófoba. – Dessa vez é Isotta. As provocações dirigidas a Antonia são feitas com ironia? Brincadeiras habituais da hora do jantar? Acho que sim. De um jeito inofensivo e carinhoso. – Se o fato de querer que a Toscana permaneça toscana significa que sou uma xenófoba, então é isso que eu sou – fala Antonia como se já tivesse dito isso antes.

P:60

Gargalhadas, mãos lançadas para cima. O vinho é servido mais uma vez. Excluindo-se aqueles que estão para cima e para baixo com os últimos pratos ou trazendo bandejas com Vin Santo e latas de cantucci, todos ficam em silêncio enquanto Umberto volta a defender sua tese. Todos menos Antonia. Ela o interrompe: – Umberto, Umberto, como temos uma americana à mesa esta noite e ela está envolvida com... o que é mesmo que você e seu marido fazem? Alguma coisa relacionada a gite gastronomiche, não é? – A voz de Antonia é ácida, a promessa de uma queimadura. Lança iscas, em vez de fazer perguntas. A querida Juno se transformou em um gavião? E para quem Luce recomendou cuidado? – Por que não nos conta o que você faz? – Antonia me convida a falar. Mais uma vez o aposento fica em silêncio e sinto falta de Vasco Rossi. Observo a mesa, em busca de aliados. Volto-me para Antonia e digo: – A maior parte do meu trabalho não tem qualquer relação com gite gastronomiche, signora. O que mais faço é perseguir o passado. Vou atrás de contadores de histórias, pessoas da terra, aqueles que ainda vivem come una volta, como antigamente. Eu os incito, os únicos que sabem como tudo era. E qual era o sabor. Quero estar lá quando cozinham, quando festejam. Quero ouvi- los e quero guardar o que escuto. – E quem é você para querer tudo isso? Ouço o ruído de pés que se agitam. Em voz baixa, mas não tão baixa a ponto de não podermos escutá-la, Luce fala como se um cão faminto estivesse solto. – E scatenata. Está desacorrentada. Mais uma vez, volto a olhar Antonia. – Não sou muita coisa, signora. Não tenho pretensão de ter qualquer direito sobre as histórias. Faço perguntas. Talvez se surpreenda em saber quantas pessoas desejam conversar. E fazem isso com bastante naturalidade. – É muito encantador. Você quer guardar o era uma vez... E sobre os contadores de histórias... o que leva você a crer que compreende o que dizem? Não estou me referindo à linguagem deles. Presumo que você saiba o bastante. Mas você acha que apreende o que dizem? Penso no homem no trem para Milão. O que são palavras sem o legado de alguns

P:61

milhares de anos de implicações metafóricas? – Creio que a maior parte. Tanto quanto é possível para alguém apreender o que o outro diz. A linguagem é a parte menos essencial da empatia. Com olhos quase fechados, tento afastar Antonia da minha vista e mandá-la para mais longe do que os seis centímetros que nos separam. Esmago um cantuccio em farelos com o punho de uma das mãos, tento levar a taça de vinho aos lábios com a outra. A respiração vem entrecortada. – Nonna, por favor. – É Isotta quem fala. Alguns dos outros balbuciam em assentimento. – Mãe, ti prego. – Esta é Luce. – Sono mortificata. – Agora é Filippa. Mais pés que se arrastam, cadeiras puxadas. Tento minha taça de vinho novamente e dessa vez consigo segurá-la. Dou um gole. Guglielmo vai até Antonia, lhe pergunta se gostaria de dar uma pequena caminhada com ele e Isotta. Não, ela não gostaria, obrigada. Com bochechas tão vermelhas como sinto as minhas, Giangiacomo atravessa a confusão e se abaixa para falar comigo, para me dizer como ficou encantado por me conhecer. Eu me levanto para abraçá-lo, este garoto que eu não conhecia duas horas antes, este cavalheiro- criança que deve ter sido uma presa da hora do jantar, aqui no clarão amarelo e rosado do pequeno castelo de Antonia. Por que continuo aqui? Por que estou conversando, sorrindo para todos que passam como se a noite tivesse sido uma alegria? – Buonanotte, certo, certo, ci sentiamo. Depois de desejar boa noite para Antonia e de beijar sua mão, Umberto vira-se para mim, leva minha mão a seus lábios e me afasta da mesa. – Vou lhe contar um segredo. – Ela só faz isso com as pessoas de quem gosta? – Brilhante. – Por que você deixou os Estados Unidos e veio para a Itália?

P:62

Esporões recolhidos, Antonia abandonou a inquisição e passou a fazer uma entrevista. Pelo menos é o que aparenta. Depois que os outros se dispersaram, Filippa, Luce, Antonia e eu fomos sentar junto à lareira, que fica mais perto da cozinha. Luce trouxe lenha da varanda e preparou um belo fogo. Alguém trouxe café. Alguns minutos antes, quando eu começara a fazer minhas despedidas, ansiosa por uma corrida purificadora, descendo a estrada branca até a cabana de Biagino, foi Luce quem me pediu para ficar. “Se for embora agora... se partir sem dar à minha mãe a oportunidade de se desculpar... Você sabe que o ataque não foi dirigido a você. Compreende isso, sei que compreende. Ela a elegeu como o bode expiatório da noite, um prazer que muitos tiveram antes de você. Se partir agora... Por favor, não vá. Ainda não.” Luce, Filippa e um gato chamado Filoush dividem um sofá diante do fogo. Antonia e eu nos sentamos uma diante da outra em duas cadeiras de tecido adamascado vinho. A posição perfeita para um combate. Com uma deusa? Com um gavião? As palavras de Luce me deixaram quase à vontade. Meu desejo de ouvir é maior do que o de ser compreendida. Aprendo mais quando tento compreender do que na tentativa de ser compreendida. Assim como me senti como Filippa, no bosque, esta tarde, quero partir e quero ficar. Antonia não pode me ferir. Ninguém pode. No piano surrado que está ali perto, Isotta toca mal, de um jeito sentido, e nós quatro fumamos Gitanes sem filtro, misturando conhaque em xícaras com as beiradas douradas cheias de caffè denso e negro como o de um turco. Cruzamos e descruzamos as pernas. – Não troquei os Estados Unidos pela Itália – digo para Antonia. – Troquei os Estados Unidos por um homem. Se ele fosse um argentino, era provável que eu estivesse em Buenos Aires esta noite. – Peço que me desculpe por não lhe pedir para prosseguir... Não sei como reagiria à história de uma mulher, com certa idade, abandonando a vida que tinha em seu país de origem para perseguir um homem... – Não foi bem uma perseguição, signora. Não foi uma perseguição. Levantando-se para mexer no fogo com um atiçador, Antonia fica em silêncio. Diplomatas ágeis, Luce, seguida por Filippa, querem saber sobre Fernando e como nos conhecemos. Respondo superficialmente, olhando o tempo todo para Antonia, perguntando-me o que a machuca tanto. Voltando-se do fogo, Antonia diz:

P:63

– Refugiados políticos, religiosos, aqueles que fogem para sobreviver, esses eu compreendo. Mas se alguém nasce, cresce em um lugar, em que se encontra a história da pessoa... e aí, um belo dia, ela faz as malas, foge... o que é isso? Encontrar-se? Perder-se? Parece um capricho. Qual é o maior desejo do expatriado? Recomeçar? Outra chance? Costumo achar parecido com o divórcio. Abandona-se o parceiro e, em geral com uma velocidade estonteante, encontra- se outro, recomeça-se tudo de novo; o processo e seu desenrolar seguem o mesmo rumo. Deve ser igual a deixar um país para se instalar em outro. O que não parecia correto ou bom em um lugar rapidamente começa a não parecer correto nem bom no outro. Todo esse movimento, essa troca de parceiro, essa troca de culturas... é uma falta de disciplina. Bastaria as pessoas compreenderem que o que precisa ser modificado são elas mesmas. Escuto as palavras de Emily: “Eu vou tentar um sonho diferente, aquele que vim viver na Itália. Afinal, viver aqui, o simples ato de sair para comprar um saco de tomates se transforma em uma incursão num outro mundo... e aí eu encontraria o homem certo e...” Luce está perguntando para Antonia: – O que essa decisão tem a ver com disciplina, mãe? Você não consegue aceitar que alguém poderia escolher morar na Itália por se sentir mais feliz aqui? – Por se sentir mais feliz ou por imaginar que será mais feliz? Como se a alegria brotasse como capim na Toscana. Uma tolice. Não existe um lugar no mundo capaz de alegrar uma alma infeliz. Nenhuma luz, ar, mar, campina, montanha ou aldeiazinha charmosa. Certamente nenhum homem. Nem mesmo se a pessoa infeliz se instala junto àqueles que estão satisfeitos, nem isso ajudará por muito tempo. Na verdade, estar entre pessoas plenas é perigoso. Só chama a atenção para o próprio vazio interior. Não há milagres que possam ser obtidos da geografia. – Concordo, signora. – Minha intenção é pacificá-la. Saciar sua sede de batalha recusando-me a lutar. Ainda de pé, Antonia vira-se de costas para o fogo. Os braços pousados nos quadris, as palmas voltadas para o calor, ela quer saber: – Você não acha que a Itália já teve um número suficiente de seus próprios cronistas, contadores de histórias e intérpretes culturais? Acha necessário que estrangeiros nos contem como somos? – Não escrevo histórias para os italianos, signora. Mas para os outros. Para os

P:64

forasteiros. Gente como eu. Aqueles que sonham vagar sobre antigas pedras, observar a luz. Aqueles que, mesmo por um breve período, querem estar na Itália de seus sonhos. – Não consigo acreditar que o resto do mundo precisa de mais um livro para alimentar o apetite pela Itália. Sei que escreveu um livro sobre Veneza. Quando ouvi isso, achei graça. O seu deve ser o quinquagésimo milésimo livro escrito sobre aquele buraco bizantino imundo e fedorento, e não consigo imaginar que haja sequer um leitor na face da terra que pagaria por isso. – Alguns se dispuseram a pagar – replico. Luce ri. Antonia pergunta por que isso é tão engraçado, mas a outra não responde. – O que ainda há para escrever sobre Veneza? – insiste ela. – Com certeza não é sobre os venezianos, pois eles não existem mais. Apenas hordas vulgares de excursionistas. Mas ao contrário dos pretensos venezianos que se instalaram por lá, pelo menos os turistas vão embora. Tantos palazzi no canal foram assumidos por estrangeiros que só se ouve o sotaque anasalado dos americanos e aquela desagradável imitação do educado sotaque britânico. Mas todos emigram do mesmo Inferno. Todos emigram do Dinheiro. Às vezes do Crédito. Às vezes até mesmo da Dívida. São, em geral, um bando de avarentos cobiçando alguma coisa que seus vizinhos no Inferno ainda não têm. Caminham com passos pesados pelo coração da cidade antiga. E a cultura afunda mais depressa do que as pedras. Você foi muito sábia por escapar de lá. – Teria ficado para sempre, signora. Foi meu marido quem quis deixar Veneza. – Você gostava de morar em Veneza? – Imensamente. – Você não pinta um retrato muito atraente de si mesma. Com certeza, não se trata daquele que o mundo conhece como sendo a típica mulher americana do século XXI. Você abandona sua vida para juntar-se a ele, admite ter imenso prazer na sua nova casa e aí, de repente, faz as malas para voltar a segui-lo. Mesmo enquanto respondo a Antonia, faço isso com pouca convicção. Se ela aprova, dane-se... não importa. Apesar da atitude pomposa, algumas de suas observações acertam o alvo em cheio. Ou quase. Quanto a outras, talvez eu aprenda algo se ficar em silêncio.

P:65

– Mais ou menos isso, signora. Minha docilidade a enfurece. Ela volta a cutucar o fogo, um cirurgião apalpando o ponto certo para penetrar o bisturi. – O que mais escreveu? – Um livro sobre a Toscana. Sobre os dois anos em que vivemos em San Casciano dei Bagni. – Toscana? Também a Toscana? Bem, fico satisfeita em ouvir, pois deve significar que já está se dirigindo a outras regiões. O que vem a seguir? Calábria, forse? Oppure Sardenha? Qualquer coisa deve ser melhor do que livros sobre perambulações em vilarejos nas colinas, prometendo o amor verdadeiro com um conde arruinado e uma trupe de camponeses dançarinos... Nem consigo imaginar o número de mulheres velhas e decadentes dos Estados Unidos e da Inglaterra – e quem sabe mais de onde – que pensaram em asfixiar com um travesseiro o marido barrigudo, que ronca, para fugirem para a Itália e recomeçar a vida. Ela faz uma pausa, aguardando minha resposta. No entanto, como se eu não tivesse ouvido o que falou, melhor ainda, como se aquilo não tivesse me atingido, eu me sento sem dizer nada. Gentilmente. Minha defesa é tratar Antonia como uma criança travessa. Deixar que ela faça as coisas do seu jeito até que, esgotada pela própria perversidade, logo adormeça na cadeira onde está sentada. Ela ainda me ataca mais uma vez: – E aí, para aqueles pobres infelizes condenados a ficar onde estão, há o estilo toscano nisso e o estilo toscano naquilo... Toscano se tornou o adjetivo preferido dos jornalistas desinformados de todo o mundo. Vi um exemplo absurdo disso na revista de um avião: Fazendas toscanas em Santa Fé. Como se erguer um espaço com vigas de plástico e ladrilhos industrializados, um vaso com alecrim e algumas castanheiras em volta de uma mesa pudessem torná-lo toscano. Um capricho de criança mimada. Sempre querendo mais, sempre querendo algo de diferente. Sempre querendo o que os outros têm. Imagino que você tenha colocado seu nome em uma linha de travesseiros toscanos ou algo parecido, não foi? – Não. – Bom. Agora fale-me de seus contos de fada.

P:66

– Não são contos de fada. De forma alguma. Conto histórias que as pessoas me contam. Ou conto histórias que aconteceram comigo. O que aconteceu com gente que conheço. – Perdoe-me, mas ainda não consigo compreender o objetivo de um livro de memórias escrito por uma desconhecida. Quem é você, o que fez, quem são seus amigos e o que eles fizeram para que qualquer coisa de suas vidas despertasse o interesse de alguém? – Mãe, eu lhe peço... – Com o olhar, Luce implora ajuda a Filippa, mas Filippa está ocupada, esmagando a ponta de meio Gitane em um cinzeiro de prata e acendendo outro. – Presumindo que você escreva em inglês, seus livros foram traduzidos para outros idiomas? – pergunta Antonia. – Sim, para catorze ou quinze. Talvez mais. – E uma dessas línguas é o alemão? – É sim. – E esses livros que você escreve sobre si mesma e seus amigos, eles inspiram outras pessoas a fazerem o mesmo que você, não é? Fazem as pessoas desejarem viver aqui, certo? – Não tenho a intenção de encorajar ou convencer. A reação de cada pessoa ao que escrevo pertence somente a ela. – Sim, é claro que sim. Pertence a elas. Antonia diz a última frase em voz muito baixa. Um sussurro. Talvez a criança travessa se canse enfim. – Gostaria de subir agora, mãe? – pergunta-lhe Luce. – Fillipa e eu vamos caminhar até a cabana com Marlena e... Mas Antonia está sondando um novo terreno. – Conte-nos a respeito de seu trabalho com os turistas... – Fernando e eu recebemos grupos muito pequenos de viajantes de língua inglesa que estão interessados em conhecer o vinho e a comida regional, a história culinária, esse tipo de coisa. Apenas algumas semanas por ano, principalmente

P:67

durante a vendemmia e a raccolta. – Mais uma escola de culinária de expatriados. É isso que você tem. Agora entendi o que é. – Não. Não é mesmo uma escola de culinária. Às vezes faço uma demonstração de um ou dois pratos, mas passamos a maior parte do tempo no campo, entre os vinhedos, nos pomares, visitando artesãos, jantando com famílias, às vezes em restaurantes típicos... É realmente bem... – E como você se tornou uma especialista? Ou a especialização é conferida junto com a carta d’identità? Um privilégio de expatriada? Você sabe um pouco e eles não sabem nada, então... é como o professor que durante o café da manhã lê o texto que ele vai ensinar naquele dia. Você está um passo à frente. Não é isso? – Mãe, por favor. – Filippa está apagando mais um cigarro não fumado e acendendo o seguinte. – Meu objetivo não é a especialização – digo. – Oferecemos algo simples. A oportunidade, para um viajante, de perambular com alguém que vive, trabalha, cozinha, come e bebe na Itália e que pode conversar com ele em sua própria língua. – Não seria mais autêntico se um italiano fizesse o que você faz? Se os estrangeiros acompanhassem alguém da região durante seu dia a dia? Existem italianos que falam inglês. – Sim, poderia ser. Dependendo do tipo de italiano que estivesse encarregado da recepção. Em geral, são meus leitores que vêm ficar conosco. Os passeios se tornam uma extensão dos livros. Eles querem ver os lugares sobre os quais escrevi. Querem estar onde estamos. Acredito que também queiram sentir o que sinto. Desejam atravessar uma porta mágica. Para ser sincera, nem sempre os passeios funcionam tão bem. Fico triste quando um cliente vai embora desejando ter gasto seu dinheiro de outra forma, mesmo eu sabendo que ele é do tipo que não fica satisfeito com nada, não importa aonde vá. Ainda agora, ri de mim mesma ao me identificar um pouco com o que você disse sobre não se esperar milagres da geografia. Eu posso acrescentar: nem de escritores. É claro que há passeios onde tudo transcorre tão perfeitamente que ninguém quer que eles acabem. – E, quando isso acontece, segue-se uma visita a um corretor de imóveis... não é isso?

P:68

– Até agora não, mas acredito que pudesse ser assim. A Itália tem uma história longa e constante de acolhimento aos expatriados. Duvido que minhas atividades modestas tenham muito efeito sobre o número de... – Mamãe é contra qualquer tipo de sedução ativa de estrangeiros, daqueles que desejam se instalar aqui. Daqueles que gostariam de adquirir terras. Especialmente terras. Casas abandonadas. – Luce olha para Antonia enquanto fala comigo. – Acho perturbador – disse Antonia – caminhar pelo corso em Pienza em um domingo à tarde com minha prima e suas vizinhas e não ouvir uma única palavra em italiano ser pronunciada, a não ser pelos vendedores no caminho ou i branchi di vecchietti, os grupos de velhos que se reúnem nos bares depois de suas sestas. É só alemão, holandês, inglês, inglês, inglês. E não são pessoas que estão de passagem, mas um novo tipo de habitante. – Eu imaginaria que você ficasse mais perturbada com os moradores de Pienza. Aqueles que, seja lá por qual motivo, optaram pela venda de suas propriedades. Os estrangeiros não podem comprar o que não está à venda. Antonia remexe sua xícara, tira a borra com uma colher, despeja algumas gotas de conhaque e beberica. – Sim. Sim. Divindenaro governa. A divina grana. Dinheiro. Mesmo em Pienza. Bolsos cheios de ouro, herança descartada, as pessoas vão morar em caixas de concreto lá no vale, se acomodam diante da televisão, esperam passar o tempo que lhes sobra... – Não faltam jovens que sonham em vender suas heranças para poder experimentar uma vida diferente daquela de seus pais. Todas essas idas e vindas, viagens pelo mundo afora, a busca por algo novo... sempre foi assim... – Você pretende me dar uma aula de história? Vai começar pelos fenícios? Os etruscos? Vai me dizer que doze mil anos antes de Cristo os invasores vagavam pela península? A maioria deles gostando do que via, alguns desejando ficar? Não se dê ao trabalho. Não é nenhum consolo. O que ajuda é lembrar que ainda existem alguns toscanos que mantêm uma firme ligação com o passado. O passado distante, o passado tribal. Acho que isso é uma das coisas que o resto do mundo deseja da gente, essa sensação de pertencimento. Querem se sentir como nós. Desejam ser nós. Querem se estabelecer aqui com novas e reluzentes ferramentas de jardim, caixotes de papelão cheios de livros de receitas, refestelando-se na piscina construída sobre os ossos de vinte gerações de lavradores que se banhavam num riacho ou num rio ou, provavelmente, nunca se

P:69

banhavam. Bem, eles podem se refestelar quanto quiserem, brincar de morar na Itália até baterem as botas, mas nunca vão pertencer à terra. Vínculo não está à venda, nem pode ser transferido. Ele só vem com o sangue. – Comete um sério engano, signora, em achar que é problemático para uma pessoa que vive aqui, vinda de outro lugar, aceitar o fato de que ela não pertence a esta terra. É verdade que esta constatação incomoda, a princípio, mas é facilmente amenizada pelo convívio com outros expatriados. Ao se viver em colônias. Como Fillipa observou hoje mais cedo. – Touché. – É Filippa quem fala com a voz bem baixa e prossegue. – Mãe, Marlena ouviu tudo isso... Antonia a ignora. – Não tenho nada contra estrangeiros desde que se contentem em fazer uma visita, até mesmo ficar por algum tempo. E depois voltar. Mas não se estabelecer. Sou bem generosa nesse aspecto, embora a maioria deles simplesmente não saiba como se comportar. Nem mesmo sabe onde está. Já ouvi mais de um deles perguntar a algum idiota com guarda-chuva vermelho “Já chegamos à Toscana?”, enquanto está vagando pelas ruas de Pienza ou de Massa ou de Florença. Eles não têm a mínima ideia de onde estão e a maioria deles não se importa desde que possam comer e beber e comprar sapatos. Desprezivelmente barulhentos, desfilando por aí com bermudas ciclistas, é difícil distinguir os homens das mulheres, todos com cabelos brancos curtos, tênis e veias saltadas e aquelas horríveis bolsas presas em volta de suas cinturas gordas. Uma visão do inferno. Luce diz: – Mamãe também não gosta da forma com que nos vestimos, acha que mulheres com mais de 40 anos devem usar vestidos compridos depois das seis e prender o cabelo longo e cacheado em um coque e... Luce desliza os dedos pelo cabelo curto e com a palma da mão aperta cachinhos primeiro em uma bochecha, depois na outra. Pergunto para Antonia: – O que você acha que os italianos fazem quando viajam? Acha que eles não andam em bandos, nem se vestem mal, nem berram nas ruas? – Claro que agem sim. Mas isso não é problema meu. Além do mais, eles vão embora. Não assombram corretores de imóveis nem ambicionam ter uma casa em Vermont. Ou um apartamento debaixo das pirâmides. Eles voltam para casa.

P:70

– Milhares deles emigraram para todas as partes do mundo. – Não estou falando de emigração. Com o propósito de sobreviver, de obter asilo. Já passamos por esse argumento. Ela permanece em silêncio, reunindo forças. – Como eu disse, admiro os viajantes. As pessoas que desejam ver o mundo, caminhar no passado. Como é mesmo, Luce? É 85% do patrimônio artístico mundial que se encontra na Itália? – E 75% deles estão em Roma, mãe. Relativamente pouco fica na Toscana. – Então por que todos querem vir para cá? Bem para cá. Exatamente para cá. – Não querem. Como Umberto diz, eles desejam aquela Toscana. Os godos não estão subindo as montanhas, mãe – responde Luce. Antonia olha para Luce e sorri, depois dá uma risada e diz: – Mas fizeram isso no passado. E é por causa de algumas de minhas lembranças da “estadia” deles aqui nas montanhas que me dá calafrios pensar que alemães possam adquirir terras, uma casa no mesmo lugar onde, não faz muito tempo, os antepassados deles assassinaram e... – Continua em voz mais baixa: – Há um tanto de profanação em seu... – Os alemães que querem adquirir terras na Toscana não têm qualquer relação com aqueles acontecimentos. Seus argumentos são tolos, mãe. Tolos e presunçosos. Você ficou ridícula na velhice – diz Luce. – Fiquei? Talvez. Melhor deixar o passado quieto, não é? Por mais de sessenta anos, tentei de todas as formas atingir esse estado de graça, repetindo para mim mesma: “Não se pode tentar alcançar a essência do passado, pois não há nada. Tudo seco, tudo pó. De que adianta idolatrar o passado ou se refugiar nele?” Bem, de certa forma funcionou, pelo menos por algum tempo. Eu me mantinha ocupada: havia sempre alguém com fome, machucado, moribundo ou nascendo, e alguma coisa sempre precisava ser cozinhada, plantada, colhida, lavada ou remendada. Porém as distrações acabaram perdendo seu poder. Tolice foi acreditar que eu poderia dar a outra face. Dane-se a outra face. Filippa se levanta, vai para trás da cadeira da mãe, acaricia seus ombros, curva- se para beijar a cabeça grisalha de Antonia. – Mamma.

P:71

– Achei que não tinha opções. Mas eu tinha. Ainda tenho. Acho que quase sempre temos. – Mamma, está tarde e eu acho que você, assim como eu, essa tarde... bem, Marlena já teve uma iniciação suficiente à vida e à história de Antonia Ducchi de Gaspari e sua prole – diz Filippa. Antonia joga a cabeça para trás para olhar Filippa. Trocam sorrisos. As duas estão chorando. Luce fala para mim: – Não vou pedir desculpas por esse pequeno espetáculo, ligeiramente grotesco. Lamento ter lhe pedido para ficar. A etiqueta de mamãe é sempre um tanto mordaz, mas... Olho para Luce, sacudo a cabeça e balbucio: – Não se preocupe... está tudo bem... Luce continua: – Mais cedo, Isotta chamou mamãe de xenófoba. Não é verdade, Marlena. A fobia de mamãe, a antipatia, não, o odium é restrito aos alemães. Qualquer alemão. Todos os alemães. Embora Antonia comece a falar, Luce continua me olhando. – Eu reconheço. Eu reconheço. Mas há exceções, piccola Luce. – Antonia descansa a cabeça no encosto da cadeira vermelha. O olhar para o alto, as mãos abertas alisando as dobras do vestido. – O impulso para a brutalidade talvez seja a única característica que os humanos, todos os humanos, compartilham. Acredito que o impulso dos hunos é mais perverso. Os hunos desgraçados. E nem me aborreça citando as atrocidades cometidas por todas as raças do mundo. Sei disso. Não estou desconsiderando. Mas o tipo específico de perversidade perpetrado aqui, bem aqui neste salão onde nos sentamos com nossas xícaras, ao pé do fogo... Com um braço sobre meus ombros, foi Filippa quem insistiu para que eu deixasse o salone por uma das portas da varanda e caminhou comigo pela estrada de cascalho branco, nenhuma das duas falando sobre a noite, a tarde, Antonia, Luce. Nem sobre os godos que escalaram as montanhas no passado, nem sobre aqueles

P:72

que um dia talvez façam o mesmo. Quando parei por um momento e lhe disse que gostaria de voltar dali sozinha, ela concordou e disse: – Fizemos uma grande confusão, não foi? Mamma, Luce e eu? – Por mim, está tudo bem. De verdade. Paro no riacho e pego uma garrafa de água gelada de dentro de uma pequena construção de pedra que Biagio fez para mim, junto à margem. Não acendo Vênus, mas tateio em busca de fósforos sobre a mesa e acendo uma vela, abro a garrafa, bebo a água, dou goles grandes, deixo que escorra pelo meu queixo e peito como se aquele líquido fino e gelado fosse a poção capaz de me levar para o outro lado do espelho. Mas não funciona. Depois me dispo, deixando as roupas caírem pelo caminho, visto a camisola, levo a vela para a cabeceira, subo na cama de princesa. Reparo que é a primeira vez que me sinto verdadeiramente sozinha na antiga casa de pedra no bosque. O que há com Antonia? Sua obsessão com os alemães. Em grandes proporções. Afirmar que o simples fato de meus livros serem traduzidos para o alemão quer dizer que estou encorajando alemães a virem se estabelecer na Toscana? Xenofobia, plutocracia, piscinas construídas sobre as ossadas de dez gerações de lavradores toscanos, barões do petróleo, godos escalando as montanhas, a Ocupação, os hunos desgraçados; hospedarias bed and breakfast, a outra Toscana, a próxima Toscana, carabaccia, brutalidade, odium. Antonia Ducchi de Gaspari e sua prole. Vasco Rossi. Jesumaria. Sei que o sono não virá esta noite, então levanto-me, calço as botas por não conseguir encontrar os chinelos, vou acender o fogo embora não faça tanto frio. Estou faminta. Não há nada na geladeira além de vinho e uma cebola. E um pouco de massa que sobrou do almoço de ontem, penne rigate – cozido, sem molho. Eu me lembro dos dois ovos que Giorgia deixa toda manhã na cesta de arame pendurada perto da porta lateral. Acendo um queimador do fogão, solto a pesada frigideira de ferro de Biagio sobre ele, derramo uma boa quantidade de azeite. Quando ele esquenta, acrescento a massa cozida, mexo com uma colher de pau e deixo-a ficar crocante. Enquanto isso, corto a cebola em fatias bem finas e a coloco dentro da panela. Polvilho sal sobre a massa, trituro algumas sementes de funcho no pilão e acrescento. Arranco uma pimentinha do meu feixe decorativo, esfrego entre as palmas das mãos e daí para dentro da panela. Quando a massa fica dourada, as cebolas macias, o perfume delicioso, bato os ovos e os distribuo uniformemente sobre a massa. Deixo cozinhando. Então vou me servir do que sobrou de uma garrafa de vermentino na taça reservada para o prosecco de Fernando. A ocasião merece toda a beleza que consigo reunir. Viro

P:73

a frittata na tampa de uma panela e a coloco de volta à frigideira, deixo cozinhar mais um ou dois minutos enquanto encho um jarro verde com vinho tinto do barril. Corto a frittata ao meio, acomodo-me perto do fogo. Como devagar, concentro-me em cada mordida. Saboreio o vinho. Durante todo o tempo, tento absorver nem tanto o que foi dito por Antonia quanto aquilo que não foi dito. Suas lacunas. É onde se encontra a história dela. Nos fragmentos do afresco que não foram pintados. Compreendo que banquei a substituta dos demônios de Antonia, um papel que já interpretei antes e para o qual com certeza tenho certo talento. Alguém inclinado a agredir tende a confundir a passividade do outro, tomá-la como fraqueza, mas não foi o que Antonia fez comigo. Eu não me intimidei e ela gostou disso. Os iguais se reconhecem. Abro a torneira para encher o jarro verde com mais vinho tinto de Biagio. Ouço repetidas vezes Luce dizer: “A fobia de mamãe, sua antipatia, não, seu odium é restrito aos alemães. Qualquer alemão. Todos os alemães.” E ouço a voz de Antonia: “Eu reconheço. Eu reconheço isso, piccola Luce. Mas há exceções.” Levanto-me para buscar a outra metade da frittata.

P:74

5 A batida na porta com certeza não é de Biagino. Nem de Giorgia. Além do mais, ainda não amanheceu. Com o corpo envolvido em uma toalha e metade do cabelo trançada, eu grito: – Arrivo, arrivo. Entre, entre. Soltando a toalha e vestindo a camisola, afasto a cortina do banheiro e a encontro sentada à mesa. – Esta manhã havia muitas no alto da campina. Ela tira uma cebola silvestre coberta de terra de uma sacola de lona repleta delas. – Fariam uma bela carabaccia, não acha? Fico ali, olhando para as cebolas e para seu rosto, e de volta para as cebolas. – Não posso dizer até prová-las. Nenhuma de nós duas faz sequer um movimento ou diz algo, como se estivéssemos com o pensamento em outro lugar. Resolvendo alguma coisa. Com certeza sem qualquer relação com as cebolas. Então Antonia ri. Dá uma gargalhada. Sem ter dormido, vestida inapropriadamente e compreendendo que as cebolas são seu ramo de oliveiras, eu rio junto. – Vou aguardar enquanto você termina de se arrumar. Trouxe espresso na garrafa térmica. Vou levá-la aonde as cebolas estão – diz ela com assombro no olhar como se fosse me mostrar um rebanho de unicórnios brancos. – Acredito que você não beba com açúcar. – Sem açúcar – digo-lhe, enquanto junto minhas roupas do dia anterior. Uma rápida remexida em minha sacola de lingerie e meias. Enquanto me recolho por trás da cortina verde, ela está varrendo a lareira. Escuto quando empilha lenha. Ela canta. Devo estar demorando demais, pois ela sai em seguida, varre as pedras, abre e fecha as janelas. – Festina lente – grita ela lá de fora. – Depressa, mas não tanto. A luz não vai esperar, você sabe.

P:75

Menos de três minutos depois, estou fechando o zíper da jaqueta, amarrando os cadarços das botas e disparando pela porta aberta, mas ela se foi. Dou uma volta em torno da cabana, subo um pedaço da trilha do riacho, sento perto da água para observar a escuridão se tornar uma poeira lilás. É uma pessoa estranha. – Agora, a qualquer momento – diz ela de algum ponto atrás de mim. – Signora? Viro e tenho dificuldade de distinguir seus contornos lá em cima, sentada em um dos bancos de pedra onde eu e Filippa conversamos ontem. – Fique onde está – adverte, enquanto um grande fulgor rubro mancha o céu com todos os tons de vermelho do mundo. Um pouco depois, vou até lá. Antonia me entrega uma pequena xícara de espresso, dá batidinhas no lugar a seu lado. Prefiro ficar de pé, digo. Com dedos esguios ela tira um grampo de tartaruga do coque desarrumado formado por seus cachos grisalhos e afasta uma mecha dos olhos. Fragmentos de prata mergulhados em azul-claro. Usa um cinto de couro preto remendado sobre o que parece ser um vestido marrom para o dia, em oposição àquele outro um tanto mais refinado da noite passada. Em pequenos bolsos que pendem do cinto há tesouras, uma pá, uma faca. Suas joias são interessantes. No assento de pedra, brincando com o cabelo, ela parece brotar da cena, uma flor nativa. Este é seu lugar. Ela pertence a ele assim como o lugar pertence a ela. Em seguida ri, talvez pela pura alegria de fazê-lo, as bochechas não se enrubescendo, mas se tornando ocre, como uma criança bronzeada. – Que tal caminharmos um pouco? – Antonia me convida. Em fila indiana por uma trilha dentro de um bosque de castanheiras onde nunca estive, ela vai à frente, estabelece o ritmo e fala olhando para trás. – Eu gostaria muito que você me desculpasse. Mas não quanto ao que sinto em relação aos intrusos. – Sim, claro. – Mas fui áspera com você, arrogante, como Filippa me disse depois. Porém prefiro ser arrogante a ser tola. – Só uma vez senti que tinha sido apunhalada pelas costas.

P:76

– Quando? – Talvez pudéssemos falar disso em outra ocasião. – Por que me acompanhou esta manhã? – Não sei bem. Talvez porque eu esteja querendo saber o que a teria ferido tanto. Refiro-me aos alemães. Não estou querendo uma resposta. – Ainda bem. Porque não vai ouvir nenhuma. A mata se abre sobre um platô. Um aposento no céu. A neblina pende imóvel e prateada na luz suave e um vento baixo sacode o capim e faz tremular a barra do vestido de Antonia. Uma deusa pastoral curvando-se diante de um canteiro de rúcula de folhas minúsculas está ocupada com a pequena pá verde. Ela observa: – Cresceram da noite para o dia, veja tudo isso. Se não chover muito, haverá mais amanhã. Rúcula que brota em maio é tão picante quanto mostarda. – Ela interrompe seu trabalho para tirar uma faca do cinto e me entrega. – Tenho a minha. – Brava. Como vai ver, há mais do que rúcula aqui. Separe as ervas que se comem cruas daquelas que vão cozinhar. Imagino que você saiba a diferença. – Faço isso em campinas da Úmbria. Ela ri, para e me olha. – Dois centímetros de raiz, não mais ou... – Não voltarão a crescer. Menos do que isso e perde-se o que elas têm de melhor. Tive um bom professor. Dentes-de-leão, chicória silvestre, cenoura silvestre, pastinaca silvestre, barba- de-cabra, pilosela, mais rúcula, mais cebola silvestre. Carrego os tesouros em duas pilhas: aqueles que se comem crus e aqueles para serem fervidos e depois fritos com azeite, pimenta picante e gordos dentes de alho. Antonia aconselha: – Passe adiante o que você sabe, sempre que for possível. Sobre ervas, especialmente sobre elas. Os livros não conseguem ensinar da mesma forma que outra pessoa ensinaria. Por aqui, sempre foi de mãe para filho, na maioria dos

P:77

casos de mãe para filha. Como uma corça ensina o filhote. O que comer, o que deixar. Você fugiu de casa? É por isso que está aqui? Ela se aproxima do lugar onde estou cavando, envolvendo braçadas de erva espessa em torno das minhas pilhas, colocando-as em seu saco. Olho para ela e respondo: – Não. Não foi por nada disso. – Como é ser casada com um bizantino? Giorgia diz que ele é stupendo. Maravilhoso. – Ela está certa. Biagino me ofereceu a cabana para que eu pudesse... – Sei tudo sobre a premissa de sua vinda para cá. – Acho que a premissa é tudo o que existe nessa decisão. Preciso trabalhar. – Compreendo. O nostrum do trabalho. A urgência. – Prazos. – Sim. Os prazos. No meu caso, os prazos são determinados pelo sol e pelo momento em que ele nasce. Tenho um ótimo trabalho: coletar ervas e preparar o jantar. – O meu também é bom. – Imagino que sim. Praticamente todo trabalho que pode ser feito a sós é bom. As pessoas que trabalham sozinhas conhecem a beleza da solidão. A beleza ainda maior de se sentir solitário. Mas você não deve ter tido muita chance de se sentir assim desde que chegou por aqui, não é? Seu bizantino vem visitá-la. Foram o quê? Dez vezes em cinco semanas? – Não. Só uma vez por semana. Nas tardes de sexta-feira. Ele fica até a manhã de segunda. – Eu diria que se você não fugiu foi só porque ele não deixou. – Talvez tenha sido uma espécie de fuga. Mas com uma corda me prendendo. – Do jeito que as crianças fogem. – Parecido. Como fugir para a horta no quintal. E Fernando é minha corda. Não

P:78

foi dele que fugi, mas em direção a ele. Depois de dois anos de caos em torno da reforma de nosso apartamento, achei que nossa instalação definitiva marcaria um novo começo. E para mim talvez tenha sido verdade. Mas, para Fernando, acabou se tornando um final. Uma completa parada. Depois que os operários se foram, ele não tinha mais o que fazer. Não sobrou ninguém para ele inspecionar, bajular e dar ordens. Eu tinha meu trabalho, mas ele não tinha nada. O reverso de nossas situações anteriores. Quando me mudei para Veneza, ele tinha seu trabalho e eu apenas uma página completamente em branco para me reinventar... sem idioma, sem emprego, sem casa, sem nada, sem amigos. Como uma criança, eu confiei – em mim, nele, nas Moiras – e parti para descobrir o meu caminho. Mas quando isso aconteceu com Fernando, ele recuou. Embora insistisse que o que queria fosse a própria página em branco, quando a oportunidade apareceu, ele se assustou. Acho que foi isso que aconteceu. E o que veio em seguida naturalmente foi que, como eu tinha trabalho, ele começou a se ressentir do tempo que lhe era roubado. Eu queria que ele pegasse aquela “página em branco” e saísse por aí com ela. Explorasse, experimentasse algo, depois outra coisa, até encontrar o que o agradasse, o interessasse. Depois de passar a maior parte de sua vida trabalhando em algo que lhe fora imposto, eu pensei, e ele também, que a liberdade da página em branco o deixaria empolgado. Era o que eu queria, mas de fato não era nada disso que ele queria. A página em branco dele foi logo guardada, porque ele queria brincar de casinha, queria mais das nossas pequenas viagens para lá e para cá por todo canto da península. Queria que ficássemos juntos. Queria que tivéssemos a mesma página em branco. Por isso ficou difícil encontrar paz para trabalhar. Era nesse ponto em que estávamos quando Biagio entrou em ação. – E agora? Onde vocês estão? – No mesmo ponto de cinco semanas antes, exceto pelo fato de eu estar mais adiantada com meu trabalho. E acho que Fernando está mais paciente, compreendendo melhor minha vida de escritora. Também acredito que nós dois recuperamos nossa humildade. Acho perigoso sair por aí sem ela. O imponente cavalo de Fernando talvez tenha fugido, mas também me despedi do meu e ele se foi. – Então funcionou. Lascialo da solo. Deixá-lo sozinho. Para lhe dar menos tempo do que ele gostaria, menos de você do que ele deseja. Mas o problema é que você também tem menos dele do que deseja. Posso ver isso. – Sou tão transparente assim? – Nesse caso, sim. Mas acho que isso não acontece com frequência.

P:79

Até mesmo enquanto falo de mim, falo dele, e me arrependo por isso. Paro por um momento, abaixo para amarrar minhas botas perfeitamente amarradas. Ela caminha adiante. – Preferiria que falássemos de você. Na verdade, que você falasse e eu ouvisse – digo a Antonia, quando a alcanço. Havíamos parado de cavar e de cortar há algum tempo, deixado para trás o saco de Antonia e a porção das minhas pilhas que não cabia nele, e agora estamos apenas perambulando pelo campo, ela me mostrando alguma coisa de vez em quando. E enchendo os bolsos com hortelã. – Cuidado quando me pedir para falar. Se você acha que Filippa cansou seus ouvidos ontem, esteja certa de que o fôlego dela não chega aos pés do meu. – Vou arriscar. – Eu também, talvez. Quem sabe algum dia. Mas, por enquanto, vamos ver... Vou lhe contar que assim que deito minha cabeça no travesseiro para dormir já anseio pela manhã. Em geral acho que a noite é um desperdício de tempo e desejo que o sol se levante de novo assim que ele se põe. Mesmo antes de ele se pôr. Lavo meu rosto, escovo os dentes, visto-me, calço as botas, prendo as ferramentas na cintura, pego a garrafa térmica que Luce deixa para mim na cozinha e levo o saco. Vou perambular pelo caminho dos carvalhos enquanto o ar ainda está azulado, o mar batendo lá embaixo, os sinos dobrando na hora das matinas, o coração palpitando perfeitamente em meu peito e acho tudo empolgante do jeito que é. Sair para ver o que se tornou botão, o que despontou da terra, tornou-se amarelo, verde, doce e maduro. Eu me curvo, sinto os aromas, toco, começo a cavar, a cortar e a encher minha sacola, há sempre alguma coisa. A terra é leal. Pede menos do que as pessoas. Ah, o que fazer com a surpresa de uma boa braçada de rúcula? Um pensamento como esse pode dar forma a um dia inteiro. Talvez um dia tão bom quanto qualquer outro na vida. – Mas este não é o lugar onde você foi criada. Quer dizer, não é o lugar onde você nasceu. Lembro que Biagio me disse que você é... – Não, não foi aqui que nasci. Vim morar em Castelletto quando me casei. Tinha quase 18 anos. Esses campos, campinas e bosques, até onde seu olhar pode alcançar e mais longe ainda, se tornaram legalmente meu feudo há trinta anos, com a morte do meu marido, mas ainda não é tanto a minha terra quanto o pequeno sítio onde nasci. Volto sempre que posso. Para caminhar, visitar a família que mora lá e trabalha a terra desde... desde bastante tempo. I Gozzoli. Eraldo Gozzoli. Ele se foi há muito, mas seus filhos e os filhos deles – sessenta

P:80

anos mais ou menos de homens Gozzoli, suas esposas e filhos – estão cuidando das coisas. Agora são dois netos de Eraldo com suas esposas e uma neta, o marido dela e os filhos morando juntos naquela velha casolare. Para você é um clã digno de um conto de fadas. Autossustentáveis, ou quase, unidos como uma quadrilha. Um por todos, todos por um. E nenhum deles tem qualquer fantasia com um bed and breakfast. Podemos ir até lá juntas um dia desses, se você quiser. Saiba porém que não é o tipo de lugar que Santa Fe Living escolheria para fotografar. A senhora Antonia também é picante como rúcula em maio. – Então o que você fará com ela? A rúcula? – pergunto. – Muito pouco. Lavar e secar, deixá-la numa toalha umedecida em um lugar fresco até a hora do almoço. Temperá-la com sal e azeite. Vou amassar o que sobrar junto com algumas nozes e umas gotas de óleo, acrescentar um pouco de pecorino para fazer uma pasta, nem grossa nem fina, passá-la em pão assado para dar início ao jantar de hoje. Todas as pestinhas de olhos azuis, cadeirudas, nervosinhas que porventura estejam na casa às seis e meia se juntam para cozinhar. Você seria bem-vinda. – Acho que não estou pronta para outra. – Ainda sente arder? – Talvez um pouco. Mas não é o único motivo para que eu não vá. – Come volete. Como quiser. Tempo para um descanso, não acha? Sem árvores para nos apoiar, nem bancos lisos de pedra, sentamo-nos em meio ao mato, nossas pernas esticadas – bonecas velhas, um pouco quebradas, jogadas no chão do quarto das crianças. Bebericamos o que sobrou do espresso. Palavras esvoaçantes, não ditas, em seus lábios e olhos, Antonia me olha, depois desvia o olhar. Ela pergunta: – Você já sentiu fome? Não me refiro a um atraso na hora do jantar, mas fome de verdade? – Ela se dirige menos a mim do que a uma plateia maior, reunida dentro de sua cabeça. – Também nunca viveu uma guerra, não é? Nem trabalhou quinze horas por dia nos campos, sob o sol, um sol causticante, com um pedaço de pão para mantê-la de pé, talvez um farelo de queijo e um punhado de mato como esse aqui. – Ela passa a mão nas folhas e arranca um bocado pelas raízes.

P:81

Depois de uma breve pausa, Antonia continua: – Nunca se acocorou debaixo de uma árvore para parir um bebê, nem cortou o cordão umbilical com seu canivete, sugou-lhe as secreções do nariz e da boca, enfaixou-o, amarrou-o ao peito e voltou a cavar batatas. Nem seu pai jamais convidou o padrone dele para apear do cavalo certa noite e relaxar em seus jovens quadris? Um presentinho, de homem para homem... Não, nada disso. Antonia me olha e não consigo dizer se ela espera que eu fique chocada ou sinta compaixão. Não tenho nenhuma das duas reações. – Alguma dessas coisas aconteceu com você? – pergunto-lhe. – Comigo não. Mas tudo isso fazia parte do dia a dia por aqui, não faz muito tempo. – E com umas poucas variações, você poderia estar descrevendo o modo como viveram, se não como vivem, as mulheres em qualquer país. Os infortúnios das pobres, das que sofreram abusos, das derrotadas não são exclusividade da Itália. E, do jeito que o mundo anda, a Itália conta com menos humilhações do que... – Eu lhe pedi na noite passada para não me aborrecer falando sobre a perversidade do mundo. São essas imagens cinematográficas, licenciosidade, calor e luz, classe, pegar emprestada outra vida, representar enquanto os queridos camponeses fazem o que lhes foi pedido, toda essa palhaçada. A Itália pela qual o mundo está enamorado é uma invenção, um cenário, representa... – Mais ou menos o mesmo percentual da Itália “real” que a Broadway ou Hollywood transmitem sobre os Estados Unidos. O que está tentando dizer? Sei disso. O mundo sabe disso. Mesmo assim, mesmo sabendo, há aqueles que vêm para cá para encontrar uma porção de la dolce vita. Pelo menos, é o que vêm procurar. Quer seja planejado, caro demais, deformado para o turismo, de segunda ou quinta mão, qual é o problema? Por que não falou com Fellini quando teve chance? A última frase a desarma e ela ri, mas não rio junto. Em vez disso, eu digo: – Colonos, peregrinos, exilados, a Itália não é sua propriedade pessoal, signora. Acho que compreendo seu senso de territorialidade, seu desejo de que esta parte da Toscana permaneça como é. Ou como foi. Mas nada permanece ou permaneceu igual, não há como. Ficar como era. Para o bem ou para o mal, as coisas progridem.

P:82

– E em cada passo à frente, há uma perda. Esbanjadora como um marinheiro bêbado, a sociedade sempre foi cega e voraz diante do progresso, e mal repara no preço que se paga. Custa dignidade, civilidade, moralidade, tradição, família. Deveria haver uma legislação que impedisse a venda de terra a estrangeiros, as novas construções, o licenciamento das construções existentes para usos que não estão de acordo com seu propósito original. Arrancando maços e mais maços de ervas, colocando-as sobre o ombro, Antonia fica finalmente em silêncio. Então eu falo: – Você se acha no direito de culpar todos pela sua angústia em relação à guerra? Vê um soldado alemão disfarçado em cada desconhecido? Parece que sim. A guerra acabou. Como Luce disse, não há inimigos se reunindo nas colinas. Mas eles bem que poderiam estar, do jeito que você insiste em manter a Breda carregada e apontada enquanto salga suas feridas. – O que você sabe sobre uma Breda? – Pouca coisa. Você disse tão bem... Nunca vivi uma guerra... – Vou embora... para lavar essas coisinhas e... – Essa ideia fixa com a Ocupação... Será que seus melhores dias foram vividos durante a guerra? Alegria, camaradagem, fazer as pazes com o destino, a vida sem a guerra parece...? Antonia já está se levantando e, em seguida, indo embora. Ela carrega sua sacola estufada quase arrastando-a pelo chão. – E eu não escrevo palhaçadas – grito enquanto ela se afasta. Sem se virar, ela grita de volta: – A domani. Até amanhã.

P:83

6 Verão Ainda é noite e o vento zune em meio às oliveiras. Na escuridão azulada e fria, espero por ela na metade do caminho branco entre Castelletto e a cabana. Esse encontro nunca foi combinado, mas uma sabe que a outra estará lá. Caminhando, cutucando aqui e ali numa campina ou em outra, ou no bosque, praticamente sem conversar, é como se eu a conhecesse há muito tempo. E como se eu nunca fosse realmente conhecê-la. Antonia. Estou de volta perto das sete da manhã, para uma chuveirada, tomar leite quente e comer meio pão que Biagino deixou para mim. Às vezes um ou dois dos ovos deixados por Giorgia, despejados em um pouquinho de creme aquecido, perfumados com tomilho ou sálvia e cozidos até que o creme fique denso, dourado e as gemas ainda moles. Eu como na própria frigideirinha. Sento-me para trabalhar. A felicidade de uma criança que se senta para brincar. Ou de uma criança mais velha, de uma menina de 12 anos que sai de trás de uma cortina azul-escura para receber aplausos educados. Senta-se no banco diante do piano. O salão parece bastante grande e escuro. Ela endireita as costas, seu vestido é cinzento, coloca o pé próximo aos pedais, contempla o teclado, fecha os olhos, e aí joga a cabeça para trás e toca com todo coração. Absorta, envolvida, toca até que sobra somente ela no grande salão escuro. Escrevo agora com todo o coração, pois estou sozinha no pequeno refúgio de Biagio. Mesmo em Veneza, eu tinha metade de um sofá de veludo sob uma luz opaca e âmbar em La Marciana e, virando a esquina, minha minúscula mesa no bar no interior do Florian. A última banqueta no Harry’s. Em San Lazaro degli Armeni, na ilha dos armenos, escrevi na biblioteca dos monges, mas não com tanta frequência. Eu não tinha computador. Em San Casciano, foi Barlozzo que, perto da lareira, montou meu sistema novo e, nos invernos, eu trabalhava com luvas sem dedos e dois suéteres. Vivíamos de qualquer coisa que pudéssemos cozinhar na fogueira. Meu quartinho vermelho no número 34 da Via del Duomo é meu primeiro “escritório” e sei que os ruídos do dia a dia, vindos do vicolo Signorelli, sob minha janela, um dia se tornarão uma espécie de serenata. Um conforto. Os operários, com suas blasfêmias e assovios, terminarão seu trabalho. Sei que Fernando começou a moderar suas expectativas. Nos fins de semana, é ele quem fala do novo regime, de como arranjaremos as coisas na minha volta. Sei de outra coisa. A fera que me visita de tempos em tempos é o desassossego.

P:84

Eu tinha ficado com medo de ter perdido minha garra, por estar tanto tempo afastada da vida de escritora. Medo de estar perdida no caminho. De nunca mais ser capaz de jogar minha cabeça para trás e tocar com o coração. Eu devia saber que não seria assim. Trabalho até o meio-dia e como de novo, ou não. Então me sento novamente para trabalhar ou subo na cama de princesa para ler as páginas que acabei de escrever. Às vezes Biagio ainda me encontra trabalhando às cinco, joga-me um beijo e sussurra: “Brava.” Mas em geral já tomei banho, me vesti e espero por ele. Depois do chá, vou até o vilarejo para fazer compras. Minhas receitas na cozinha da cabana permanecem rústicas, simples. Massa com azeite, queijo e pimenta. Pão assado na lareira e em seguida regado com azeite ou coberto com queijo ou culatello exportado da Emilia. Fatias transparentes de finocchiona artesanal, amplas e arredondadas como um prato, envolvo talos de aipo branco ou pequenos e pontudos pimentões verdes, cortados, sem as sementes. Quase todos os dias eu como feijões amassados em pão quente e cobertos com um punhado de cebola Tropea crua e picada, com um fio de azeite. Minhas compras são tão previsíveis que os comerciantes começam a embrulhar os itens assim que me veem. Um etto de finocchiona, 200 gramas de pecorino, mel de castanheiro de vez em quando, geleia de groselha preta ou vermelha, biscoitos para Biagino, creme grosso, todas as frutas bonitas que consigo encontrar, verduras para comer cruas com azeite e sal. Cento e cinquenta gramas de feijão branco. “Por que não cozinha meio quilo de uma vez?”, perguntou-me uma mulher que vejo quase todos os dias no alimentari. “O feijão se conserva por uma semana mais ou menos.” “Gosto do cheiro enquanto ele cozinha”, eu disse a ela. “Também gosto dos gestos que acompanham seu preparo: encher a panela, lavar os feijões, picar as ervas, jogar o sal. Gosto de me levantar para mexer a panela.” Ela nunca mais voltou a fazer a mesma pergunta, na verdade nem fala comigo desde então. Vou ao açougue somente nas quintas-feiras e deixo um pequeno corte especial de molho em vinho, ervas e azeite, a ser assado na noite de sexta-feira para o jantar de Fernando. Compro chocolate na pasticceria, Venchi 85%. Passo no bar para tomar um espresso de pé ou um Tio Pepe gelado. Embora veja os mesmos rostos todos os dias e eles me vejam, a discrição toscana permanece intacta. Buona sera. Buona sera. Arrivederci. Arrivederci. E eu que achava que os orvietani eram muito fechados. Às vezes, Antonia e Filippa estão no bar e uma delas sempre me convida para sentar. Como se aquelas horas matinais com

P:85

Antonia fossem uma parte da minha vida que desejo manter separada do resto, quase sempre recuso. Por mais que me sinta tentada a subir o caminho branco uma tarde e me juntar a elas na cozinha, eu resisto. Concentro-me. Como num devaneio, prevejo o telefonema das dez horas, que Fernando faz todas as noites para o número telefônico de Giorgia e Biagio. De banho tomado e perfumada, como se ele estivesse esperando por mim pessoalmente, chego às 21h45, às vezes antes, sento-me junto ao fogo com eles, beberico um copo de alguma coisa, mordisco um doce ou um punhado de nozes assadas. De pé, junto ao telefone que fica na mesa de mogno no salão, quando o relógio marca a hora, com a mão pousada no aparelho, Giorgia espera o terceiro toque antes de atendê-lo. – Buona sera, bello, come va? Boa noite, bonitão, como vai? Fernando sempre relata um acontecimento do dia, fofocas da feira, alguma travessura de Neddo. Quando percebo que ele está encerrando a história, vou para o lado de Giorgia, talvez um pouco próxima demais dela, praticamente pronta a arrancar-lhe o maldito telefone bem no momento em que ela se digna a passá-lo para mim. Giorgia fica por ali, então, a um metro de distância, se tanto, as orelhas em pé. Embora sejamos breves e falemos a maior parte das coisas em código, já é o bastante. Fico um pouco mais com Giorgia e Biagio antes de um deles ou os dois me acompanharem por uma parte do caminho até a cabana. Tudo é um ritual nesses dias e noites toscanos. – Jesumaria, quanto freddo... – digo para Antonia certa manhã, batendo os pés enquanto espero que ela cavouque num canteiro de alho silvestre. O capim alto suspira, pequenos animais se apressam. As cotovias fazem círculos e eu gostaria de ter ficado mais tempo na cama de princesa. Estou há sete semanas na cabana, sendo que nas duas últimas fiz caminhadas com Antonia pela manhã. Apesar de aparentemente ter me absolvido dos crimes contra a paz da Toscana, ela continua propensa a fazer discursos breves e incisivos contra os forasteiros. Embora nossos silêncios sejam mais longos que as conversas, quando falamos é, em geral, sobre homens e comida. Meu momento preferido é quando finalmente estamos descansando em algum lugar e ela começa a me contar algo que aconteceu na noite anterior ou há cinquenta anos. Oradora brilhante, parece menos talentosa como ouvinte. Ou será porque ela capta tanto o que eu digo quanto aquilo que guardo? – Claro que está frio. Como deveria estar em qualquer dia de junho ao alvorecer. E de onde você tirou essa frase? A maioria dos americanos diz ai meu Deus, não

P:86

é? Luce me faz rir quando fala “americano”. É tudo gíria, sua versão nacional do inglês. Quer dizer, segundo Luce. Como você chegou a Jesumaria? – Você se ofendeu? Sinto muito se... – Não, não. Não estou acusando você de bestemmia, de dizer o nome do Senhor em vão, é que me parece improvável para um forasteiro... – Isso vem de bem antes de meus dias na Itália. Anos e anos antes. Giuseppe Tomasi di Lampedusa. – Ninguém menos que ele... – Quando o príncipe faz amor com sua mulher, bem... no instante do arrebatamento, nunca entendi se o arrebatamento era dela, dele ou dos dois, ela sempre dizia Jesumaria. De alguma forma, guardei isso. Acho que devia ter uns 16 anos quando li pela primeira vez. Acho que eu desejava ser ela. Queria que dom Fabrizio fizesse amor comigo. Queria ter um motivo para dizer Jesumaria. De qualquer maneira, veio daí. – Pobre Jesù. Embora ela esteja sorrindo, ainda temo ter dito uma asneira. – Não imaginava que você fosse uma credente, uma crente, quer dizer... – Não sou. Eu era apenas uma garota quando decidi que a dança de três passos da Igreja não se adequava bem a mim. – Três passos? – Culpa, expiação, perdão. Os mesmos três passos repetidas vezes. Por perder a missa, por assassinato, por, por... todos os atos odiosos cometidos pelo homem, inclusive comer carne às sextas, tudo o que se precisa fazer para permanecer no seio da Igreja é confessar. E se alguém mente no confessionário, sempre se pode acrescentar essa mentira à próxima leva de pecados. Não me parecia justo. Hoje em dia, menos ainda. Mas isso não quer dizer que eu não sinta um grande carinho por Jesus. Um menino extraordinário. Para mim, ele nunca envelhecerá... Não me lembro que soneto seria... Para mim, bom amigo, nunca envelhecerás, pois como meus olhos o viram pela primeira vez, tal beleza permanece. Para mim, ele terá sempre 33, segurando aquela cruz. Quantas vezes na vida quis reconfortá-lo, fazê-lo dormir como eu faria se fosse meu filho, cobri-lo com os lençóis da cama cheirando a alecrim e tomilho, afastar aquele

P:87

cabelo com a palma da minha mão, beijar a testa dele e lhe dizer: “Está tudo bem.” É estranho, mas nunca penso em lhe pedir nada, pois já me sinto constrangida pela minha própria fartura. As colheitas feitas, o vinho nos barris, o queijo embrulhado, pronto para maturar, os cordeiros se aconchegando às mães, meus próprios momentos de contentamento e angústia exatamente como deveriam ser... Depois de uma breve pausa, prossigo: – Desejei muitas vezes servir a Jesus. Ao homem de carne e osso que foi Jesus. Se quiser saber o que acho, penso que ele era mais um lobo solitário do que um pastor. Talvez os dois sejam personagens bem parecidos. De qualquer maneira, a pobre criança não tinha mesmo uma sina muito boa tendo uma virgem como mãe, o Deus dos Deuses como pai e aquele homem doce mas, no grande esquema das coisas, inútil como patrigno, que queria apenas ensinar-lhe a trabalhar com a madeira. E aí toda aquela história de perambular tentando dizer às pessoas o que deviam pensar, fazer e acreditar quando a triste verdade é que cada um de nós precisa encontrar seu próprio caminho para compreender tais coisas. Compreendê-las ou deixá-las de lado. Deixá-las de lado e seguir em frente. De uma forma ou de outra, é uma estrada solitária. Seu Pai devia saber disso e é por isso que não consigo imaginar por que Ele impôs uma tarefa tão ingrata àquele menino bonito. Além disso, como seu Pai devia saber de antemão, vieram as traições, a inveja e o tipo de ódio criado pelo medo. E então Jesus negando a si mesmo o que poderia ter sido o amor verdadeiro com a Madalena. Com uma morte cruel e insuficiente para redimir os pecados do homem, seu Pai lançou mão do outro braço, o fogo purificador do Espírito Santo, mas nem mesmo isso fez tanta diferença. Se Jesus tivesse nascido nos tempos atuais, talvez se recusasse a cumprir as ordens do Pai. Talvez fosse cuidar da própria vida. Gostaria que tivesse sido assim. Apesar de todo o bem que veio de sua morte, preferia que ele tivesse dito não, fizesse a mala e partisse. Sim, muitas vezes desejei isso para Jesus. Olhos fechados, mãos trabalhando em meio ao capim, queria que ela voltasse a falar, mas ela não fala. Quando abre os olhos, tudo o que diz é: – O feijão. Caminhando com toda a pressa, explica que deixou uma panela de borlotti frescos cozinhando na varanda. – Deixei um bilhete na cozinha, mas como vou saber se alguma delas... Venha comigo e, depois de cuidar do feijão, podemos sair de novo...

P:88

Quando chegamos à cozinha da villa, Filippa está amassando os feijões rechonchudos com a extremidade de um rolo de pastel de dois pinos. Entregando a tigela e o rolo para mim, ela vasculha a sacola de Antonia, tira os talos esguios de alho, cujos brotos minúsculos ela começa a amassar em um grande pilão até criar uma pasta. Pega os feijões amassados comigo, acrescenta a pasta e, com gotas de azeite e generosas pitadas de sal, trabalha na massa até que ela ganhe uma textura sedosa de musse. Entrega-me duas cebolas de casca vermelha. – Se importaria? – Bem fina? – pergunto, passando para a tábua de cortar e escolhendo uma faca. – Fina o suficiente. Vou ligar a Bialetti. Estão com fome? – Ela está enchendo a máquina de espresso, tostando pão no fogo, esquentando leite. – Você só precisa jogar a cebola sobre o feijão, adicionar um pouquinho de azeite, cobrir a tigela com aquele pano e deixar descansar na despensa. Giorgia está fazendo linguiças... com o feijão e algumas bruschette, teremos um belo almoço. É claro que você vai ficar. – Ainda nem são sete da manhã e eu... Antonia está lavando ervas. Luce entra, vinda de algum lugar nos bastidores, com um braço sobre os ombros de uma jovem que deve ser sua filha, de tão parecidas que são. – Ah, Marlena, buongiorno – diz Luce, abrindo um sorriso para mim e depois para a jovem. – Essa é a minha Sabina. – É um prazer... Saindo por outra porta, Isotta interrompe as apresentações, junta Luce, Sabina e eu em um abraço e vai beijar a cabeça de Antonia. Logo começa a arrumar xícaras e pratinhos, minúsculas colheres de prata, pratos amarelos com rosas vermelhas nas beiradas. Todas elas falam ao mesmo tempo, contudo parecem ouvir e responder sem dar sequer uma pausa no que estão dizendo. Como sempre, me distancio, observo e escuto até que – abrindo completamente a porta da varanda com seu quadril – mais uma delas chega. Com uma grande caixa rosa de doces pendurada no seu punho, uma braçada de tulipas vermelhas embrulhada em papel de florista na dobra do outro braço, ela é uma jovem Antonia. Cada saliência, cada curva e cada osso de seu rosto são idênticos aos de Antonia. Lembro-me de ter ouvido Filippa dizer: Viola é minha filha mais velha. Uma beldade de um jeito parecido com o de Antonia. Seu tipo de

P:89

beleza é um dom, eu acho. O tipo imperfeito, aquele que dura para sempre. – Bonjour, mes petites – cantarola ela. – Sei con le mandorle, sei con il miele... Seis com amêndoas, seis com mel. – Oh, Marlena, não é? – Sim, sou... Entregando as tulipas para a irmã, Viola diz: – Isa, Magda vai descer? São as favoritas dela... não pude resistir quando as vi na feira... Com a intenção de me cumprimentar com a mão que agora está livre, creio eu, Viola estende a caixa de doces, ainda presa ao pulso, e quando tento segurá-la as fitas escorregam, deslizam da caixa que tomba nos ladrilhos deixando seis com amêndoas e seis com mel numa pilha a meus pés. – Sinto muito, eu... Mas uma delas já jogou os doces sobre um prato, enquanto Viola me envolve em um abraço. – Deixe-me dar uma olhada em você – diz ela. Mantendo-me próxima, ela acrescenta. – Eu queria tanto... Seis delas na cozinha é quase demais para mim. Todas altas, de olhos azuis, vozes graves, cabeleiras castanhas-negras-grisalhas cacheadas e soltas, ou simbolicamente presas em alguma forma de coque. Todas, exceto Luce. Antonia de vestido marrom com seu cinto de ferramentas e as outras de jeans ou calças de montaria, camisetas, suéteres, botas, todas lindas. A sétima chega fungando, o cabelo enrolado em uma toalha branca, jeans, camisa branca, botas de cano curto com salto alto e grosso. Bisavó, avó, mãe e tias se amontoam em volta de Magdalena, abraçando, beliscando-lhe as bochechas, passando a parte de trás das mãos sobre sua testa, uma delas esfregando a toalha em seu cabelo, outra tirando um suéter e colocando-o sobre seus ombros, outra ainda obrigando-a a sentar em uma cadeira e entregando-lhe um croissant com amêndoas. É a primeira vez que vejo as sete juntas e parece um encontro de sósias de Virna Lisi. Adoráveis mulheres. Outro tipo de território sem homens. Minhas mãos apertando a tábua de cortar carne atrás de mim, fico parada e olho fixamente. É a própria Magda que abre caminho na multidão e se aproxima, passa um braço na minha cintura e me conduz à mesa, para que eu me sente a seu lado.

P:90

– Queria que houvesse pelo menos mais uma na minha geração. Alguém com quem eu pudesse dividi-las. Fale-me de você. – Não tenho nada para contar. A parte mais empolgante do dia é sair para cavoucar ervas com Antonia, eu... – Vocês ficaram amigas. Ela me contou. As outras estão se dispersando, de saída quando Giorgia chega com um cesto com couves e um prato de linguiças cruas. – Essas aqui precisam ser furadas e banhadas em vinho branco. E as couves têm que ser lavadas e fatiadas. Alguém me ouviu? Depois de um pouco de trabalho, uma chuveirada demorada e uma curta soneca, estou de volta a Castelletto, sentada com Antonia no salone. É meio-dia e, com uma pequena jarra branca, ela está servindo suco de pêssego em dois flûtes de vinho espumante cor de âmbar. – E você nem ouse chamar isso aí de Bellini. Para começar, os pêssegos estavam maduros e doces, colhidos esta manhã, e o vinho é um moscato de Asti, em vez de alguma gororoba meio azeda do Veneto. – Não teria pensado em um Bellini – digo-lhe, tomando um segundo gole, mais prolongado. Mais uma vez, ela é a garotinha se preparando para voltar à nossa brincadeira. – Não sei muita coisa. Acho que há mais luz no ventre e na sepultura do que por aqui. Mesmo assim, de vez em quando eu perambulo de novo em meio à neblina, procuro algo para aprender. Quase sempre acabo dizendo a mim mesma que o que não sei talvez não valha a pena saber. O que eu sei parece ser o bastante. O suficiente para que eu não esteja em combate constante com a vida ou com a parte dela que me cabe. Você talvez tenha dificuldade de acreditar nisso. – Nem tanto. – Nunca desejei a felicidade do jeito que a maioria das pessoas deseja. Eu me sinto bem ou eu me sinto mal. Quando me sinto bem, obrigo-me a lembrar de quando me sentia mal e vice-versa. Por isso nenhum dos dois sentimentos dura muito tempo. Eu confio nos dois. Acredito que o prazer em grandes quantidades se tornaria um fardo. O que estou dizendo é que gosto da minha vida. Fico feliz

P:91

com minha pá e minha faca. Sou apenas uma singular e fugaz edição de todas as características boas e ruins que me foram transmitidas. Legados ancestrais, dotes que vieram por eu ter nascido toscana. O poder desses dotes não pode ser negado e, menos ainda, o poder do que eu mesma fiz com eles. É a minha vez de viver por aqui e me sinto grata por isso, à vontade em minha própria pele. À vontade o bastante. Antonia fez uma pausa, depois prosseguiu: – Quando ouço o farfalhar dos tufos sobre os grãos, sei que estão maduros e que em breve, com a lua certa, haverá uma semana de rugidos de máquinas e mais quatro à mesa, os mesmos homens que fazem a colheita conosco desde que eram meninos. E à noite, quando o trabalho termina, o trigo está cortado, sovado e pronto para ir para o moinho, aqueles rostos embranquecidos pelo joio, aqueles descendentes dos antigos que cultivaram os primeiros grãos de campos estéreis, eles começarão a entoar hinos para Demeter, passando moringas de vinho, rindo e soltando gritos em sua própria e humilde forma de demonstrar triunfo. Olímpica, à sua maneira. Não é por esporte, mas pelo pão do próximo ano. E bem ali sobre os talos cortados, rígidos e dourados, colocaremos as pedras para fazer uma fogueira, espalharemos mesas com tigelas, bandejas, frutas e flores silvestres, os barris próximos, os bandolins sendo dedilhados, e faremos o jantar na fogueira. Eu quero contar a ela o que aprendi sobre a colheita do trigo durante aquele verão na Sicília, há tanto tempo. E sobre a forma com que o povo de San Casciano celebrava as colheitas e lhe dizer que conheço o hino a Demeter... Começo a cantar para Demeter, da rica cabeleira, deusa terrível... Ela agora está em silêncio e eu poderia lhe dizer como amo essas feste, os símbolos, os rituais, e que já montei minha própria mesa de jantar em um campo recém-trabalhado, fiapos de palha soprados por qualquer brisa e pousando em nossos cabelos e rostos suados, quero lhe dizer... Ela já está falando de figos. – Na primeira pancada surda de um figo despencando nas folhas frágeis, sei que está na hora de botar o tacho no fogo, medir o açúcar, aferventar os jarros. Quando alcanço um dos belos figos negros da tigela cheia deles sobre minha mesa, imagino que outra mulher talvez tenha uma tigela mais bonita, uma tigela melhor sobre uma toalha mais encantadora, que do lugar onde ela se senta talvez o sol brilhe atravessando uma janela mais ampla, adornada por algo mais opulento do que minha renda esgarçada que balança com a brisa de setembro. Imagino que outra mão pode ser mais macia do que a minha, os anéis envolvendo dedos mais grandiosos do que os meus, que outra mulher talvez tenha vivido amores maiores ou tristezas mais profundas, que ela talvez seja a

P:92

Imperatriz da Índia. Existe uma? Não sei dizer, mas gosto de como esse título soa e acho que eu ia gostar dela também... desde que não quisesse comprar uma velha fazenda e... Voltando para aquele figo... é meu prazer imaginar como ele é... é o prazer que faz de mim uma pessoa de sorte. Ao esticar o braço para pegá-lo, reparo em tudo isso, reparo nele, a sensação em minha mão, no seu perfume parecido com pimenta que acabou de ser amassada e mel negro aquecido no fogo. Levanto o figo e o coloco em um pratinho vermelho e amarelo, olho o garfo e a faca com cabo perolado postos em cada lado. Escolho mordê-lo diretamente. Com a casca e tudo. Os sumos enchendo minha boca, banhando meu queixo, respingando aqui e ali no alto do meu vestido. Como se fosse uma cerimônia. É essa sensibilidade para a vida que... – Sensibilidade, talvez. Mas eu chamaria de sensualità. Voluttuosità. Sensualidade, voluptuosidade. – Olho direto para ela. Digo as duas palavras lentamente. – Não são emoções desconhecidas. Quero dizer, mesmo para aqueles de nós que não nasceram na Toscana. Antonia ajeita os grampos de tartaruga e o coque, passa as mãos abertas sobre os contornos das coxas, alisando o vestido. – Está na hora de ajudar aquelas pestinhas cadeirudas. Rindo baixinho, ela caminha em frente, repetindo voluttuosità, várias e várias vezes, como se fosse uma palavra que nunca tivesse ouvido antes. Dá uma meia- volta e diz a palavra mais uma vez, depois pega a minha mão, puxando-me para a frente, para que caminhemos juntas. Dourados, finos e largos como um prato de sobremesa, ela os retira da tina de óleo fervente com uma escumadeira com cabo de pau, coloca-os sobre uma toalha de cozinha branca e macia por alguns segundos – o bastante para salpicá- los com cristais de sal que ela esfrega entre as palmas das mãos, o sal úmido chiando ao fazer contato com aquelas belezinhas quentes e borbulhantes –, transfere-os para uma grande cesta achatada, forrada com pano de listas amarelas e brancas. Tortucce. Literalmente, bolinhos. Dialeto toscano para pães achatados, perfumados com alecrim silvestre, fritos em bom azeite de oliva verde, prensado com os frutos das oliveiras frondosas que desfilam pelas colinas abaixo. O cheiro dos tortucce provoca uma fome primitiva. Como a primeira fome do mundo, minha boca se enche de água. Engulo com força, pergunto-me se Isotta vai me oferecer um deles, mas ela apenas continua a fritar, a conversar, a esfregar o sal cinzento nas suas belas mãos morenas – mãos de Antonia –, colhendo outra bolinha de massa do tamanho de uma ameixa de dentro da tigela

P:93

e abrindo-a com os dedos até se tornar um disco acetinado. – Toda vez que faço tortucce, lembro o que Antonia me falou, quando eu era pequena, sobre todas as mulheres que os prepararam antes de nós. Aquelas que tinham sorte de possuir um saco de farinha. E uma família faminta para alimentar. Antonia sempre fala sobre alimentar as pessoas, reparou? De qualquer maneira, ela sempre me dizia que, não importava o que mais havia, sempre se podia encontrar um raminho de alecrim. Sal também. Uma colherada saída do jarro de biga borbulhando na sombra fresca da despensa. Acrescento um pouco de manteiga e leite à minha massa, só um pouquinho, para deixar o miolo mais macio. Mas fica gostoso de qualquer jeito. Antonia diz que fica melhor sem manteiga e leite. É claro que é o azeite que faz com que sejam bons. Com que sejam tortucce. Observo e escuto, pergunto-me quantas mulheres em tantos lugares no decorrer dos últimos milhares de anos cozinharam alguma forma de massa feita com grãos e água sobre uma pedra aquecida ou sobre as cinzas de uma fogueira a lenha, a turfa, qualquer tipo de fogueira. Distraída por alguma comoção do outro lado da varanda, ela pergunta: – Você pode cuidar disso para mim um pouquinho? Vou ali ajudar com as fritadas... Termino a leva de tortucce, cubro-os – menos aquele que surrupio – com outro pano, e, enquanto busco um lugar para mantê-los aquecidos, Antonia passa, tira- me o cesto e começa a oferecê-los. Outra pessoa já está distribuindo copinhos de vernaccia gelada. Quando Antonia volta a passar perto de mim, levanta o pano para que eu possa pegar um tortuccia, e eu lhe digo que mal posso esperar para experimentar um deles. Com o dedo indicador, ela tira uma migalha traiçoeira de um canto de minha boca e diz: – O segundo nunca é tão bom quanto o primeiro. Desloco-me pela varanda, onde Isotta domina um estreito nicho diante de uma panela bem menor cheia de óleo fervente, posta sobre uma boca de gás. – Frittelle di fiori di borragine, bolinhos de flor de borragem – diz com um sorriso, sem levantar a cabeça enquanto mexe a panela. Flores azul-claras aparecem em meio a finas cascas douradas, ela ergue as frituras com uma escumadeira, coloca-as em uma pequena cesta oval forrada com tecido. Outra do clã surge e, sem dizer uma palavra, pega a cesta, cobre-a com outro pano, leva-a até a mesa. Quando a próxima leva de Isotta fica pronta, há sempre alguém por perto para

P:94

levá-la. A dança das filhas já foi muito praticada. Saio da movimentação da varanda e entro no caos maior da cozinha. Em um dos fogões de cinco bocas, Luce lança fígados de frango rosados e gorduchos em manteiga e azeite, sela-os sobre o fogo quente. Com o polegar sobre o gargalo de uma garrafa com um litro de Vin Santo, ela banha os miúdos com o vinho doce e seco, joga a massa em um grande almofariz de mármore. Com as bochechas coradas, rindo alto de algo que Filippa conta a um quilômetro de distância, ela é uma alquimista moendo as escaldantes vísceras de vinte frangos com um pilão de madeira, mantendo o ritmo enquanto salpica sal, alcaparras, um punhado de casca de limão tão fina que parece um pó. Sem perder o ritmo, ela derrama pedaços de manteiga sem sal gelada e gotas de conhaque, bate tudo até fazer uma pasta grossa. Corta fino um pão de dois quilos com a casca tostada, dispõe as fatias na grelha sobre cinzas vermelhas e brancas em uma lareira profunda, chamuscada. Com um dos lados tostados, ela habilidosamente passa o lado não aquecido em uma tigela com caldo de galinha quente e coloca o pão numa bandeja, o lado molhado virado para cima. Passa a pasta no pão em uma camada uniforme. Com a palma da mão direita erguida, ela equilibra a bandeja, carrega-a até uma mesa com pernas de ferro e tampo de pedra, montada ao ar livre, sobre as lajes. Vou até Filippa que trabalha com uma pequena montanha de alcachofras, aparando as folhas, eliminando as ruins – belezuras recém-criadas – e descascando os talos de quase trinta centímetros. Em cada coração ela enfia folhas de hortelã, dentes de alho amassados e descascados, finas fatias de limão, empilha-os em uma imensa bacinella de cobre, despeja vinho branco, água, azeite, coloca mais hortelã, sal, cobre a panela e liga o fogo. – Não vai demorar nada. Vamos beber um pouco de vinho – diz ela. Nos aparadores de carvalho colocados aqui e ali na parede da varanda, há terrinas de farro, uma sopa espessa com batatas novas, bandejas ovais em azul e branco de frango assado no vinagre de vinho tinto e a musse borlotti de Filippa, e a decoração final, um grande emaranhado de folhas de sálvia fritas. Uma roda de pecorino jovem, ainda cremoso, está sobre o mármore perto de uma tigela de peras caramelizadas e de outra com a fruta fresca, algumas ainda em seus galhos folhosos. – A tavola, tutti a tavola – convida Antonia, embora ela permaneça em pé, com uma das mãos sobre os quadris, diante de seu lugar na cabeceira. Jarros de vinho com pintas verdes são distribuídos, cada um serve o outro.

P:95

– Alla nostra. Alla nostra. A nós. A nós. Giorgia chega com uma bandeja de cobre, as linguiças, queimadas e rachando do fogo, colocadas sobre um leito feito com galhos de alecrim silvestre. Por fim, chegam Filippa e Luce – cada uma com um pano branco na mão para segurar uma alça de uma fumegante bacinella de belas alcachofras roxas. São colocadas diante de Antonia. Ela retira um prato de sopa de uma pilha, coloca uma alcachofra, com a colher pega um pouco do caldo com vinho e limão, despeja o denso azeite verde de uma ânfora de dois litros e passa a iguaria para o restante da mesa. Buon appetito ecoa como uma oração.

P:96

7 Um rolo de linho com listas vermelhas no colo, ela estende o tecido acompanhando seu braço, segura o dedo para marcar o lugar e corta. Então começa a fazer uma fina bainha arredondada nas duas extremidades, retirando a agulha com linha que estava presa no bolso do vestido. São quase nove horas da noite e Antonia e eu nos sentamos frente a frente na varanda. Com a luz ainda forte do sol do final de junho, ela costura panos de prato. – A noite sempre me espanta. A esta altura da vida, ainda ser capaz de sentir espanto é, em si, algo adorável. Venho me sentar na varanda, olhar os campos, vazios ou fartos, e fico algum tempo com uma panela que contém alguma poção preparada com a colheita do dia, picando pão para as galinhas e ansiando algo, ansiando tudo, embora não saiba dizer exatamente o que é. O desejo, entende? Não sei dizer se é nostalgia, se sinto falta de alguém ou de alguma coisa, que talvez eu ainda nem tenha conhecido. Hiraeth. Talvez seja hiraeth, Antonia, digo a mim mesma. Aquela palavra em galês de novo... ansiar, sofrer, mas por quem? Pelo quê? – Será pelo meu Tancredi? Será que ainda espero por ele? Olhar para trás me fez crer que talvez tenha tido sorte em perdê-lo tão cedo, é mais provável nos decepcionarmos com as pessoas que mais amamos. É de Ugo que sinto saudades? É, com certeza. Aquelas pernas compridas emaranhadas nas minhas em todas aquelas noites, como amei o cheiro dele... Usei sua jaqueta de couro até poucos anos atrás, quando Isa ou uma das outras a trancou em algum baú. Ele caçava com ela, andava a cavalo com ela e, como se o velho couro tivesse se transformado em sua pele, eu podia encontrá-lo ali. Cravos, pinheiro, âmbar, fumaça de cigarro. Mesmo sem a jaqueta, eu ainda consigo encontrá-lo. Porém mais do que Ugo e Tancredi, mais do que meu pai e todos os outros a quem amei por algum tempo ou para sempre, creio que o desejo que sinto é de saber se eu cumpri bem a tarefa. Da vida. Nada encoberto, nada desperdiçado. Com esse objetivo, finjo que cada manhã é a última. Quando se passa dos 80, acho que é um jogo justo. Além do mais, há uma espécie de emoção nele. Nada de mórbido, mas alegre, sim, isso mesmo. Deslocar-se por essa beirada onde o vento bate, em que cada movimento faz diferença. Não é que eu pratique a morte, mas com meu estoque de dias reduzido, eu me aproximo da sua inevitabilidade. Como o inverno, mais cedo ou mais tarde ela virá. Criatura manhosa, o Cavaleiro, eu o encontrarei com a cabeça erguida, sem temores. Seria brutal ouvir seus sussurros ásperos, entender que ele veio me buscar e então

P:97

sentir a cabeça girando e balançando com gestos meio encenados, mal- encenados, palavras não ditas. Ditas. Depois de compreender que a vida inteira está contida em cada dia e noite, eu aceito as coisas. É como digo a você e a todas elas... Festina lente. Depressa, mas não tanto. Antonia morde a linha, dobra três vezes um dos panos de prato que acabou de ficar pronto, coloca-o na pilha, corta outro pedaço de tecido. Põe linha de novo na agulha. – Acho que é um momento tão bom quanto qualquer outro. Para começar. – Para começar...? – É o que você deseja, não é? Ou o que as outras desejam. Sei que andam por aí, pelos cantos, pedindo que você me convença a contar minhas histórias de novo. – Se fizeram isso, foi com muita delicadeza. – É por isso que Luce a convidou para tomar chá no hotel? Quando foi? Há dois dias? Para lhe pedir que... – Luce e eu conversamos mais sobre as viagens dela para os Estados Unidos. Mas é verdade, ela me disse que gostaria que você escrevesse suas histórias. Pelo menos começasse. Ela acha que você se sentiria mais à vontade escrevendo do que falando. – Ela provavelmente está certa. Mas não sei se eu conseguiria escrever tudo. Durante minha vida inteira, nunca escrevi nada além de algumas cartas. Imagine a tal Madame de não sei o quê, não consigo me lembrar do nome, tendo escrito todas aquelas cartas para a filha e, pior ainda, Rilke, que deixou dez mil cartas, vinte mil? Tolo. Teria sido uma vida mais útil se ele tivesse preparado dez mil jantares. – Ela abaixa a costura, se inclina em minha direção e sacode a cabeça. – Nem sei se tenho tempo de escrever tudo. Não estou me referindo ao número de horas por dia, mas aos próprios dias... quantos eu teria de sobra para...? – Poderia tentar. Poderia começar. – É a essência da coisa, não é? Estão com medo de que eu morra sem ter dito tudo o que desejam ouvir. – Talvez estejam mais temerosas de que você morra sem dizer tudo o que deseja dizer. “Nada desperdiçado, nada encoberto.” Foi o que você disse. – Em relação ao desperdício, é difícil, mas eu me esforço. O nada encoberto se

P:98

refere a mim. Dizer a verdade para mim mesma. Não sei o que desejo revelar para alguém. De tempos em tempos, tentei. Conversar com Filippa. Com Luce. Mais de uma vez com as duas juntas. Nunca fui muito longe. Acabo deixando lacunas, me sentindo uma tola, ouvindo minhas palavras com seus ouvidos, observando cada movimento que fazem, tentando compreender o julgamento delas. E, por isso, pratico a censura. Só um pouquinho e então um pouquinho mais, e aí tudo vai por água abaixo e começo a me ouvir contando histórias de outras pessoas. Nunca funciona. Pobrezinhas. A essa altura, já são bem mais velhas do que eu. Acho que prefiro levar comigo os meus mistérios. – Provavelmente, é melhor assim. – Provavelmente. Costurando com pontos pequenos, ela permanece em silêncio. – Talvez não – diz ela, com a agulha parada acima do pano. – Talvez não. Depois de guardar seus apetrechos de costura, de servir algum preparado com aroma de ervas em dois copos longos, Antonia está trêmula como uma novata. Provo aquela coisa verde-escura, digo-lhe que é no mínimo intragável e suas risadas parecem acalmá-la. – Vamos ficar aqui por um bom tempo, você sabe. Quando eu começo... – Tudo bem. Desde que eu não tenha que beber isso. – Pois bem, até onde sei, porque isso me foi contado aos poucos e desordenadamente ao longo do tempo, nasci seis dias depois que o marido de minha mãe partiu para se juntar a um regimento dos Alpini que estava instalado em Friuli. Um voluntário em tempos de paz, pois não havia paz nenhuma para ele em casa, eu diria. Veja bem, por quase nove meses minha mãe escolhera não lhe revelar suas dúvidas em relação à paternidade da criança que ela carregava no ventre. Não tendo engravidado durante os sete anos de casamento e enganando-o o tempo todo, quando anunciou que esperava um filho, ele, seu marido, ficou louco de alegria. A alegria de seu querido admirador, o homem a quem, em seus últimos momentos, ela chamaria de único amor de sua vida, foi menos convincente. Desejou boa sorte à minha mãe e partiu para outra. A mulher do padeiro de Pietrasanta, pelo que me lembro da história. Posso ter

P:99

inventado essa parte, mas acho que é verdade. Com frequência pensei no sofrimento de mamãe ao perder o amante, e se esse sofrimento teria sido transmitido para mim. Acho que sim. Sob a forma de melancolia. Uma agonia em tom menor, pequena e forte como um seixo, tão familiar quanto meus próprios olhos. Antonia faz uma breve pausa e continua: – Não tenho lembrança alguma, nem precoce nem tardia, de que ela me tratasse como mãe. Não quero dizer que ela fosse relapsa, que não trabalhasse dia e noite, que me faltasse outra coisa além de um ou outro carinho. Ou ter suas mãos segurando meu rosto por um momento, com seu olhar no meu, de vez em quando. O que ela não me dava, ou não conseguia me dar, eu dei para ela. Sempre aprendi rápido e sabia quando elogiá-la, como reconfortá-la, como fazê- la rir. Aprendi como salvá-la. Até de si mesma. Sem saber que as coisas eram, de certa forma, ao contrário, sem saber que talvez tivesse sido ela quem colocara a pedra no meu sapato, os acontecimentos me pareciam muito naturais. Levando-se em conta quem ela era e quem eu sou, suponho que foram. Acho que minha mãe foi, na verdade, minha primeira filha. Eu a escuto, sem dizer nada. – De qualquer maneira, deve ter sido por causa de um desejo de grávida de deixar as coisas em ordem que ela resolveu dizer a verdade para o marido. “Pode ser seu. Pode ser dele.” Então ele fez a mala e seis dias depois eu nasci, em 3 de maio de 1920. Como minha mãe não tinha parentes, foi uma mulher da aldeia que a ajudou no parto, com nada além de água quente, azeite de oliva e palavras mágicas sussurradas. Somos tão pagãos por aqui como somos qualquer outra coisa, mas vou chegar nessa parte depois. Um irmão do marido de minha mãe cuidou da lavoura até que ela estivesse suficientemente forte para assumir o trabalho. Não lembro desses primeiros anos a não ser quando olho uma foto, tirada não sei por quem, de minha mãe com as saias levantadas na altura das coxas, usando botas que deviam ter pertencido ao marido, o corpo arqueado pela tarefa de revolver o solo no trigal. Com uns 2 anos de idade, estou ao lado dela, vestindo apenas calçolas brancas cobrindo os joelhos, apoiando-me em minha própria enxada de fabricação caseira, posando para a câmera. Ela respira fundo e prossegue: – Eu tinha quase 3 anos quando o marido de minha mãe retornou. Não sei se foi por amor a ela ou pela dor de ter abandonado uma criança que era, realmente, de seu próprio sangue. Acredito mais que tenha sido pelo chamado patriarcal da

P:100

terra dele, a terra de seu pai, e do pai de seu pai; deve ter sido isso que superou tudo. Nunca saberei. O que posso dizer é que por volta dessa época, e talvez por causa de seu retorno, minha infância começou. Embora eu não saiba até hoje se sou filha dele ou do outro, daqui para a frente vou passar a referir-me a ele, Marco-Tullio, como meu pai. Eu o amava, ainda o amo intensamente. Antonia me dirige o olhar, sem se interromper. – Foi pouco antes do meu casamento que minha mãe começou a me contar isso. Em um segundo impulso de organizar as coisas, imagino. Assim como explicar o que acontece entre os casais na cama, ela dizia que me contar aquilo era seu dever. Na época, achei que foi desleal. Desde então abrandei o veredicto, depois de viver o bastante para protagonizar minhas próprias deslealdades e de compreender que todo o mundo faz isso. Mesmo as mães. Principalmente as nossas mães. Tenho certeza, certeza, de que ela sabia quem era meu pai. As mulheres sempre sabem. Acredito que o dever dela seria me contar o que sabia. Ela morreu pouco depois do meu casamento. A essa altura, eu já havia compreendido que minha mãe estava certa em nunca me dizer. Deu-me a chance de escolher. Eu escolhi Marco-Tullio como pai. Eu apenas escuto. – Sem saber nada sobre a história de meus pais enquanto eu crescia, não posso lhe dizer que tive uma infância sofrida. Mas talvez tenha tido. Talvez todos nós tenhamos. Acho que sim. De qualquer maneira, vivíamos bem, os três. Ou será que vivíamos tão bem quanto era possível para nós três? Se havia fantasmas entre nós, eles não nos assustavam. Ela respira fundo mais uma vez e continua: – Só depois que me casei com Tancredi descobri que havia um tipo de vida diferente daquela que eu conhecera por quase dezoito anos com meus pais. Vida além da lavoura, do trabalho, da lavagem, da cozinha, das orações, do sono, do cheiro do pão no forno no sábado, do coelho assado no domingo. Na segunda- feira, o fiaschetto, com um pano úmido enfiado no gargalo para que não explodisse nas cinzas, o fiaschetto de vidro verde que continha feijões de molho, algumas gotas de azeite, meia taça de vinho branco, uma colher de tomate em conserva e quatro folhas grandes de sálvia, que me mandavam colher perto das videiras. Ainda vejo as mãos de minha mãe medindo tudo, ainda a escuto cantar tão alto que meu pai a chamava de la squarciagola, “a esgoeladora”. Nunca parei para pensar se éramos pobres ou não, se é que eu sabia o que era ser pobre. Hoje sei que nunca fomos pobres. De forma alguma, só não tínhamos dinheiro.

P:101

Bastavam alguns hectares de terra boa, nossa astúcia, força e a graça dos anjos para nos sustentar. Um campo para o trigo, um para o milho, uma encosta para as videiras e os pomares, uma campina para ovelhas, uma casinha de pedra para nós e um estábulo para duas vacas e uma mula. Tínhamos mais do que a maioria das pessoas. Não me recordo de sentir fome, não tanta fome, nem com tanta frequência, embora eu me lembre de ter roubado do tinello, certa vez, quando meus pais estavam trabalhando. Depois de cortar uma fatia desajeitada do pão que deveria durar uma semana e de colocá-la no bolso do vestido, corri como o vento, ziguezagueando pelo trigal, os talos altos e secos de agosto raspando as bochechas daquela menina de 5 ou 6 anos. Rumo às árvores frutíferas, com o coração retumbando em meu peito magrela, mantendo distância do rebanho, corri até cair de joelhos diante de uma pilha de galhos partidos de uma pereira onde eu escondera um pedaço de favo de mel no início daquela manhã. Com as mãos trêmulas pela vontade, passei o pão naqueles poços cor de âmbar que respingavam do favo e, segurando o pão na palma da mão, mastiguei-o como se eu fosse uma loba faminta. Ainda me dá água na boca ao lembrar e, sempre que isso acontece, sinto-me grata por ter podido provar pão e mel com aquele tipo de fome. O tipo que resulta em êxtase e angústia, embora nem sempre nas mesmas proporções. Mas na época eu não sabia disso. Não naquele tempo. Antonia faz uma pausa e então prossegue: – Mas havia outra razão pela qual nunca fui pobre. Marco-Tullio, meu pai, era um leitor. Naqueles tempos era bastante raro um lavrador saber ler. E os livros eram seu refúgio. Pensando bem, ele não tinha muitos livros, apenas I Promessi Sposi, Cavalleria Rusticana e La Vita Nuova, e lia os três com grande frequência. Pegava outros emprestados com as freiras e na Biblioteca Cimati, em Pontremoli, quando podia ir até lá. Poesia, história, clássicos, ele se sentava ao pé do fogo depois do jantar ou, quando havia luz, numa cadeira de palha entre as macieiras, e lia até dormir. Quando minha mãe e eu havíamos terminado as pequenas tarefas que sobravam antes de ir para a cama, ela me dizia, “Vai a svegliare Orazio, vá acordar Orazio”. Eu ia na ponta dos pés para que ele não acordasse antes que eu tocasse seu rosto. “Papà, è tardi, está tarde”, eu lhe dizia e ele me seguia pelo caminho carregando a cadeira, ou levantava para mexer nas brasas e colocar uma tora para arder durante a noite. Sempre ia até o recanto onde minha cama ficava, sentava-se ao meu lado por um momento, transformava o que ele lera em algo de fantasioso, que seria adequado para mim, e eu dormia pensando nisso. Marco-Tullio era um toscano velho e carrancudo, e essas histórias foram o gesto mais próximo de um abraço que recebi dele. Também me ensinou a ler antes que eu entrasse na escola, me presenteou com

P:102

um Salgari quando eu tinha 9 anos e, desde então, ele e eu nos sentávamos juntos à noite com nossos livros. Àquela altura, era eu que o despachava para a cama, ia para a minha, sem fechar os olhos até que os sinos batessem três ou quatro horas. Mesmo então, eu odiava deixar que a vida se esvaísse enquanto eu dormia. Ela prossegue em seu relato: – Eu não era uma aluna muito boa na escola. O aprendizado formal não me empolgava, somente aquele que vinha da leitura dos livros, do mergulho cada vez mais profundo nos pensamentos e nas vidas de outras pessoas, no que viram e sentiram. Às vezes eram as mesmas coisas que eu via e sentia. E, assim, não sou apenas a filha de um lavrador, mas a filha de Marco-Tullio. Também chamado de Orazio. Tudo isso só para dizer que o tempo livre que eu conseguia entre minhas tarefas e o dever de casa eu passava com a leitura. Lendo e sonhando. Nunca saí por aí com as colegas. Elas sempre pareciam estar sofrendo por algum motivo, ficando histéricas por causa de um laço de fita ou apaixonadas pelo ragazzo que vendia cecina num caminhão, perto da escola. Mesmo então, quando eu estava com uns 14 anos, talvez até antes, comecei a reparar nele. Tancredi. Alto, de corpo bem-feito, cabelo louro-avermelhado caindo sobre os olhos. Foram os olhos o que vi primeiro. Grandes e verde-claros como cristais marinhos. Nunca imaginei que pudesse haver olhos verdes. De qualquer maneira, sua família tinha um lugar cativo na igreja, o primeiro banco à esquerda, em San Agostino. Embora a família não tivesse um título, os de Gaspari de Castelletto eram o que havia de mais próximo da nobreza na nossa região. Até onde se sabe, eles eram os proprietários da maior parte da província, mantendo um pequeno batalhão de meeiros para trabalhar na terra. E lá ficavam eles, os de Gaspari, todos arrumados em suas melhores roupas, como se estivessem indo a um baile: os pais; Ugo, o irmão mais velho; os primos que moravam com eles; a criada da mãe, até a cozinheira, e sabe-se lá mais quem, mas o banco ficava lotado e eles eram o centro das atenções na igreja. Tento assimilar os detalhes da história. Ela continua: – Não sei dizer qual das duas famílias ficou mais surpresa quando Tancredi comunicou sua intenção de se casar comigo. Eu tinha 17 anos, Tancredi, 20. Em apenas duas trocas de olhares percebi o que ele queria. O primeiro olhar foi quando ele se virou depois da missa, certo domingo e procurou por mim em meio aos fiéis. Quando me encontrou, sorriu, sacudiu a cabeça com um ar de descrença, eu acho, e sorriu de novo. O segundo olhar veio alguns dias depois, na feira em Pontremoli. Não montávamos a banca com regularidade, mamma e eu, só quando tínhamos ovos a mais ou quando sobrava tempo para colher alface, misturá-las com flores silvestres e levá-las dentro de um cesto. Em junho,

P:103

costumávamos levar pêssegos. Alguns galhos pesados com os maiores e mais rosados, que ela colocava sobre uma bandeja vermelha de vidro, presente de casamento de sua mãe, e que carregava apoiada contra o quadril na descida da colina. Tínhamos pêssegos naquele dia em que Tancredi caminhou em nossa direção, com passos firmes como se mamma e eu, sentadas com os cotovelos junto ao corpo, apertadas entre a mulher das azeitonas e a mulher dos ovos, fôssemos o objetivo de sua missão matinal. Ele perguntou para mamma se podia comprar os pêssegos, entregou-lhe algumas liras, olhando para mim o tempo todo. E então ele se foi. Sem os pêssegos. Eu a ouço atenta. – Por mais improvável que fosse, eu esperava que ele desse prosseguimento a esse estranho tipo de corte: falar comigo na igreja, voltar a visitar a feira. Mas Tancredi pulou essa etapa e chegou à nossa casa ao entardecer de um dia no final de junho, conduzindo uma charrete com um cavalo, usando um borsalino de palha. Tínhamos tosquiado as ovelhas, meu pai e eu. Enquanto ele tosava a ovelha, eu a segurava. Eu cheirava a lanolina, suor e, provavelmente, a sangue de ovelha, por causa de todos os cortes deixados por meu pai nos corpos brancos e trêmulos delas. Eu estava no orto, colhendo feijões para o jantar e ouvi sua chegada, vi que se aproximava. Vi que descia da charrete e corri. Soltando a barra da saia, os feijões desabando diante de mim. Corri descalça bem diante dele, entrei na casa e ouvi suas risadas, enquanto ele se ocupava em carregar garrafas de vinho e um queijo embrulhado num espesso pano branco. Da janela de cima, eu o observei sentando-se nos degraus da varanda, pousando as garrafas e o queijo, arrumando-os de um jeito e então de outro enquanto esperava, endireitando a jaqueta, tirando o chapéu, alisando o cabelo e tornando a pôr o chapéu. Logo meu pai veio correndo pela trilha, atravessando moitas de sálvia silvestre, e Tancredi se levantou. “Buona sera, signor Ducchi.” Ele pediu a minha mão em casamento para meu pai. Puro e simples, em seu jeito sóbrio e toscano de ser. E puro e simples, em seu jeito toscano, meu pai respondeu. Parecia que eu era a única pessoa incrédula. Por que eu? Por que Tancredi, o melhor partido de três condados, que poderia aumentar a riqueza de seu pai ao se associar a uma família até mesmo de Florença, por que ele me queria?” Pobre Tancredi, penso ao olhá-la, imaginando como deveria ser Antonia ainda em botão. Ele não tinha a menor chance. – E nós nos casamos. Na semana entre o Natal e o Ano-Novo. Eu usei um manto de lince que pertencia à mãe de Tancredi sobre um vestido em tom de rosa que também era dela, uma tiara com minúsculos copos-de-leite que ele encomendou para uma fioraia, na Ligúria, pelo que me lembro. Imagine só. Ele usou roupas

P:104

de montaria. Sempre usava. Naquele dia, estava com uma gravata de cetim marfim. Missa no crepúsculo, em uma terça-feira, com a igreja vazia a não ser por nós, nossos pais, seu irmão. Sim, Ugo estava lá. Tinha me esquecido disso. Ugo. Seu irmão mais velho. Vou chegar nele. Antonia faz uma breve pausa e continua: – Apesar de ter certeza de querer me casar com Tancredi, ao mesmo tempo eu detestava a ideia de deixar a fazenda. Principalmente a ideia de deixar Marco- Tullio. Estava tão assustada quanto curiosa. Não houvera tempo nem dinheiro para que eu montasse um enxoval. Lembro-me de ter revirado gavetas e armários tentando encontrar o suficiente para encher aquela estranha maleta de couro amarelo-claro, pouco usada, que meus pais compraram para mim. Dois vestidos para trabalhar, um para o domingo, um casaco de frio, da terceira geração, negro com uma gola marrom e cheiro de velha, camisolas, roupas de baixo. Botinas, sapatos e meias de lã. Livros. Ainda havia espaço suficiente se eu quisesse entrar na mala. Fiquei tentada a colocar, no fundo dela, seixos redondos e achatados retirados do leito do rio. Pelo menos ficaria pesada, pensei. Pelo menos isso. Eu permaneço em silêncio, ouvindo-a atenta. – Quando Tancredi apareceu para me buscar na tarde antes do casamento, conforme combinado com meu pai, os pais dele, o irmão, os criados, os lavradores, todo mundo se encontrava no saguão para me cumprimentar. Em consideração ao afeto que sentiam por Tancredi, eles me acolheram como se eu fosse uma princesa de contos de fada, há muito tempo aguardada, como se tivesse vindo me casar com todos eles. Tendo passado dezessete anos em uma casa com apenas mais duas pessoas, a vida em Castelletto parecia um cenário com personagens em constante movimento. Criadas no andar de cima, criadas no andar de baixo, jardineiros, costureiras, caseiros. Uma cozinheira com buço, bochechas rosadas, um olho azul e o outro castanho, chamada Edoarda. Uma governanta, chamada Abriana, que era também dama de companhia, e acho que confidente, de minha sogra. E Tessa, a filha de Abriana, uma criança de 10 anos, magra, de pele morena, olhos tártaros e escuros e duas tranças reluzentes e grossas como chicote que voavam atrás dela quando corria. Ao contrário do que minha mãe me alertara, ninguém torceu o nariz por Tancredi ter escolhido uma contadina, camponesa, sem dote para ser sua esposa. Ninguém que eu tenha percebido. Maria-Luce, a mãe de Tancredi, e Battista, seu pai, tornaram-se e permanecem verdadeiros ídolos para mim. Não sei a quem ou o que eu mais amava naqueles primeiros tempos... Seria Tancredi? Seria a casa inteira? Seria o fato de que eu amava ser amada? Acho que era isso.

P:105

Antonia continua: – No início, devem ter considerado meus modos um tanto grosseiros. Maria-Luce e Battista, talvez o próprio Tancredi, mas acho que se sentiam também entusiasmados com a minha presença. Eu era carinhosa com meus sogros. Sem a menor cerimônia, eu os abraçava e beijava, olhava em seus olhos e segurava seus belos rostos em minhas mãos, todos os gestos de carinho que eu tanto queria fazer nos meus pais e receber deles. O afeto que eu dava a eles era retribuído, o que me encorajava a continuar agindo daquela forma. Tornei-me uma filha para eles. Pela primeira vez, fui uma criança. Amada, admirada. Passaram-se anos até que eu começasse a compreender que não foi nada disso. Foi o afeto de Marco-Tullio, menos explícito, de outro tipo, que me formou. Do mesmo modo que ele me levou até os livros, ele me deu a sensação de que eu era amabile... digna de ser amada. Até hoje, não conheço nada mais importante para se dar a uma criança. Com certeza, supera tudo. Ela faz uma pausa breve e prossegue: – E, assim, aquela primeira fase de minha vida aqui em Castelletto foi uma espécie de idílio. Se foi mesmo, pois bem, naquilo que é verdadeiro, naquilo que é real, há sempre algo sombrio. Anos depois, foi Ugo quem me falou da tristeza que havia entre Maria-Luce e Battista, pois o casamento deles havia sido um acordo entre as famílias. “Um dos motivos que os fez comemorar o fato de Tancredi ter escolhido você”, ele me disse. “Talvez seja também um dos motivos pelo qual ele a escolheu.” Antonia continua: – Corretos e sensatos, Maria-Luce e Battista convidavam meus pais a nos visitarem e se hospedarem em Castelletto, a comparecerem a todos os acontecimentos sociais na villa, mandavam-lhes presentes, providenciavam que eu fosse levada para visitá-los com frequência. Porém, em breve me tornei uma desconhecida para meus pais, pois não havia uma ponte entre o lugar de onde eu vinha e aquele onde eu tinha ido parar. Hoje, tenho certeza que meus pais sentiram alívio pela minha ausência, felizes por eu ter feito um bom casamento, mas também, sim, aliviados. Estavam finalmente livres para se comportar de acordo com seus sentimentos, a testemunha partira. Aos 47 anos, e menos de um ano depois de meu casamento, minha mãe morreu. Complicações femininas foi a causa. Suas últimas palavras foram sobre seu amante. A história humana é um conto breve e repetitivo. Ela faz uma pausa e retoma seu relato:

P:106

– Três meses depois de meu aniversário de 18 anos, um dia abafado de agosto em 1938, Maria-Luce me acompanhou numa visita a seu médico em Pontremoli e ele confirmou aquilo que nós duas havíamos calculado e que mantínhamos em segredo. A criatura que eu carregava no ventre nasceria em fevereiro. Naquela noite, na varanda, dei a notícia para Tancredi. Sem dizer uma palavra, ele pôs a mão sobre minha pancettina, ainda reta, aqueles olhos cor de mar encontrando os meus. Foi a única vez em que o vi chorar. Eu a escuto atentamente. – Nessa época, os desejos começaram. Eu não tinha desejo de comer algo em especial, mas de cozinhar. Fazia meses que eu não usava as mãos para preparar o jantar, para fazer a magia que há em descascar algumas cebolas ou arrancar os espinhos de um ramo de alecrim, picar os dois, colocar a polpa para cozinhar em um pouco de óleo quente. Convenci Maria-Luce a me permitir algum tempo na cozinha. Embora a princípio tenha ficado perplexa com meu pedido, ela concordou. No início, eu só podia ficar lá na companhia da cozinheira, que fazia a maior parte do trabalho e me reservava as pequenas tarefas. Fazer a cobertura de uma torta. Salpicar farinha de milho nas formas de pão ou fatiar peças semiassadas de cantucci e arrumar as fatias em uma assadeira. Logo resolvi fazer as coisas com minhas próprias mãos. Certa manhã, quando a cozinheira e Maria-Luce entraram na cozinha para ter sua reunião diária, eu estava na pia, ocupada em cortar o pescoço de um coelho que eu surrupiara da gaiola. Aos berros, a ponto de gritar como era impróprio que a esposa de Tancredi sujasse as mãos com sangue numa tarefa daquelas, como se fosse uma camponesa qualquer, Maria-Luce interrompeu sua bronca, quase engasgando com a gafe que estava prestes a cometer. Uma camponesa qualquer era exatamente o que eu era. Enquanto a cozinheira tirava de mim a pequena carcaça frouxa, limpando minhas mãos com um pano que ela molhou na caldeira, Maria-Luce me abraçou, seus gritos transformados em risadas suaves. Sentamos à mesa e a cozinheira preparou para mim um desjejum composto de chá de sálvia silvestre com uma gema batida, derramado sobre pão assado. Bufando, fazendo muxoxo enquanto ia de um lado para o outro, não parava de repetir: “Aquela pobre criatura que ainda nem nasceu está marcada, não há dúvida. O melhor que podemos esperar é que seja um assassino.” Sentada perto de mim, olhando-me tomar aquela boa sopa, Maria-Luce perguntou: “Você queria preparar o coelho, Antonia? Quero dizer, estava mesmo com vontade de preparar o coelho sozinha?” Antonia continua: – Pouco a pouco, fui ganhando espaço na cozinha até passar tanto tempo por lá que Maria-Luce, sentindo-se excluída, juntou-se a mim e à cozinheira, nós três

P:107

com a mão na farinha. Contando histórias. Mesmo agora, quando cozinho com as pestinhas, penso naquelas manhãs com Maria-Luce. Ríamos, cantávamos e preparávamos uma comida maravilhosa. Eu preparava um prato, a cozinheira também e às vezes Maria-Luce. Bem, minha sogra não cozinhava exatamente, mas falava sobre o prato. Começava a se lembrar do que gostava quando era criança, qual era o sabor, a aparência que tinha, o cheiro, e a cozinheira e eu começávamos a trabalhar. Uma manhã, fizemos um desses pratos de suas lembranças e eu gostei tanto que o preparo sempre que posso. Ainda consigo ouvir sua voz de menina dizendo: “Pois bem, era uma sopa, porém mais espessa, parecida com a polenta quando ainda está quente e tinha funcho, funcho silvestre, tenho certeza. Mas levava couve verza, isso, a base era uma verza verde. Linda com aquelas folhas grandes, eu lembro. Era picante, sem arder. Será que levava alho? Talvez alguma outra erva, eu sinto o gosto da erva mas não sei dizer qual é. Orégano? Manjerona?\" Enquanto ela falava, despejei azeite numa panela, mais do que o suficiente para cobrir o fundo, sempre um pouco mais do que achamos que é necessário. Sempre sobre fogo médio. É o modo toscano de cozinhar com azeite de oliva. Depois de amassar um punhado de sementes de funcho silvestre com a lâmina de uma faca, eu as lancei no azeite aquecido. Entre as palmas da mão, esfreguei os botões secos de dois pequenos galhos de origano e uma pimenta seca e grande. Depois, alguns dentes de alho roxo, descascados, picados até virar uma pasta e, enfim, mais uma vez com as palmas das mãos, esfreguei cristais de sais e deixei a massa cozinhar em fogo brando. Quando senti seu perfume, acrescentei a couve cortada em fatias bem finas, mexi bem, para misturar tudo naquele azeite perfumado. Cobri a panela, deixei que a couve amolecesse. “E o que mais?”, perguntei-lhe, embora já soubesse o que faria em seguida. Peguei pão endurecido, cerca de meio quilo, dentro da lata onde a cozinheira o guardava para preparar ribollita e acquacotta, e joguei na panela enquanto as duas gritavam que eu devia deixar o pão dormido de molho antes de... Sem lhes dar atenção, acrescentei dois litros de água, outra generosa dose de azeite, cobri a panela e deixei cozinhar até que o pão e a couve estivessem moles. Então pedi feijão branco cozido, e a cozinheira, sacudindo a cabeça, pegou do tinello um vidro de um litro. Torcendo o avental sobre a tampa de metal, ela abriu e me entregou, sentou-se, cotovelos na mesa, a cabeça apoiada nas mãos, lamentando-se do fato de sua cozinha estar sendo controlada pela filha alta e esguia de um lavrador. Eu mexia, ela reclamava e Maria-Luce ria. Passei a sopa por uma peneira e filões de seda verde-clara tombaram dentro de uma grande tigela branca. Peguei uma colherzinha, raspei a superfície da papa e a ofereci para Maria-Luce. “Como você sabia?”, perguntou. A verdade é que eu não sabia, mas como o feijão, o pão e a couve eram e continuam a ser itens de consumo diário por aqui, foi fácil presumir que tinham um lugar em suas lembranças gustativas. E, por isso, usei todos eles. A cozinheira também provou, e ainda

P:108

sacudindo a cabeça deu um meio sorriso, despejou uma porção dentro de uma terrina, para servir no almoço, e guardou o restante em vasos de um litro, para esfriar no tinello. Ainda havia sobrado um pouco dentro da tigela e, sem combinar nada, cada uma de nós pegou uma casquinha da pagnotta separada para o almoço, passou na sopa e jogou na boca; depois pegou outro pedaço e repetiu o gesto. Logo, a cozinheira voltou à despensa com um vaso cheio de sopa e despejou mais um ou dois centímetros na tigela. Partimos pão, molhamos e saboreamos ruidosamente até que Battista, Tancredi e Ugo entraram na cozinha e viram por que não estávamos à mesa. Era mais fácil demonstrar do que explicar: partimos pedaços de casca de pão para cada um deles, insistimos que provassem, até que nós seis estávamos amontoados em torno da tigela, a pagnotta, a essa altura, reduzida a seu miolo macio, esbranquiçado, sem sua casca torrada e rachada. Providenciou-se outra pagnotta, a sopa foi servida em tigelas aquecidas, fios de azeite despejados sobre ela, colheres e guardanapos arrumados para aquilo que se tornou um almoço histórico, o primeiro que os de Gaspari saborearam na cozinha. Toda essa conversa não deixa você com fome? – Deixa sim. Faminta da sopa e do pão, mas também faminta de ter estado lá. Acho que sinto mais fome disso. – Então vamos cozinhar enquanto conversamos. Vamos comer enquanto conversamos. Não tem sentido fazer uma coisa de cada vez quando podemos fazer duas ou três, não é? Nada desperdiçado. – Com as filhas, é claro. – Com as filhas.

P:109

8 No final das tardes, Antonia e eu, às vezes na companhia de alguma de suas descendentes, distribuíamos sobre a bancada o que precisava ser cozinhado, examinávamos os ingredientes, resolvíamos mais ou menos que pratos deviam ser preparados e quem cuidaria de cada um. Diversas vezes agitávamos as caçarolas sobre as chamas daquela lareira e sobre os queimadores dos fogões, outras vezes as acomodávamos sobre as brasas vivas de uma fogueira feita com lenha de oliveira enquanto nos sentávamos em torno da mesa para ouvir Antonia. Nós nos revezávamos carregando uma roda com um quilo de pecorino ou servindo chá de funcho de uma chaleira grande e azul, ou vernaccia, frio e límpido, de um jarro com pintas verdes. E quando o momento parecia propício, bebericávamos um bom uísque, surrupiado por uma das filhas de dentro do baú de lingerie de Antonia. O uísque ficava num recipiente escondido por Antonia sob calçolas de cetim cor de pêssego que Luce jurava que eram suas, sempre foram, mas que a mãe, em um ataque de inveja da jovem filha, havia confiscado quase quarenta anos antes. As calçolas de cetim cor de pêssego eram uma questão não resolvida que pairava entre Antonia e Luce. Como Filippa e Luce provavelmente tinham alertado as outras para não interromperem Antonia em seus monólogos, havia, a princípio, uma espécie de silêncio forçado entre as filhas. Mas não durava muito. Depois de uma ou duas sessões, havia sempre alguém que fazia perguntas, soltava interjeições, exprimia espanto, desdém, ria ou chorava. Não se passaram muitas noites antes que as seis mulheres passassem a ir correndo para a cozinha com a mesma pontualidade com que se vai à missa. Giorgia também vinha. Principalmente por causa dos horários de Viola, Isotta e Magdalena, começamos a nos reunir cada vez mais tarde, de forma que, onde quer que cada uma houvesse passado a tarde, chegávamos à villa quando a luz do dia se azulava e os galhos negros dos carvalhos criavam um rendilhado contra o céu. Às vezes, eu trazia uma sacola com alguma coisa do vilarejo, ou Filippa e eu saíamos para colher borlotti, mal conseguindo ver os talos de feijão com a luz fraca do fim da tarde, ela gritando para Viola quando nos aproximávamos da casa, dizendo-lhe que colocasse água para ferver no fogão da varanda. Enquanto isso, Luce, Antonia e Isotta caminhavam de braços dados em meio aos pinheiros, de volta da trilha à beira-mar, uma delas com um cesto de cones para o fogo, que sempre estava aceso, mesmo em julho. Passávamos então a trocar de sapatos, tirar vestidos ou suéteres pela cabeça,

P:110

ajeitar os seios nos sutiãs e amarrar um dos aventais que pendem, emaranhados, em um gancho preto de ferro, perto da porta dos fundos, e que sempre cheiram a tomilho. Abríamos as janelas para a noite, envolvíamos a massa do pão com panos, para protegê-la da brisa. Era Filippa que rodava pela casa usando os tamancos de veludo de Antonia, uma sacristã tribal acendendo todas as velas do lugar. No banco de mogno com garras nos pés, diante do piano, Isotta se sentava para tocar, Filoush encolhido em seu colo, as patas dianteiras protegendo suas orelhas dos arpejos melancólicos. Em meio ao tilintar de Isotta, a batida de tigelas e o ritmo das facas, Antonia começava. Mudando a posição dos grampos de tartaruga no cabelo, sacudindo aquelas longas mãos morenas como se fosse uma bruxa boa com uma varinha de condão, ela encantava todas as mulheres. E lançava seu encanto também sobre mim e Giorgia. Quando Antonia parecia se cansar, a voz reduzindo-se a um sussurro, de modo que os únicos sons vinham da melodia de Isotta e do chiado dos caldos que respingavam nas chamas, uma de nós preenchia o intervalo, fingia que alguma coisa ia queimar, levantava para lavar copos, um prato. Mas então Antonia se recuperava. Contava coisas de que nos esquecêramos, ou sobre o que nos equivocáramos, ou que nunca compreenderíamos sobre comida, sobre homens, sobre a panaceia das ervas amargas e os benefícios do leite de jumenta para a pele. Também falava de si. Quando outra queria dizer algo, dizia. Chorando, sussurrando, experimentando os sons de uma verdade, de um segredo, as velas estremecendo quando as portas se abriam e se fechavam de novo. Abertas. Fechadas. Um coro feminino que envelhecia, ornamentado por uma única ninfa, Magdalena, seguíamos em frente sob a luz trêmula. Ah, havia homens ali, entrando e saindo, às vezes sentados durante algum tempo com uma taça de vinho enquanto trabalhávamos e conversávamos – Biagio, Umberto, o Giangiacomo de Magdalena, Guglielmo nos fins de semana, com frequência alguns dos amigos de Luce. E Fernando também. A própria Antonia havia aparecido na cabana numa noite de sexta-feira e o convidara a se juntar a nós. Como eu já explicara para Fernando sobre as noites com Antonia e não queria perder nenhuma delas, mas queria menos ainda desagradá-lo se renunciássemos à privacidade de nossos fins de semana, a intervenção foi bem- vinda. Não posso dizer quem usou mais artifícios para encantar o outro: Antonia flertando com Fernando, ele lançando mão do arsenal de galanteios que só um veneziano dispõe.

P:111

Aquele primeiro encontro entre eles levaria Antonia a me convencer de que Fernando deveria, de fato, ficar comigo na cabana, e uma separação tão longa não seria boa para nós. Segundo ela, como minha rotina de trabalho e diversão estava bem estabelecida, a presença dele agora seria mais do que bem-vinda. “Além do mais”, ela me disse, “será bom para Biagio e Umberto a presença de outro residente masculino. Bom para todos nós. Acha que ele estaria disposto a ficar?” Tanto estava que então ficou. Mas os homens em Castelletto tinham seu lugar à parte, enquanto as mulheres cozinhavam e conversavam. No alto de uma longa escada espiral, um aposento próprio, escondido sob as abas do telhado do sótão, a mansarda, com cheiro bom de homens que acabaram de se banhar e de se perfumar, de camisas recém- passadas, botas engraxadas, o aroma de um bom vinho tinto e a névoa cor de rum negro de mil cachimbos fumados na santa paz. Algum tempo depois, Antonia me falaria de outros homens que, havia muito tempo e por determinado período, usaram diferentes botas no sótão. Desprendia-se deles outro tipo de perfume. Quando o jantar era servido, já passava das dez. Em geral, era bem mais tarde. Era como Antonia gostava, para que o tempo à mesa se estendesse até muito depois da meia-noite e assim lhe sobrassem apenas umas quatro horas para ficar quieta na cama. Biagio e Giorgia mantinham seus próprios ritmos, despediam-se depois da sopa e iam para a cama, mas os outros, a maioria, seguiam o ritmo de Antonia, comendo e bebendo sem ter pressa de pôr fim àquela convivência. Quase cerimoniosa naquelas noites, Antonia permanecia lânguida, rindo suavemente de seu belo séquito à luz de velas. Mais de uma vez, pensei: “Eu estaria perdendo tudo isso se Luce não tivesse pedido que eu voltasse e se eu tivesse partido pela estrada de cascalho branco riscando o nome de Antonia Ducchi de Gaspari. Como saber se devemos riscar ou não o nome de alguém? Noite após noite, Antonia falou dos primeiros dias de seu casamento com Tancredi, de sua afeição crescente por Maria-Luce e Battista, sobre o começo da preparação para a chegada do bebê, quella creatura che stava crescendo dentro di me, a criatura que estava crescendo dentro de mim. Histórias encantadoras, contadas com carinho. Acolhida ali, Antonia se lembrava de outra e mais outra cena daquele agosto tão distante. Foi Magda quem a interrompeu certa vez, na metade de algum racconto. – Nonnina, mas o que aconteceu depois disso?

P:112

– Depois? Bem, acho que chegou setembro. A vendemmia... a... As filhas, sabendo o bastante sobre as uvas, soltam um gemido coletivo. – É a minha história. Vou contá-la como eu quiser. E no ritmo que achar melhor. Ninguém é obrigado a ouvir. Ia contar sobre a vendemmia na nossa fazenda. Quando eu era uma menina. Era o que ia lhes contar. Quem preferir outra coisa, pode sair agora. Ninguém se mexe. – Minha mãe, meu pai e eu, junto com seis ou oito ou, quando a produção era grande, até uma dúzia de vizinhos, cortávamos as uvas e começávamos a maceração no mesmo dia. Acendendo um fogo para nos aquecer, ficávamos sentados sob as estrelas, bebendo vinho de um barril que havíamos guardado para a ocasião, da safra passada. Então oferecíamos aos ajudantes aquilo que era, para nós, um jantar notável. O toucinho, envelhecido em pias de mármore em grutas perto de Colonnata, era servido em fatias translúcidas, perfumado com flores silvestres, sobre pedaços de pão assados em palitos sobre as chamas, e uma sopa espessa feita com pão, tomate, vinho tinto e um punhado de manjericão silvestre era submetida a uma prolongada e lenta cocção no forno a lenha. O porco poderia ser selvagem ou criado na fazenda, como era o nosso, e sempre havia alguma parte dele que meu pai deixara de molho numa poção feita com vinho, ervas e azeite em uma panela de cerâmica chamuscada. Escondendo-a entre as brasas na noite que precedia a colheita, deixando-a assar toda a noite, até afastarmos as cinzas ainda cálidas e levantarmos a tampa na manhã seguinte. A essa altura, a carne se desprendera dos ossos e se impregnara do cheiro da fumaça e, imagino, de todas as outras coisas boas que foram cozinhadas naquela panela sabe-se lá por quantos anos. Eu ainda tenho, aliás, aquela velha coccio. Eu a uso para alguma coisa de vez em quando. A parte realmente extravagante do banquete, porém, era o final. Maçãs fritas em massa de vinho branco. Era minha tarefa colher as maçãs, arrastá-las para casa em sacos, descascá-las, extrair as sementes e o talo de uns dez quilos da fruta, fatiá- las em rodelas grossas, mergulhá-las na massa e depois no azeite. Eu deixava que flutuassem até ficarem escuras e douradas e, quando ainda estavam bem quentes, eu as passava no açúcar embebido com rum. Assim ele grudava apenas aqui e ali, transformando-se numa espécie de cobertura sobre as frituras. E quando havia bastante massa, eu também fritava a casca, cortando fatias bem finas e jogando-as no azeite. Retirava-as, emaranhadas, com uma peneira, deixando que rolassem bem pelo açúcar. Era por elas, mais ainda do que pelas maçãs, que todo mundo esperava. Eu adorava observar como tudo ficava silencioso quando as pessoas começavam a devorar os doces. Uma brisa

P:113

sacudindo as videiras aparadas, os guinchos de algumas aves noturnas e, de vez em quando, uma suave exclamação, Dio buono. Bom Deus. Antonia faz uma breve pausa e prossegue: – Na manhã seguinte, assim que o orvalho secava, a trupe, inclusive nós, partia para fazer a colheita em outra fazenda e assim por uma semana ou mais, até que todas as uvas tivessem sido colhidas. A nossa colheita era bem caseira. Naqueles tempos, assim como hoje, a colheita em Castelletto durava dias, cada vinhedo da propriedade sendo trabalhado quando aquela uva específica estivesse madura. O fattore era o juiz. Quando a lua de setembro começava a minguar, o fattore e sua equipe saíam ao alvorecer a cada manhã e ficavam perto de uma videira. Ele arrancava uma uva, uma única uva, o rosto já pronto para expressar o desdém. Deixava que ela caísse na boca aberta, mastigava, movimentava a polpa por um tempo. Depois cuspia. Sacudindo a cabeça, dava as costas para aquele dia e seu trabalho, e era só. Na manhã seguinte, a mesma coisa. Até que em uma daquelas manhãs, depois de mastigar a uva, ele não a cuspia, mas estendia os braços como um espantalho, transformando os dedos em tesouras, e os homens soltavam aleluias. Mas a sangiovese era sempre a última. O fattore sempre esperava, dando mais uma dose do sol quente de setembro para essa casta, mais um dia para acentuar o açúcar, “Só mais um dia”, ele dizia a cada manhã, até que a uva negra transbordava com o sangue do próprio Giove. Antonia respira fundo e continua: – Com Tancredi já no campo, eu ainda dormia quando Maria-Luce veio me buscar na manhã da primeira vendemmia de minha vida em Castelletto, dizendo- me para vir depressa com ela para os vinhedos, dizendo, “Não podem cortar antes de nós. Depressa”. Sem entender nada, abotoando o agasalho de Tancredi sobre a camisola, calcei as botas e corri. Com os cestos a seus pés, tesouras de poda na mão, chapéus com abas para se protegerem do sol, todos os lavradores esperavam, sorridentes, sacudindo as cabeças, desejando-me um buongiorno. Segui Maria-Luce entre as videiras. Ela parava, inspecionava uma fruta, avançava um pouco mais, inspecionava de novo. Por fim, ela fez um sinal positivo com a cabeça. O fattore entregou-lhe uma tesoura de poda e ela se pôs em posição para cortar o cacho grande e pesado que escolhera, dizendo-me para pôr as mãos sobre as dela. Respirando fundo, sussurrou palavras que não compreendi, disse que eu segurasse com força, enquanto ela cortava. Os lavradores aplaudiam, uma mulher apareceu com um pano branco onde ela abrigou as uvas recém-cortadas e saiu correndo, levando-as. Maria-Luce ficou ali parada, me abraçando, por muito tempo.

P:114

Ela prossegue contando: – “As primeiras uvas são para a schiacciata”, disse ela. “Colocamos as frutas sobre uma massa de pão achatada, perfumada por especiarias, e cozinhamos no forno a lenha. Schiacciata con l’uve. Aos pedacinhos, ofereceremos deste pão aos trabalhadores hoje à noite junto com uma taça de vinho de um barril da safra passada. Comunhão. E quando eu não estiver mais aqui, será sua responsabilidade cortar as uvas com sua filha caçula. Não importa quantos homens houver na família, a cerimônia é sempre entre mulheres.” Antonia faz uma pausa e continua: – Naqueles tempos havia oitenta, talvez cem trabalhadores cortando as uvas de Castelletto, e metade desse número se ocupando de cozinhar e assar para alimentá-los três vezes por dia. Mas à noite, quando a colheita terminava, arrumavam-se mesas entre os vinhedos aparados nos terrenos mais baixos, tochas enfiadas na terra macia e tão pisada, e um jantar infindável era servido. Maria-Luce me manteve fora da cozinha e perto dela, apresentando-me para seus parentes que não tinham estado presentes na ocasião de meu casamento com Tancredi, mas que compareceram para festejar, vindos até de Roma. Foi naquela noite que Maria-Luce começou a se despedir. Antonia retoma seu relato: – Lembro que a lua era uma grande flor branca desabrochando por trás das montanhas e que a neblina noturna era suculenta, úmida com o perfume das uvas. Depois da refeição, quando os homens saíram para fumar, para jogar bocce na trilha dos carvalhos, Maria-Luce e eu nos sentamos a uma mesa junto com outras mulheres. Embora a conversa estivesse animada, Maria-Luce parecia quieta, distraída. Um dos braços apoiados sobre a mesa, com o outro ela puxou meu braço para baixo e buscou minha mão, segurou-a, balançando-a para frente e para trás de vez em quando ou apertando-a. Ficamos assim por muito tempo, separando-nos apenas para mergulhar outra casca de pão no vinho. Voltávamos a deixar as mãos no mesmo lugar, como se ficássemos de mãos dadas o tempo todo. Lembro que ela me perguntou se eu queria esticar as pernas e eu concordei. De braços dados, andamos pelos caminhos iluminados pelas tochas, entre os vinhedos, parando para saudar pessoas nas outras mesas, conversando por um momento sobre um ou outro assunto, com as mulheres se revezando para pôr a mão na minha barriga que começava a crescer. Eu a escuto atenta. – Com o braço em volta da minha cintura, Maria-Luce e eu caminhamos para a

P:115

segunda varanda e depois para a terceira. Lá no alto do monte enluarado, ouvíamos o barulho do mar. Observamos as videiras, regulares e eretas como um delicado bordado verde sobre um grosseiro tecido marrom avermelhado, olhamos as tochas tremulando no escuro, bailarinos primitivos evocando os deuses e mantendo o ritmo da melodia de vozes abafadas, das bocce rolando na terra batida e do dedilhar de um bandolim. Ficamos ali em silêncio até que, não lembro quem começou, caímos na gargalhada, jogamos as cabeças para trás, até chorar de rir. Enxugando os olhos com um lenço embolado, ela o devolveu ao bolso, tirou de novo, tentando encontrar as palavras. Eu percebia que ela se esforçava, mas não sabia quais eram as palavras que ela procurava, por isso não podia ajudá-la. Ainda olhando, do alto, a festa, ela disse: “Como um pastello. Todas as linhas borradas. Sem bordas definidas. Tudo e todos ficam mais belos a distância. Mas é perto das pessoas que passamos a maior parte de nossas vidas. Antonia, eu rezo para que você sempre se sinta feliz aqui. E que fique por aqui.” Antonia prossegue: – Achei estranho ela dizer que tinha esperanças de que eu ficasse. Então disse a ela: “É claro que vou ficar.” Maria-Luce respondeu: “Sempre quis ter filhas. Por mais que adore os meus filhos. Mas você sabe que é entre mulheres, entre mãe e filha, que aquilo que é mais importante é transmitido. Não foi meu destino ter filhas, mas será o seu.” Ela tocou na minha barriga e deixou a mão ali. “Você vai ter uma menina, Antonia. É uma garotinha, não tenho dúvida. E você terá outras. E elas também. De quantas gerações passadas sua mãe teve conhecimento, você sabe?” Respondi: “Ela só falava de duas. Da mãe e da avó. Mas com ela e comigo, temos quatro. Sim, quatro.” Maria-Luce falou: “Bom. Isso mesmo, é muito bom. E agora você e tudo o que recebeu dessa linhagem vieram morar aqui. Como uma ovelha que foi levada para um pasto com um novo rebanho, talvez se sinta deslocada de vez em quando. Quero dizer, a vida dá voltas. Você sabe. De qualquer forma, a verdade é que esta terra, este lugar agora é seu. Para transmiti-lo a seus descendentes. E sei que será por meio de suas filhas. Ah, não estou me esquecendo de Ugo, de forma alguma. Mas ele nunca casará. Ele não se preocupa com o que ou quem virá depois dele, só se interessa pelo agora: a caçada, os automóveis, as viagens. Ao contrário das ovelhas, os carneiros perambulam. São capazes de sobreviver em qualquer parte. Então sobra você. E Tancredi, é claro. Mas estou muito feliz por você estar aqui. Por ser você, proprio tu, exatamente você, quem levará tudo adiante.” É claro que ela sabia. Tão bem quanto qualquer vidente, Maria-Luce sabia. – Ele ficou doente apenas um dia e uma noite. A febre subiu e não cedeu. Três

P:116

dias depois do segundo aniversário de nosso casamento e faltando cerca de um mês para Filippa completar um ano, Tancredi morreu. Precisei de tempo para perdoar Maria-Luce por me afastar do nosso quarto. Afastar-me de meu marido. Por temer que Tancredi me contagiasse e que eu transmitisse a doença para Filippa pelo meu leite, foi ela quem lhe fez companhia, banhou-o, falou com ele. Eu a ouvia cantar para ele, do outro lado da porta. Foi ela quem lhe fechou os olhos, acendeu as velas. Passou-lhe óleo aquecido no fogo. Antonia respira fundo e prossegue: – O cheiro do funeral permanecia na casa quando, menos de uma semana depois, Maria-Luce morreu. Coração partido ou difteria, ninguém sabe ao certo o que foi. E assim ficamos os quatro: Battista, Ugo, Filippa e eu, cada adulto sofrendo a seu modo. Foi Battista quem pediu a Marco-Tullio que viesse passar uma temporada na villa, para fazer o que pudesse para reconfortar Filippa e eu. Eu mal tomava conhecimento de qualquer um dos outros. Nem mesmo de Filippa. Durante aqueles primeiros dias e noites, eu a apertava contra o peito quando ela chorava, mas era Marco-Tullio quem cuidava dela, murmurando cantigas de ninar, dando-lhe pedacinhos de doce, mel de uma pequena colher quadrada de gelato. Com a menina protegida em seus braços, ele lia para ela, olhando de vez em quando para baixo, para seus olhinhos atentos, encantando-a. Mais ou menos como ele me encantara. Lembro-me disso. Ela faz uma breve pausa e continua: – Não demorou muito, Ugo voltou a fazer suas viagens e eu, a cuidar da minha garotinha, permitindo assim que Marco-Tullio e Battista perambulassem pela propriedade, ocupados, ou fingindo estar ocupados, com as tarefas da fazenda. Sem esposas, deixaram crescer as barbas, relutavam em se lavar ou em se separar da roupa de cama. Era possível descobrir mais sobre suas vidas a partir das manchas nas camisas e das rugas profundas nas testas do que de qualquer coisa que ousassem dizer. Nas noites de tempo bom, um deles transportava o berço de Fillippa para a varanda. Colocavam cadeiras dos dois lados e ficavam sentados ali, balançando o berço com a ponta de uma bota. Uma tigela de frutas sobre uma mesa próxima, descascavam, fatiavam e comiam na ponta de suas facas. Quando um dos dois encontrava um pedaço especialmente doce e suculento, ele o cortava em dois e oferecia metade para Filippa, se ela ainda não estivesse adormecida. Embora Marco-Tullio fosse onze anos mais novo do que Battista, a única diferença marcante entre os dois era a qualidade das botas: as de meu pai eram feitas à mão, a cada dois anos, adquiridas do ciabattino em Pontremoli; as de Battista, botas de montaria Hermès com tornozeleiras cor de uísque. Nas manhãs e tardes, com as mãos para trás, as histórias presas em seus

P:117

corações de menino, os dois viúvos caminhavam e fumavam. Um tipo de luto masculino. Sem terem amado tanto nem terem sido tão amados, eu me perguntava se realmente viviam um luto. Quando a pessoa não amou nem foi amada, o que será que ela sente, se não se trata de luto? Eu também pensava nas suas botas. Em quanto se pode dizer a respeito de um homem a partir de suas botas. Antonia faz uma pausa e olha para mim. – Marlena, acho que não lhe contei como meu pai morreu, não é? Marco-Tullio levou dois tiros no peito, disparados por um repubblichino. Você sabe o que era um repubblichino? – Um fascista adepto da Salò de Mussolini. – Brava. Não bastava que os italianos, alemães e Aliados estivessem se matando, os italianos matavam italianos. Guerra civil com Ocupação. Pois bem, uma ou duas vezes por semana Marco-Tullio saía com uma sacola cheia de pão, ovos e tudo que pudesse encontrar e levava de charrete os mantimentos até os branchi nas montanhas, os bandos de Partigiani que moravam nas cavernas. Quando um dos Partigiani trouxe o corpo de meu pai de volta para a villa, encontramos um exemplar do livro I Promessi Sposi enfiado dentro de sua camisa abotoada, perfurado por uma das balas. Sinto falta de meu pai. Ela faz uma pausa. – Foi no final de 1943. Adiantei-me demais. Voltarei ao inverno de 1940. Ele deu lugar a uma primavera precoce e, à mesa todos os dias, Marco-Tullio falava em voltar para sua fazenda. Como eu sabia muito bem que ele não podia ficar, eu nada disse para demovê-lo da ideia, embora tivesse vontade de pegar minha filha e ir para casa com ele. Para me afastar um pouco de Tancredi ou me aproximar dele, não sei bem. Mas Maria-Luce se manifestou, dizendo em meu ouvido o que ela havia me falado naquela noite, no alto da colina. “Como uma ovelha que foi levada para um pasto com um novo rebanho, você talvez se sinta deslocada de vez em quando. Quero dizer, a vida dá voltas. Você sabe.” Eu sei disso. E soube ainda mais. Dá muitas voltas. Quando anunciei meus planos, foi Ugo, que acabara de voltar, que me disse no em voz baixa. Battista e Marco-Tullio davam-lhe apoio, pois Ugo tinha outro projeto. A fazenda de Marco-Tullio era pequena, de modo que o fattore de Castelletto dispunha de trabalhadores para manter seu funcionamento. Também era próxima o bastante para que Marco-Tullio pudesse supervisionar pessoalmente parte das atividades. Tudo podia ser resolvido. Meu pai passaria a morar conosco em Castelletto.

P:118

Antonia para, olha em volta, surpresa por estarmos todas sentadas tão perto dela. Com timidez, baixa o olhar, o brilho se foi. Como se estivesse entreouvindo as próprias lembranças, ela estremece, os olhos enchendo-se de lágrimas, cintilando, lágrimas que nunca descem. Erguendo-se da cadeira, caminha até o lugar onde Luce está sentada, debruça-se um pouco sobre ela, brinca com seu cabelo, segura suavemente um punhado dele, levando o rosto da filha até perto do seu. As duas trocam sorrisos. Com os olhos ainda iluminados de lágrimas, Antonia se afasta de nós. O cabelo solto despenca até a cintura. De costas ela parece uma menina ágil com um longo vestido marrom. Olhando por cima do ombro, diz: – Sogni d’oro, pulcini. A domani. Sonhos dourados, pintinhos. Até amanhã. Depois daquela noite em particular, a reunião para cozinhar, as histórias depois do jantar, tudo assumiu outro tom. Aparentemente, não houve grandes mudanças. O aposento fica em silêncio, Antonia começa. Mas sua narrativa linear, uma fase após a outra, se transforma em lembranças espontâneas. O que leva as outras a fazerem o mesmo. Uma das filhas faz uma pergunta e três respondem enquanto outra já está fazendo a próxima pergunta até que todas estejam conversando entre si enquanto Antonia escuta, mexendo no conhaque de sua xícara de porcelana com borda dourada. É possível perceber que essa mudança do monólogo para a allegria coletiva era o que ela pretendia. Depois de uma ou duas noites, o fio da história de Antonia parece ter sido esquecido. Com certeza se partiu. Porém, ela havia guardado os fragmentos, marcado a posição. É nas nossas manhãs juntas que ela prossegue. – Foi menos de um ano depois da morte de Tancredi, lembro que o tempo estava fresco, então com certeza foi no outono. Percebi que estava sendo avaliada. Observada com intenções. Por Battista, por Ugo. Mais de uma vez durante aqueles meses, Marco-Tullio havia cogitado um possível casamento com Ugo, dizendo que era o mais comum, um homem se casar com a viúva do irmão. Eu ouvia meu pai falar, e era como se ele estivesse muito distante. Eu não conseguia responder. Não me dava ao trabalho de responder. Meus olhos se franziam até praticamente se fechar, eu não queria despertar do devaneio em que me via vivendo com Tancredi, ouvindo-o falar, sentindo seu cheiro. Eu ainda podia sentir sua presença. Era fácil invocá-lo a qualquer momento. Ah, lá está ele. Cabelo como cobre reluzente, olhos da cor do mar, ele abre a porta da cozinha e fica parado por um momento. Dois longos passos e chega a meu lado. Sacudindo a cabeça e sorrindo, me puxa para junto dele, põe as belas mãos nos meus quadris e

P:119

cochicha. Juntos, vamos para perto de Filippa, até o berço próximo ao fogo. Ele pega a menina, adormecida ou não, do ninho de cobertas, levanta-a no colo, cantarola, beija-a. Como Tancredi ama sua filhinha! Antonia faz uma breve pausa e prossegue: – Ugo e eu nos casamos na primavera de 1941, e Tancredi era um fantasma entre nós. Na época eu pensava que tinha sido eu quem convidara Tancredi a estar onde estivéssemos, a caminhar conosco, a respirar, comer, dormir e fazer amor comigo. Foi muito depois que comecei a compreender que era Ugo quem mantinha o irmão por perto. Ugo sentia medo de mim. Sei que parece estranho, mas é verdade, e foi preciso uma guerra e toda sua maldade para que eu chegasse a compreender. Ele tinha medo de me amar e assim, com a presença de Tancredi, alimentava aquele medo. Proibia o amor. Isso funcionou por algum tempo. Como não havia amor, o tipo que há entre homem e mulher, Ugo e eu nos sentíamos livres para desfrutar da própria vida. Ele tinha os livros, as armas, os automóveis, suas viagens aqui e ali. Eu tinha Filippa. Não era como se tivéssemos vidas separadas; ele acompanhava o dia a dia da fazenda, de Marco- Tullio e Battista. Era um bom pai para Filippa. E comigo era amável, delicado, generoso. Na minha maneira de pensar, o início de meu casamento com Ugo, de certa forma, foi ideal. Ela continua: – Transformamos a mansarda em nossos aposentos particulares, lá em cima, onde os homens de Castelletto agora se reúnem. Ugo mandou instalar um fogão a lenha de porcelana amarela, muito enfeitado, sob o telhado, uma coisa mais austríaca ou russa do que toscana, e passávamos as noites brincando com Filippa, lendo para ela e depois lendo um para o outro, usando as palavras alheias no lugar das nossas quando tínhamos coisas difíceis por dizer. Tancredi se sentava entre nós. Sem querer conferir-lhe a condição de divindade por evitar seu nome, Ugo falava de Tancredi como se ele estivesse no quarto ao lado. Mantinha o fantasma por perto. É muito fácil amar os mortos. Eu a escuto, atenta. – Não acho que Ugo andasse com outras mulheres, mas nunca tive certeza. Não há mais como descobrir, embora eu ainda me pergunte. O que sei é que, por mais que ficássemos juntos, eu não era capaz de ser uma rival para a solidão de Ugo. Ou para o tempo passado com os amigos. Suas viagens eram cada vez mais frequentes e inexplicáveis e, quando ele estava aqui, participava de caçadas com antigos companheiros, bebia, fazia planos, gritava com eles por muito tempo nas noites sob o telhado. Falavam de guerra. Sempre de guerra. Ugo e seus amigos

P:120

eram antifascistas ruidosos. Do vermelho mais puro e profundo. A Toscana sempre foi vermelha. Quando Battista se juntava a eles, aconteciam as mais furiosas discussões. Battista também era vermelho, e muito, mas encontrava voz para elogiar Mussolini, aquele dos anos 1920 e do início dos anos 1930, por causa dos programas iniciados antes de suo auto-intossicazione, de se autoinebriar. Battista lembrava a Ugo que os fundos estatais distribuídos pelo bonifica integrale di Il Duce tornaram possível que proprietários como ele pudessem reivindicar e recuperar terras não lavráveis, construir estradas, espalhar canos de irrigação. Restaurar as residências dos meeiros para que voltassem a ser decentes. “Acha que eu teria condições de arcar com a manutenção de nove casas de fazenda em boas condições se não fosse por aquela ajuda? Transferimos para nossos lavradores o que nos foi concedido, aliviando a miséria de tanto tempo. Como podemos nos esquecer disso? Fique quieto, Ugo”, dizia Battista. Ele ouvia o pai. Ao mesmo tempo que não assinou o acordo oficial fascista, Ugo também não ostentou sua oposição. A resistência silenciosa talvez ajudasse a manter os camisas-negras brigões a distância. Um homem podia evitar a extradição e as surras. As torturas. Ugo evitou tudo isso. Ele compreendia que o chão podia ceder cada vez que ia de carro até a aldeia, passava pelas campinas elevadas, acomodava-se na cadeira do barbeiro, caminhava pela varanda desfrutando de um charuto à meia-noite. Lá no fundo, eu também devia compreender aquilo. Acho que compreendia. Antonia prossegue o relato. – E enquanto os homens conversavam, Filippa e eu ficávamos aninhadas em nossa cama quentinha, atrás da porta. Tínhamos nossos assuntos, Filippa e eu. Dormíamos um pouco, acordávamos quando as vozes dos homens invadiam nossa serenidade. Principalmente, acho que esperávamos Ugo. Enfim exausto, depois que os outros partiam, Ugo abria a porta, ficava ali parado olhando para nós, sorrindo sob a luz de uma vela que se derretia. Filippa se sentava na cama. “Ciao, papà.” E ele, “Ciao, Filippetta.” Então se despia, subia na cama para ficar do outro lado de Filippa, abraçava-a, deixando uma das mãos livres para segurar a minha sobre a cabecinha da menina. E era assim que costumávamos adormecer. – Mas a conversa na mansarda e em nossa sala de jantar contrastava com aquilo que ouvíamos na aldeia ou o que era transmitido pelo rádio e aparecia nos jornais, a maior parte relatando como toda a população italiana festejava nosso ingresso na guerra. Reproduzindo Mussolini, havia uma altivez, uma postura arrogante nas pessoas. Il Duce nunca teria arrastado para a guerra seus soldados

P:121

despreparados e mal-equipados se a vitória não fosse rápida e certeira. Algumas semanas de guerra, uma ninharia a pagar por uma parte nos espólios de Hitler. Depois daquele domingo em dezembro de 1941, a insolência esfriou, endureceu até se tornar algo parecido com uma bravata. Tirei aquilo da cabeça. Era possível naquela ocasião. Antonia faz uma breve pausa e retoma seu relato. – Perto do final de 1942, as notícias sobre os bombardeios de cidades italianas pelos britânicos e os americanos se tornaram lugar-comum. Prédios destruídos, gente morta. Eu sabia os números, mas me escondia deles. A RAF bombardeou Turim, Milão e Gênova em outubro; dias depois, os americanos voltaram a atingir Gênova e Milão. Mais uma vez Gênova, com sua posição estratégica na costa a menos de cem quilômetros de Castelletto. Até dezembro, Gênova já tinha sido atingida seis vezes. Porém, eu ainda conseguia banir a guerra. Torná-la algo distante, uma ópera encenada em outra cidade, o porco presunçoso berrando Vincere, vincere, e vinceremo pelos lábios de sua marionete, o astro tragicômico. Logo tudo estaria encerrado. Com certeza. Os alemães estavam ganhando. A França capitulara. A Inglaterra vinha sendo massacrada. Logo, logo e tutto fatto. Tudo encerrado. Ela respira fundo e prossegue: – De qualquer maneira, começamos a aumentar nossos estoques de mantimentos. A guardar tudo o que tínhamos, a não vender nada. Os lavradores fizeram o mesmo com suas cotas de farinha, milho, azeite e vinho. Com a lã das ovelhas. Juntos, secamos frutas e verduras, cozinhamos e preparamos conservas, fizemos geleia, matamos mais animais do que o necessário, colocamos a carne para secar como era possível. Trabalhando junto com os lavradores, houve ocasiões em que parecia que estávamos organizando alguma festa regional ou preparando alimentos para um inverno mais longo e rigoroso do que o habitual. Mais tributos à ilusão. Acho que alguns de nós já se rendiam às Moiras, compreendendo o que estava escrito. Eu os invejava. Ainda invejo. Culpem as Moiras. Melhor elas do que nós. Então Antonia arremata: – Não sei se há muito mais que eu gostaria de dizer sobre a guerra. Todo o mundo passou por ela ou ouviu falar dela, leu sobre o assunto, olhou-a, suas verdades são conhecidas. Mais de seis anos e cinquenta e cinco milhões de pessoas mortas por causa dos delírios de grandeza de três homens. Esse é o saldo. Não é? Danem-se as Moiras. Dane-se seu barulho incessante.

P:122

9 Dias se passam, talvez três ou quatro, e a trupe se encontra ao crepúsculo, quando cozinhamos e jantamos juntas. Até onde sei, ninguém perguntou a Antonia por que ela interrompeu sua história. Certa noite, com uma taça de vinho em cada mão, Luce me convida a acompanhá-la até a varanda para fumar, e decidimos nos acomodar junto à parede de pedra e contemplar as oliveiras. Só quando os cigarros já estão pela metade é que ela diz: – Queria ter certeza de que você não está pensando que Antonia interrompeu a narrativa por sua causa. – Não, não estava pensando isso. – Minha vontade era lhe dizer que a mãe dela não interrompeu a narrativa, na verdade ela dá continuidade durante nossas caminhadas matinais. Sinto-me dividida. Se contar para Luce, estarei traindo a confiança de Antonia? Se não lhe disser, será uma falsidade. Ou posso considerar minha reticência como um daqueles pecados da omissão? Luce prossegue. – Que bom. Filippa, algumas das outras e eu achamos que talvez você sentisse que ela não conseguia prosseguir porque... você sabe, você... – Porque eu não sou uma de vocês? – Não exatamente. Acho que na verdade é o contrário. Ela não consegue ir em frente porque o resto de nós está presente. – Bem, para falar a verdade, eu... – Marlena, nem Filippa e nem eu conhecemos o restante da história. E o que sabemos não vem de Antonia, mas das lembranças de Filippa. As sombras e os vislumbres de uma criança de 4 ou 5 anos. Tudo que sei vem de Filippa. Foi quando Viola e Isotta ainda eram pequenas e Sabina era um bebê, e a gente praticamente acampava no meu apartamento em Bolonha enquanto eu estudava na universidade, foi nessa época que Filippa me contou o que lembrava. O que a assombrava. O que ainda a assombra. “O soldado está machucando Mamma. Mamma está gritando. Mamma está chorando. O soldado está me machucando. Não consigo respirar, não consigo ver. Escuto os gritos de Mamma. Tento gritar, mas não consigo. Está tudo escuro, mas posso ouvir um barulho, uma pancada, um

P:123

homem rindo. Outra pancada, o homem rindo. Mamma, por que não me ajuda?” Luce faz uma pausa e continua: – Será que Mamma foi violentada pelos alemães? E Filippa? É quase de se esperar, não é? Os conquistadores estupram as mulheres dos conquistados. Com frequência, suas filhas. Não foi sempre assim? Não conheci mulheres que moravam aqui com Mamma durante a guerra. As famílias se dispersaram enquanto eu crescia. As leis mudaram, a mezzadria foi descartada, alguns dos lavradores permaneceram para trabalhar por empreitada, mas aqueles que puderam foram para as aldeias, para as cidades. É provável que Giorgia saiba de alguma coisa. Biagio sabe. Tinha 12, 13, 14 anos durante a guerra. E levará para o túmulo o que sabe. Battista, pai de meu pai... talvez soubesse o que aconteceu, mas sua discrição toscana era tão inviolável quanto é a de Biagio. Há outros que talvez saibam ou pensam que sabem. Histórias, especulações, invenções transmitidas como se fossem o evangelho. Como o remédio para curar uma mordida de víbora. Não é o que acontece conosco, nunca. A única parte da guerra de que Mamma fala de tempos em tempos são suas ideias românticas sobre os dias em que todas as mulheres, os velhos e as crianças viviam juntos aqui na villa, enquanto os homens lutavam ou trabalhavam nos campos na Alemanha ou, quando a Resistenza se organizou, acampavam nas cavernas das colinas. O coração de Mamma é de um vermelho toscano, e acho que ela deve ter vivido então seus momentos de glória, a jovem matriarca cuidando do bem comum. Alguns talvez sentissem carinho por ela durante esta época de necessidade, mas suspeito que a emoção mais forte e duradoura provocada pela filha do lavrador que se casou com um membro da família de il padrono tenha sido a inveja. Do tipo que atravessa gerações. As pessoas ainda param de falar algumas vezes quando Filippa, Antonia ou eu entramos no bar, na sala de espera do médico, na igreja. – Você e Filippa nunca conversaram com suas filhas sobre...? – E o que haveria, de fato, para se dizer? Acho que nossas filhas conversaram entre si, conjecturaram juntas, mas suas vidas sempre permaneceram distantes desses acontecimentos. As lacunas na história dos de Gaspari não são nada além disso... espaços vazios. Toda família tem os seus. E aí chegou Magda. Tinha 10 anos ou menos quando começou a atormentar Isotta pedindo histórias sobre o belga que era seu pai. E, nessa época, ela também abordou Antonia. “Conta, Nonnina, conta...” Com toda sua doçura, ela também é a mais exigente de todas. Magda confronta Antonia, que se recusa a ser confrontada. As duas são semelhantes. Para nós, parecem a mesma pessoa. A Antonia jovem, a Antonia velha. O impasse continua.

P:124

Luce respira fundo e prossegue: – Se meu pai ainda estivesse vivo, se ele... ah, não é que eu não tenha tentado conversar com ele sobre a guerra. Ainda era pequena quando comecei a lhe implorar que me contasse essas histórias: o que aconteceu com ele quando ficou separado de Mamma, o que ocorreu aqui, o que houve com Mamma e Filippa. Uma dor muito intensa invadia seu olhar, uma desolação muito grande. Era eu que dizia: “Va bene, papà, lasciamo stare.” “Tudo bem, papai, deixemos para lá.” Eu a escuto atenta. – Sabe, Marlena, acho que a gente pensava que podia ajudá-la, reconfortá-la, bastava que ela permitisse. Não sei se é vergonha, culpa ou qual a natureza do fardo que carrega, mas Filippa e eu poderíamos ajudá-la. Não é que tenhamos curiosidade de saber do que se trata, à exceção de Magda. Não é nada disso. Queremos dar consolo para Mamma. Antes daquela noite, eu nunca tinha ouvido Luce chamar Antonia de “Mamma”. Ao ouvir aquela palavra, as coisas mudaram para mim. Não compreendo como nem por quê. Não importa. Peço a Luce mais um cigarro. Ela o acende, me entrega, acende outro para si. Então digo: – E você, quando perguntou para Antonia, perguntou à sua mãe sobre...? – O pacto de silêncio de Mamma é consigo mesma, irrevogável. Ou pelo menos parece ser. Filippa e eu acreditamos que Antonia provavelmente vai continuar a contar o resto da história dela para você. A gente percebe, sente, que ela gostaria de fazer isso. Magda concorda. Compreendemos que ela não consegue contar para nós, juntas ou separadas... Achamos, espero, que ela lhe contará e, quando isso acontecer, talvez fique mais fácil para ela falar com a gente. Não estou lhe pedindo para trair a confiança dela. Nada disso. Por não ser um membro da família... os sentimentos que Antonia nutre por você são instintivos, da mesma forma que os seus por ela. Uma espécie de atração. Afinal, o que as duas realmente conhecem uma da outra? Mesmo assim... – O que quer que eu faça? – Quero que a escute. Deixemos a vida criar sua própria forma.

P:125

10 –Eis um prato formidável para você, uma espécie de sopa de pedra à moda da Toscana. Durante a guerra, era motivo de comemoração. Pizzicotti. Massa de pão semicrescida, ervas, uma panela de água fervente. Quando acabava a farinha de trigo, usávamos a de castanha; quando acabava a de castanha, fazíamos acquacotta, ou alguma variação dela. Água, sálvia silvestre, às vezes couve ou ovo. Sente-se e me ajude, está bem? Quando não a vi na estrada branca, à minha espera, achei que Antonia tivesse seguido em frente. Sem encontrá-la na campina alta nem no bosque de pinheiros, segui a trilha até o mar, mas não havia ninguém. Antonia resolveu ficar até mais tarde na cama, eu disse a mim mesma, sabendo que não era verdade. Juntei pinhas para a fogueira e caminhei junto às rochas. A superfície do mar estava lisa e azul, como se uma peça de seda tivesse sido estendida. Onde estava Antonia? Trabalhei, encerrei as atividades do dia, tomei banho e descansei. Nenhum sinal de Biagio nem dos outros. Perguntei a mim mesma se devia ir até a villa. Já passava das cinco da tarde quando peguei um xale, subi a estrada e encontrei-a sozinha na cozinha, sentada diante de um pequeno monte de massa, arrancando pedacinhos, enrolando e abrindo cada um até ficarem do tamanho de uma azeitona pequena. – Eu estava esperando por você. – Achei que poderia estar... Não se sentiu bem hoje de manhã? – Mais ou menos. Fui até a varanda e... bem, mesmo não querendo admitir, estava cansada. Senti minhas pernas pesadas como as de um morto. Simplesmente me sentei e fiquei ali até o dia nascer. Pensei em mandar um deles para avisá-la, para levar a garrafa térmica, mas quando se levantaram, bem, eu sabia que você já estaria... Bebi tudo sozinha. – Não, não. Não precisava... Mas senti sua falta. – Havia muito o que colher? – Não sei dizer, não reparei. – Você termina esses aqui para mim enquanto eu cuido do cordeiro? Luce e

P:126

Filippa levaram Sabina para passar alguns dias em Florença. Viola vai jantar em Carrara com jornalistas de Roma, e Magda foi visitar os pais de Giangiacomo. Não vi nem ouvi nada sobre Isa, embora saiba que ela está fora, porque suas botas sumiram. Posso dizer quem está aqui e quem não está pelas botas que ficam na porta da cozinha. Na maior parte das vezes eu acerto, mas nem sempre. No jantar desta noite, seremos apenas quatro. Biagio, Giorgia, eu e você, pois pelo que entendi Umberto saiu por aí com Fernando. Uma reunião bem particular. Eu esperava que o tempo estivesse suficientemente bom para podermos arrumar a mesa na varanda. O que acha... – Você parece muito triste. – Pode esperar para tomar o chá depois que eu preparar o cordeiro? – Apesar de dirigir-se a mim, Antonia ainda não me olhou. Ocupando-se em outra parte da mesa, ela pergunta: – Você sabe com o que sonho às vezes? Em jantar sozinha. Preparar uma ou duas receitas que me agradam, arrumar meus pratos e apetrechos preferidos em uma mesinha perto do fogo, acender as velas, servir o vinho. Não sei se eu gostaria de música, talvez bastassem os sons da fogueira ou das aves e dos bichos lá fora. Acho que seria o suficiente. Antes de Fernando juntar-se a você na cabana, eu costumava pensar nas suas refeições solitárias ali e sentia inveja. Estou certa de que um dos motivos que me levam a permanecer acordada por metade da noite é poder ficar sozinha. Acordada e a sós. E minhas caminhadas matinais são uma extensão da noite. A beleza da solidão, acho que já falamos sobre isso. – Também conversamos sobre ficar tão habituada à presença das pessoas que só começamos a sentir falta delas quando elas partem. Alguma coisa assim. – Não estou querendo que ninguém se vá, basta apenas um descanso. De vez em quando. Breve, na maioria das vezes. Não tão breve, algumas vezes. Antonia fatia a carne da paleta de um cordeiro, picando tudo muito bem, colocando em uma grande tigela branca e acrescentando pedacinhos de pão vindos de uma assadeira que ela acabou de retirar do forno. Depois de extrair o caroço de azeitonas secas, amassar o alho roxo, picar alecrim, ela mistura tudo na tigela branca junto com o cordeiro e o pão, acrescenta um ovo batido, uma boa dose de vinho branco e sal. Em seguida, esfrega mais sal sobre duas pequeninas coxas do cordeiro, depois passa uma espessa camada da mistura sobre elas, em apenas um dos lados. De uma cesta no chão, ela retira galhos de alecrim silvestre, umedece-os em azeite, arruma-os inteiros em um prato raso de terracota, coloca as pernas de cordeiro sobre eles, acomodando os ramos com cuidado sob a carne para que lhe emprestem sabor, mas não queimem. Por fim,

P:127

ela cobre o prato com um pano branco. – Acendi o forno na varanda, então deve estar pronto por volta das oito. De qualquer maneira, não vou colocar lá dentro antes que todo mundo chegue. Eu acho que essas coisinhas gorduchas vão precisar de, no máximo, uma hora. Talvez menos. Ainda evitando me olhar, ela lava as mãos e as enxagua por muito tempo sob a torneira, pega outro pano branco de infindáveis pilhas nas gavetas de um velho aparador. Neste meio-tempo, eu praticamente exauri a massa, enrolando e abrindo-a da forma com que Antonia fizera. – Você vai precisar de farinha aí, coloque-as em uma única camada naquela assadeira. – Quando aponta para a assadeira, que está atrás de mim, ela me olha. Por muito tempo. – Você se lembra do que lhe falei sobre meu jogo? – Jogo? Não lembro... – Fingir que cada dia é o último. Aquele jogo. Nada desperdiçado ou encoberto. Às vezes, não parece ser suficiente dizer a verdade para mim mesma. Aquele desejo que tentei explicar, parte dele talvez seja o desejo de contar algumas verdades para os outros. Vou começar por você. Estou zangada com você. Furiosa. Tinha toda a intenção de pedir que deixasse minha propriedade esta manhã, a velha casa de Biagio é na verdade mais minha do que dele. Ia pedir que partisse, nos deixasse e nunca mais voltasse. Foi a raiva que enfraqueceu minhas pernas, me deixou presa à cadeira, debilitou a velha dama. Eu... Ela continua a falar, mas o zumbido em minhas orelhas é mais forte, uma rajada de vento feroz atravessando juncos esguios e, diferentemente da noite de seu primeiro bombardeio, as palavras que ouvi me atingem e me ferem. Ao mesmo tempo que me convida para jantar, ela me expulsa... Quero sair correndo, mas agora são minhas pernas que estão pesadas como as de um morto. O grito dentro de mim escapa num sussurro: – Por quê? O quê? – Porque você agitou tudo por aqui, insinuou-se entre nós, você e suas... – Minhas o quê? Por favor, me diga. Mas ela já se virou. Meio afastada, o rosto de perfil, um rubor violáceo no rosto. Aproximo-me, mas ela ergue a mão para me deter. Os ombros oscilam em um ritmo delicado e lágrimas molham a lã marrom de seu peito.

P:128

– Pecados da omissão. Vou deixar uma série deles, uma vida inteira deles e, de alguma forma, você me fez ficar consciente da gravidade dessas omissões. Tu e i tuoi occhi che fanno pensá. Você e seus olhos que fazem pensar. Sento-me, desenho um círculo de farinha na tábua, fico em silêncio até que minha respiração se acalme. – Acho que está enganada, signora – digo enfim. – Não são os meus olhos, mas aqueles seis pares de olhos azuis. São eles que a fazem pensar. Rosto molhado, minúsculos diamantes azuis cintilando nos olhos quase fechados, ela se vira para mim. – Você caminha comigo até a campina alta? Senta comigo na grama por algum tempo? Sacudo a cabeça. Não.

P:129

11 Sinto muito pela dor daquela velha senhora, mas lamento também ter ficado ali parada enquanto ela me chibatava, seu bode expiatório. Sem palavras, confusa, pego o xale, afasto-me dela e caminho pela estrada branca. Jogo minhas coisas e as de Fernando em duas valises, enfio o que sobra em sacolas de compras e coloco tudo do lado de fora da casa. Desfaço a cama de princesa, dobro os lençóis, arrumo o espaço que já está arrumado, escrevo um bilhete simples e nada comprometedor para Biagio e sento-me no degrau, na entrada, para esperar Fernando, mesmo sabendo que ele foi para Carrara com Umberto, que planejam participar de uma reunião da Associação para o Desenvolvimento do Turismo local, presidida por Umberto, e que eles jantarão com seus colegas depois. Estou transtornada demais para me deitar pela última vez na cama de princesa, embora me sinta cansada e talvez um pouco doente. Limpo a farinha que ficou sob minhas unhas. É então que ouço. A velha dama enfraquecida partiu. É uma Antonia imperiosa quem caminha rumo à cabana. Não dou sinais de perceber sua aproximação, nem me mexo. É ela quem toma a iniciativa de se sentar a meu lado. – Estamos agindo como mãe e filha, você sabe – diz. – Você está interpretando os dois papéis. – Talvez seja verdade. – Ela olha para minha bagagem. – Talvez lhe ajude saber que também mandei embora Filippa, Luce e Sabina, as três que encontrei hoje. Elas nem me deram bola. Queria que você tivesse feito o mesmo. – Estou fazendo melhor. – Levando-me a sério? – Nem a velhice nem a mente atormentada lhe dão o direito de agir como uma maluca. – Você talvez continue a acreditar nisso por uma ou duas décadas. Naquele degrau estreito, havia apenas seis centímetros de concreto entre nós. Sinto o cheiro de tomilho e hortelã em suas roupas, em seu hálito. De soslaio, vejo que também está com as unhas sujas de farinha. Ela está me olhando, mas eu não me viro.

P:130

– Vou sentir muito sua falta – diz. Sem querer, meu reflexo é me virar depressa para encará-la. Confrontá-la. – Por que fica me olhando? O que está procurando em mim? – quero saber. – Eu mesma. Outra perspectiva de mim mesma. Acho que é isso. E você, o que está procurando em mim? Vislumbrar a mulher idosa que você vai se tornar? Já notou as semelhanças entre nós, não? Ah, temos formas diferentes, admito, mas quanto ao resto... desde aquela primeira noite, quando veio para o jantar, nós duas soubemos que éramos iguais. Encontrei uma parceira para briga e fui direto ao assunto. Ou tentei. Eu acreditava que você compreenderia e acertei. Foi por isso que me deixou ir em frente, não foi? Não estou dizendo que concordamos na ocasião, nem desde então, quanto a determinados pontos. Vivi outra vida. Ma è come siamo fatti, somos feitas do mesmo material. Nossa essência. Sei por que você não pode ser ferida, por que não pude extrair mais do que um gritinho seu naquela noite, em volta da mesa... é porque já viveu a maior dor de sua vida e não há nada capaz de fazer você arrancar os cabelos, mostrar os dentes. E é por isso que você diz que se sente plena, que pode ficar bem em qualquer lugar... Está ficando quente? Baixo o olhar e digo: – Talvez um pouquinho. – Complimenti. Meus cumprimentos. Você veste a dor com a mesma habilidade com que pinta sua bela boca vermelha. Você, seja lá quem for e, aliás, não sei nem preciso saber, você e eu, nós duas somos ligadas de uma forma que supera os laços de sangue. Acho que é raro. Talvez não seja, mas eu, pessoalmente, nunca passei por isso antes. É por esse motivo que posso ser brutal com você do jeito que sou comigo mesma. E é também por essa razão que posso amar você tanto quanto desejo amar a mim mesma. Sim, estou aqui lhe dizendo que a amo. Agora olho fixamente para a frente, buscando sua mão, e ela me ajuda, envolve a minha com a dela e nós ficamos sentadas ali, no degrau. A luz ficou azulada, um azul mais escuro, o tom crepuscular de uma ameixa. O azul antes do crepúsculo. – Quanto a ser amada, seu bizantino está inebriado. – Nós dois estamos. Quando um de nós não está agindo de uma forma horrível. – Quero dizer que vocês formam um belo casal. De alguma forma, Fernando me

P:131

lembra Ugo. Ele é fraco e forte do jeito de Ugo. Você vai lhe dar uma chance de escalar as paredes e salvar a princesa? Ele pode fazer isso, você sabe. – Sei. Mas ainda estou tentando escalar as dele. Cada coisa no seu tempo. Paredes escaladas, paredes não experimentadas... por acaso, por busca, mais aos tropeços, acabamos encontrando muitas portinhas nas nossas paredes, portas secretas que nos levam a lugares. Ficamos bem juntos. Ela manteve a mão enroscada na minha e, de repente, reparo como é leve. Depois de algum tempo, ela me olha, ainda segurando-me a mão, e levanta-me do degrau. – Venha, prepare-me um chá de despedida. Ela arruma a mesa para o chá enquanto ponho a panela no fogo e acendo algumas velas. – Você lembra onde interrompi minha história? Não respondo, embora saiba exatamente. Despejo em uma chaleira a água, sibilante, que respinga na minha mão. Chupo a queimadura e digo: – Mais de seis anos e cinquenta e cinco milhões de pessoas mortas por causa dos delírios de grandeza de três homens. Foi aí. Uma frase bem memorável. – Sim, pois bem, o que ocorreu é que Vittorio Emanuele III nos tirou da guerra da Alemanha em 1943, mandou o pequeno Benito para Abruzzo. Mas assim que os sinos das capelas soaram em homenagem à vitória em meio ao ar morno e perfumado pelas uvas de setembro, uma nova guerra havia começado. As próximas três guerras, para ser precisa. Depois de encenar um ataque aéreo cinematográfico em Campo Imperatore e resgatar Mussolini dois dias depois de ser confinado pelo rei, Hitler colocou-o à frente da república-marionete de Salò. Os soldados italianos que retornavam e permaneciam fiéis a Mussolini, os repubblichini, continuaram a enfrentar os Aliados, junto com os alemães. Além dos Aliados, os repubblichini também atacaram outro inimigo, aqueles outros soldados italianos, aqueles que não queriam mais ouvir falar em fascismo, em Mussolini ou na guerra de Hitler e que por isso se escondiam nos bosques e nas montanhas por toda península. Os imboscati, como eram chamados, “aqueles que se escondem entre as árvores”. Então tivemos a guerra entre os fascistas e os Aliados. Outra entre os fascistas e não fascistas italianos. Até aí são duas guerras. E logo a Resistenza se ergueu, criando a guerra número três. Era formada por

P:132

mais soldados que voltavam, além de garotos jovens demais para lutar, e homens, como Ugo, Battista e Marco-Tullio, que eram velhos demais, além de mais de cinquenta mil mulheres, ninguém querendo saber de Mussolini ou dos alemães. Nem dos italianos que ainda simpatizavam com eles. A guerra de La Resistenza era com os alemães, antes companheiros, mas agora Ocupadores, bem como com os repubblichini. E os grandes Aliados? Os mesmos que metralharam, borbardearam e mutilaram a Itália até poucas horas antes da assinatura do armistício? Voilà, eram os novos companheiros. Eram chamados de Salvadores, mas não pelas crianças que já haviam perdido suas mães nem pelas mães sem filhos. Por elas não. Ela prossegue: – A ameaça da presença alemã em Castelletto se tornou provável. Ugo e os homens que permaneciam nas fazendas começaram a se preparar. Eram como vigilantes, cavalgando até os confins da propriedade, até cada um dos nove casolari, ajudando as famílias, mulheres, velhos, crianças, a embalar vestimentas, roupas de cama, comida, e por fim carregando todo mundo e seus bens em carroças puxadas por um trator. Foram necessárias semanas, talvez duas ou três, para reunir todo mundo na villa. Antonia respira fundo e continua: – Com a ajuda de Abriana e Tessa, eu já havia começado a transformar a villa em uma residência comunitária. Perto dos 15 anos, na época, ainda pequena como uma criança, as pernas finas de um potro recém-nascido, Tessa seguia a mim e a mãe, adiantando a próxima tarefa e a seguinte, carregando cestos de roupas molhadas na cabeça, estendendo os lençóis molhados no varal, limpando infindáveis áreas de ladrilhos vermelhos com as mãos, ajoelhada. Às vezes eu parava para observá-la... uma delicada silhueta de criança com a força de uma mulher... e para pensar repetidas vezes sobre o que Maria-Luce me dissera muito tempo atrás quando lhe perguntei sobre o marido de Abri, o pai de Tessa. Quem era ele? “Só Abri sabe”, ela havia dito. Quando me contou que esperava um filho e implorou, chorando, que eu a deixasse ficar e permitisse que a criança também vivesse aqui, eu concordei, é claro. Sabe, os pais de Abri eram da terceira geração de meeiros de Castelleto e já tinham seis ou sete filhos quando Abri nasceu. Eles eram pobres demais para manter mais um bebê e, quando Abri ainda tinha poucos meses, a mãe dela a deixou na porta da minha cozinha, bem acomodada dentro de um caixote de madeira que cheirava a marmelo maduro. Ela passou a viver aqui. Embora tivéssemos pensado em criá-la como filha e a tratássemos assim por muitos anos, lentamente ela assumiu o comportamento de uma criada, dizendo que preferia assim. E então pareceu natural que ela tivesse

P:133

seu filho e que essa criança também se tornasse parte da família. Não passou por nossa cabeça devolvê-la à sua família verdadeira. Nunca perguntei para Abri sobre seu amante, por não sentir a necessidade de saber e por ela não achar necessário contar. Quando Maria-Luce morreu, Abri e a menina deixaram o quarto amarelo-claro do segundo andar, que as duas sempre ocuparam, e foram para dois minúsculos aposentos perto da lavanderia. Acho que Abri nunca parou de lamentar a morte de sua patroa. De sua mãe, na verdade. Antonia faz uma breve pausa e prossegue. – E lá estávamos nós, Abri, Tessa e eu, empurrando antigos móveis para serem guardados em depósitos, arrumando camas improvisadas encontradas em porões e sótãos. Criamos dormitórios, um para os bebês e suas mães, outro para crianças e as mulheres que cuidavam delas, outro destinado às mais idosas e doentes. Para os homens e os garotos, montamos quartos nos galpões próximos e nas cozinhas externas. Três famílias se recusaram a deixar suas casas em terras vizinhas, preferindo o isolamento à convivência comunitária. Dessa forma, nos primeiros dias da Ocupação, nossa casa abrigava 38 pessoas, incluindo Battista, Marco- Tullio, Filippa, eu e, por algum tempo, Ugo. Quinze mulheres, quatro bebês, onze crianças mais velhas, Biagino entre elas, oito homens. Assim que todos tinham um lugar para dormir, começamos a enterrar a comida. Em lugares improváveis, cavamos profundos fossos, forramos com folhas e galhos, e deixamos peças inteiras de prosciutto, rodas de pecorino, linguiças secas, finocchione inteiros, todos parecendo pequenos defuntos envoltos em panos. Imagens proféticas. Eu a escuto atenta. – Racionamos os mantimentos, organizamos a cozinha, os assados e a hora das refeições, os turnos na lavanderia, fiamos lã, costuramos, tricotamos e remendamos. Até os horários dos banhos foram afixados. O trabalho nos campos prosseguiu praticamente como vinha se desenvolvendo desde que os jovens haviam partido para o combate no final de 1940. Colhemos as uvas, fizemos vinho, colhemos o trigo, as maçãs, as peras, o marmelo, os figos, as azeitonas. O medo era amenizado por infindáveis tarefas. Cada um de nós era a mãe ou o pai de todas as crianças, cada um de nós queria a serenidade dos demais e assim encontrava a sua própria. Era uma vida primitiva, reduzida (ou elevada?) ao fundamental: comida, abrigo, carinho. Durante aqueles meses vivemos numa situação próxima à harmonia. Mais próxima a ela do que jamais vivi antes ou depois. Tudo o que fazíamos era por causa do lobo, para manter o lobo longe de nossa porta. O lobo que era a fome, o lobo que era todas as fomes. Sempre lamentei que minhas filhas e as filhas delas nunca tivessem tido a oportunidade

P:134

de viver de uma forma tão elementar. Tão crítica. Filippa tinha 4 anos quando tudo começou, e suas lembranças se limitam a visões, fragmentos, talvez por causa da pouca idade ou por ter apagado da memória alguns episódios. Hoje minhas meninas têm coisas demais. Depois que a guerra acabou, Filippa teve coisas demais. Luce sempre teve. As outras também. Mesmo assim elas se deram bem, evitando a maioria dos perigos da abundância, dos caminhos já abertos, das vidas herdadas. No entanto, ainda me pergunto no que teriam se tornado caso tivessem sido criadas naquele lugar empolgante entre o que é suficiente e o que falta, em que você é capaz de sentir o jantar até a ponta dos pés. Estou convencida de que é o melhor lugar. Você atingiu em cheio um nervo que eu julgava morto havia muito tempo naquela primeira manhã, no alto piano. Sabe, eu sou uma daquelas que viveu seus melhores dias durante a guerra. Os melhores e os piores também. Antonia respira fundo e continua: – Desde os acontecimentos de setembro, Ugo vinha fazendo expedições às montanhas, passando dias fora, às vezes mais, porém foi em novembro de 1943 que Ugo deixou Castelletto dizendo que passaria muito tempo longe. “Acho que serão meses, Antonia. Poderão ser meses.” Partiu em uma das caminhonetes da fazenda carregada de comida e roupas, rifles, pistolas e um par de Bredas embrulhado em cobertores. Não chegou a se despedir direito, limitou-se a dizer que era sua vez de participar da luta, de se esconder nas profundezas das montanhas, onde a Resistenza se organizava. Rindo de forma sombria, afirmou que seria o velho entre eles, o Cerberus. E, de vez em quando, ele era. Mas fez mais que isso. Embora eu não compreendesse naquela época, Ugo vinha afiando suas garras havia anos. O comportamento arredio, as viagens não reveladas, as reuniões na aldeia e na mansarda. Veja só, havia muito tempo que Ugo participava das engrenagens clandestinas da OSS, Office of Strategic Services, Agência de Serviços Estratégicos. A organização de inteligência do governo americano. Ele arrecadava fundos, principalmente os dele próprio, traficava armas, estabelecia gráficas secretas, colaborava no planejamento de descarrilamento de trens, bombardeios, sequestros, assassinatos. Propaganda, espionagem, subversão, sabotagem. Caro Ugo era um espião cavalheiro. Depois de se despedir de forma breve e pouco sentimental de Battista e de Marco-Tullio, e de modo ainda mais simbólico do resto da casa, ele me segurou em seus braços e me embalou por algum tempo. Então partiu. Fiquei na varanda observando a caminhonete miserável sacolejar pela estrada dos carvalhos até desaparecer, pensando que ele havia sido sábio em permanecer comigo até que os ritmos da vida doméstica estivessem estabelecidos, até que a nova velocidade das coisas tivesse me fortalecido. Por ele saber que eu ficaria bem, eu fiquei bem. De vez em quando Maria-Luce me ajudava, sussurrando: “Estou muito feliz por você

P:135

estar aqui. Por ser você, proprio tu, exatamente você, quem levará tudo adiante.” No final de novembro de 1943, tivemos notícias de que os alemães andavam requisitando fazendas e se mudavam para aldeias próximas. Isso foi o suficiente para destruir nossas ilusões de que seríamos ignorados. Embora os dias e as noites seguissem inalterados, passamos a esperar por eles, os hunos. Como se vigiássemos um moribundo, nós esperávamos. – Roncando pela estrada de carvalhos em caminhões e motocicletas e dois compridos automóveis negros, até a cavalo, os hunos da Wehrmacht marcharam para Castelletto no primeiro dia de dezembro de 1943, pouco antes das sete da manhã. Uma daquelas datas e horas que a pessoa se lembra. Eu estava na varanda, segurando a mão de Filippa. Um comitê de boas-vindas formado por nós duas. Em meio à gritaria, à poeira, aos cacarejos das galinhas no interior de um dos caminhões, um grupo subiu os degraus onde nós estávamos. Um dos homens, embora eu não entendesse nada na época sobre hierarquia, mais tarde eu descobriria que era um coronel, pediu para ver a dona da casa. “La padrona”, disse ele, com uma voz parecida com a daqueles lutadores de boxe dos filmes, que perderam os dentes depois de levar um soco e tentam falar com a boca cheia de sangue. Foi como soou para mim. Era assim que a voz deles todos soava. Aquela impressão permanece. Até hoje, quando escuto um alemão falando, parece que ouço alguém falar com a boca cheia de sangue. Desencadeando uma série de olhares maldosos e grunhidos, eu lhe disse: “Sono io la padrona. Sou a dona da casa.” Antonia prossegue: – Outra impressão inicial que nunca me abandonou é que os homens alemães têm lábios femininos, carnudos, sensuais, e que os movimentam como uma mulher, e isso é apenas uma das características que acentua sua perversidade. Nem homem, nem mulher, alguma raça de sátiros. De qualquer forma, o coronel me informou que nove oficiais passariam a morar na villa. Os outros, acho que devia haver trinta ou mais, mas o número mudava o tempo todo, alguns chegando, outros partindo, acampariam nas construções externas ou em tendas. Os oficiais escolheram se instalar nos quartos do andar superior e na mansarda, e seus lacaios vieram para tirar camas e móveis que não consideravam adequados, vistoriar a casa em busca daquilo que queriam: pinturas, o piano de cauda, um espelho do século XVI que tomava uma parede inteira, tapetes turcos, toalhas, roupas de cama, até o roupão de Battista. Todos os pertences dos lavradores que se encontravam nos dormitórios foram jogados numa pilha sobre o cascalho da estrada. Um ajudante do coronel anunciou para mim que os moradores da villa

P:136

deveriam se mudar dali até o anoitecer. Qualquer pessoa que ainda estivesse “à toa” na casa ou no terreno levaria um tiro. Ela faz uma breve pausa e continua: – Aqueles que ainda não estavam no campo quando os hunos chegaram trataram de revirar aquela pilha, à procura de suas coisas. Amarraram seus pertences em cobertores, levantaram as trouxas nas costas, nas cabeças, e depois voltaram para suas fazendas. Mas o que encontraram em seus antigos lares, em seus pedacinhos de terra, foi apenas a devastação. Os hunos haviam parado antes para limpar seus campos e jardins, levar o pouco que havia em seus porões e despensas, para estuprar algumas das mulheres que puderam encontrar, queimar as casas e os celeiros, matar os animais. E um menino de 11 anos que ergueu um rifle contra eles. Os hunos acabaram com ele pelo caminho. Sem teto, famintos, sem objetivo a não ser enganar os alemães por mais um dia, por mais algumas horas, esses refugiados movimentavam-se pelos bosques, seguiam trilhas de caçadores, encontravam ajuda nas cavernas dos Partigiani e nas cabanas dos pastores nas montanhas. As histórias deles é que mereciam ser contadas. Antonia respira fundo e prossegue: – O único entre os hunos que falava um italiano compreensível, o coronel, disse que eu e minha filha podíamos dormir na cabana dos queijos. Pelo menos até que precisassem do local. Eu me ofereci para cozinhar para ele, “Com certeza, precisarão de uma cozinheira.” Ele respondeu: “Temos nossos cozinheiros.” Então eu disse: “Ma, io sono brava. Sou muito boa. Podemos fazer uma experiência. Dê-me uma chance. O que seus cozinheiros sabem fazer com nossos alimentos? Minha filhinha e eu não daríamos qualquer trabalho se pudéssemos ficar na despensa perto da cozinha. Nenhum trabalho.” Ao perceber que ele tinha se convencido, dei mais um passo. “E aquelas duas mulheres”, disse eu, apontando para Abriana e Tessa, que tentavam permanecer invisíveis, “são elas que limpam a casa, esfregam, lavam as roupas, passam a ferro”. Ele resiste: “Temos nossos próprios métodos, signora.” Eu insisto: “Mas a casa é grande, e o serviço nunca termina. Estamos acostumadas. Elas podem dormir junto comigo e minha filha. Não daremos nenhum trabalho.” Franzindo os lábios femininos, o coronel voltou a assentir. Tentei obter uma última concessão. “Há dois velhos no lagar do azeite. Um é meu pai e o outro é o pai de meu marido. Começaram a prensar a safra do ano ontem. Nosso azeite é o melhor da região. Ah, e eles ordenharão suas vacas e cuidarão de seus cavalos. Vamos precisar deles. Sei que há homens que podem fazer este trabalho. Mas não tão bem quanto eles.” Ele perguntou, para se certificar: “Nenhum problema? Na despensa perto da cozinha?” “Combinado.”– Eu sabia que ficaríamos aquecidos naquele espaço e

P:137

eu teria acesso direto aos suprimentos, aos nossos e aos deles. Para alimentar os meus. Minha família reduzira-se a cinco pessoas. – O que mais me lembro daqueles primeiros dias da vida com os hunos era a histeria extravagante com que comiam e bebiam, da verdadeira orgia nas refeições. Caminhões com suprimentos vinham regularmente pela estrada branca, descarregando batata, repolho, infindáveis caixotes, sacos de farinha, barris de vinho, tonéis de grapa, animais ainda em seus cascos e outros que haviam acabado de matar, sangrando ao serem transportados para o piso da despensa, em geral respingando na pequena cama que preparei para Filippa. Às vezes havia caixotes de peixes marinhos, mariscos, vieiras, frescas e pulsantes sob sua cobertura de algas com cheiro de maresia, embora eu nunca fosse capaz de imaginar como produtos tão maravilhosos pudessem ter sido adquiridos. Com a ajuda de meus furtos discretos, comíamos mais e melhor do que antes da chegada deles. Mas os dias de fartura apenas precederam um período mais longo de agonia. Antonia faz uma breve pausa e continua: – Os tesouros que escondemos com tanto cuidado foram logo descobertos e devorados. Quanto mais encontravam, mais queriam. Uma vez, enquanto Tessa ensaboava as roupas na lavanderia, um dos nove homens chegou com violência, pegou-a pelo pescoço, erguendo-a do chão, e lançou-a perto de uma das fossas onde os mantimentos tinham sido enterrados. Ele obrigou-a a se ajoelhar, mergulhou seu rosto na lama e manteve-a ali, dizendo-lhe que farejasse o resto. Como riam, trocando tapinhas, bufando, um tentando superar o outro nos pequenos tormentos impostos a Tessa! Marco-Tullio foi testemunha de boa parte dessa cena. Compreendendo que uma tentativa de ajudar Tessa teria resultado apenas em uma diversão mais trágica, ele se manteve a distância. Acho que foi a gota d’água para que ele começasse sua colaboração com os Partigiani. Eu a ouço em silêncio. – Ele coletava os ovos pela manhã, separava uns, escondia algumas das frutas que pegava nos porões antes de cada refeição, embrulhava meia peça de pão assado no dia e guardava tudo. Durante a noite, quando achava que seu saco já estava bem abastecido, ele me ajudava a pôr Filippa para dormir, juntava suas coisas e saía, sem saber se os acampamentos haviam sido abandonados, se os Partigiani haviam mudado de posição, quem ele encontraria ou onde. Ele sorria quando eu lhe pedia para não ir, e me dizia que aqueles homens lá em cima das montanhas estavam tentando ajudar a livrar seu país dos alemães e que talvez

P:138

um ou dois ovos pudessem ajudar. Na manhã em que foi trazido de volta para a villa por um Partigiano, o coronel me ofereceu a ajuda de dois de seus lacaios para cavar a sepultura de meu pai. Recusei da forma mais delicada possível. Battista, Abri e eu nos revezávamos com uma pá, contra o solo quase gelado de janeiro. Lavei meu pai com óleo, preparei uma mortalha com lençóis e nós o colocamos em uma das fossas que ele ajudara a cavar meses antes, para esconder nossa comida. Só em março pudemos lhe dar um enterro decente. Nunca acreditei que as excursões de meu pai se limitavam à entrega de ovos. Ugo, posteriormente, confirmaria minhas suspeitas. – Aqueles nove liquidaram em seis semanas o que seria suficiente para alimentar 38 pessoas durante o inverno, até que a terra pudesse voltar a produzir. Talvez em menos tempo ainda. Mesmo assim, como eu havia feito desde o primeiro dia, quando comecei a trabalhar todas as manhãs com a comida entregue para meus “convidados”, eu mantinha duas panelas por perto, onde guardava porções do jantar dos hunos para Filippa, Abri, Tessa e Battista. Com certeza, o coronel sabia que era assim que sobrevivíamos, mas nunca disse nada, nunca proibiu, nem sequer demonstrou que sabia. Antonia prossegue com seu relato: – Estávamos no final de janeiro quando os caminhões de suprimento começaram a chegar com menos frequência. Sacrificamos os últimos animais, até as vacas leiteiras, e torcemos os pescoços de galinhas velhas. Vivemos à base de batatas, maçãs e de uma sopa rala de farinha de milho. O que nos salvou foi o azeite. Eu colocava sobre a mesa uma anfora de azeite, uma coisa exótica para os hunos, mostrava aos homens como derramá-lo sobre as batatas, a sopa, para tornar mais nutritivo um alimento tão pobre. De certa forma, acho que o coronel interpretou esse gesto como uma espécie de cortesia pessoal minha para com ele. Todas as noites, com os lábios franzidos da forma habitual, ele pegava pessoalmente a anfora e caminhava em volta da mesa despejando o azeite com delicadeza na comida de seus homens. Aquilo o agradava. Da mesma forma que faria caso ele tivesse uma grande anca de carne de veado para cortar. Eu a escuto com atenção. – Certa noite, um dos soldados do acampamento entrou correndo, pedindo desculpas, tropeçando, batendo continência, anunciando algum tipo de problema entre os homens, mas o coronel prosseguiu com o ritual costumeiro com o azeite. Tessa e eu estávamos de pé, ali por perto, enquanto jantavam, como fazíamos todas as noites, servindo, limpando, atendendo. Quando o coronel terminou, ele

P:139

nos fez um sinal e deu aquele sorriso úmido, afeminado. Ele disse para os homens continuarem a refeição e só então olhou para o soldado, afastou-o da mesa, escutou-o e deu ordens. Tudo o que ouvimos o coronel dizer foi: “Atire neles, Herkert. Em cada um deles se for preciso.” Antes de partir, o soldado se virou, olhou para os homens em volta da mesa, que consumiam o que deve ter lhe parecido um banquete, pois comiam-se raízes e terra naqueles acampamentos. E com o mesmo olhar invejoso que os moribundos dispensam àqueles que viverão um pouco mais, o soldado me encarou. Ao sentir que ele me fitava, olhei para ele. Como se estivesse pedindo desculpas. Lamentei que ele pudesse pensar que eu fosse uma pessoa indigna, satisfazendo os apetites do inimigo. Cortejando-os, de certa forma. Lamentei saber que ele sentia fome. Fui eu quem desviou o olhar primeiro. Antonia prossegue: – Depois de concluir a refeição noturna, os nove costumavam se retirar para o salone, para seus quartos ou, com mais frequência, para o bordel que montaram bem aqui, nesta cabana. Perdoe minha indiferença, mas é isso mesmo, bem aqui, na casinha de Biagino, os oficiais hunos recebiam garotas e mulheres da aldeia. Ficou chocada? As italianas estavam disponíveis? Estavam dispostas a trocar seus corpos por um saco de maçãs? Dio buono, um pedaço de queijo? Você diria que elas se corromperam? Você as chamaria de prostitutas? A predisposição para a corrupção é uma característica humana. A guerra apenas amplia seu alcance. Como eu disse, você nunca passou fome... Eu a escuto em silêncio. – Onde eu estava? Assim que os oficiais saíam, Abri e eu arrumávamos a mesa para a nossa refeição. Eu servia tudo direito, um prato depois do outro, a sopinha aguada, depois as batatas amassadas com azeite e sal, a casca frita com um pouco mais de azeite ou outro tipo de gordura que tivéssemos. E depois maçãs, cortadas em fatias finas, salpicadas com açúcar que eu roubara mais cedo e escondera atrás de minha cama. Conversávamos um pouco, tentávamos manter um mínimo de brio. Não por nós mesmos, mas por Filippa. Antonia faz uma breve pausa e prossegue: – Eu dava uma mordida, uma colherada, guardava a sobra. Sempre guardei tudo. Por dias seguidos, eu não sentia fome alguma, até que a dor que ela causava começava a me consumir. Por muito tempo, só pude me alimentar de sonhos. Ugo chegaria, a velha caminhonete arqueando-se sob o peso de sacos de farinha e de feijão, couve, batatas rolando pela carroceria. Nossas fantasias se tornam

P:140

humildes muito depressa. E quando não conseguia mais me lembrar do sonho ou me enganar com ele, eu descia os degraus íngremes e quebrados que conduziam até a adega, inalava o cheiro de vinho das frutas amassadas, estragando no chão de pedra. Quando todas as maçãs ainda boas já tinham sido reunidas e servidas à mesa, havia sobrado uma polpa apodrecendo, mordiscada pelas moscas e pelos ratos, e eu a peguei com as mãos e comi. Senti muita raiva de Ugo naquele momento. Comecei a odiá-lo, a culpá-lo por nos abandonar para salvar outras pessoas. Será que ele não sabia que os hunos moravam na casa dele, que a filha, o pai e a esposa dele passavam fome? Será que ele estaria a vinte quilômetros de distância? A mil? Por que não mandava notícias, por que não aparecia? Cheguei a desejar que estivesse morto, então eu caía no choro, rezando para que não estivesse. – Uma noite à mesa, Filippa pediu couve. Essa verdura tinha se tornado uma parte de nossa dieta diária e, por isso, ela sentia falta. Embora eu pudesse entender que ela queria mais do que couve, acho que aquele pedido era o menor de seus desejos. O único que poderia ser realizado. Tessa grudou seus pequenos olhos tártaros nos meus. “Sei onde achar couve. Ainda no chão, num canteiro perto de Tizianello.” Eu respondi: “É uma hora de caminhada para ir e voltar, além do mais estou certa que já se foram, Tessa. Ninguém seria tão idiota a ponto de deixá-las. E, se isso aconteceu, a essa altura outra pessoa já deve ter encontrado. E mesmo que você tivesse forças para fazer uma jornada dessas e ainda encontrasse as couves, por acaso esqueceu que há soldados acampados por toda aquela estrada? Soldados que atiram em qualquer coisa que se move.” Tessa insistiu: “Estarão adormecidos ou bêbados quando eu chegar lá. Sei o que estou fazendo.” Eu respondi: “Não, Tessa, você não sabe e não vou lhe dar permissão para...” Abri chegou à mesa nesse momento, apertando as pontas dos dedos sobre minha mão. Com os olhos semicerrados, assentiu com a cabeça. “Deixe que ela vá.” Antonia faz uma breve pausa e continua a contar: – Tessa foi até Filippa, pegou-a em seus braços, dançou com ela enquanto lhe fazia cócegas, cantando uma canção que ela chamava de “l valzer del cavolo”, a Valsa da Couve. Fazia muito tempo que eu não via minha filhinha dar risadas daquele jeito, jogar a cabeça para trás e gargalhar até chorar. Ela olha para mim e prossegue: – Com o casaco de Abri abotoado por cima do dela, um xale que dava duas voltas sobre o peito, os pés enrolados em farrapos dentro de galochas, uma sacola

P:141

de pano e uma faca no bolso da saia, Tessa partiu para encontrar uma couve para Filippa. Devia ser umas dez horas, talvez mais tarde, quando fiquei na varanda observando aquela silhueta pequena e resoluta desaparecer na estrada branca. Antonia para um instante e logo continua. – “Não havia nem uma raposa lá fora. Tudo estava tão silencioso e corri como o vento pelas trilhas endurecidas entre as árvores, só pegando a estrada nos últimos dois quilômetros. Estava escuro, nuvens baixas escondendo a lua. Mas quando alcancei a curva logo antes de Tizianello, vi que havia uma luz queimando em uma das janelas do andar superior, fumaça saindo pela chaminé. Fui direto até o orto e lá estava, um canteiro delas, parecendo gigantescas rosas congeladas. Caso alguém olhasse pela janela, deitei de barriga no chão e rastejei junto às couves. Primeiro peguei as folhas que haviam se soltado e as enfiei no saco, depois, cortei dois maços. Eram tão grandes que não havia espaço para um terceiro. Arrastando a sacola atrás de mim, voltei a rastejar até as laterais do orto. Quando me levantei, lá estava ele. Estivera me observando, parado, fumando e olhando para mim. A princípio, pensei em correr, mas a sacola estava pesada demais e eu não ia deixá- la para trás. Então pensei em falar, mas não consegui dizer uma única palavra. Quando ele se aproximou e estendeu a mão, pensei que fosse o fim, mas aí percebi que ele estava secando a água fria e a lama das minhas mãos, uma de cada vez, com a parte da frente de seu suéter. Este suéter aqui.” Tocando a frente de um espesso suéter cinza-escuro da Wehrmacht, tão grande e tão comprido que batia na altura de seus joelhos, Tessa me disse: “Ele tirou o agasalho e o pôs sobre mim enquanto murmurava algo, sacudindo a cabeça. Gesticulou para que eu ficasse parada, ergueu a mão e depois um dedo. ‘Un Augenblick. Um momento’, ele disse, correndo até a casa. Segundos depois, ele saiu com isso aqui. Olhe só, signora. Não vai acreditar. Eu mal posso acreditar. Olhe. Guardate, guardate.” Ela não parava de repetir, com lágrimas triunfantes escorrendo de seus olhos oblíquos e tártaros. Eu a ouço atentamente. – De dentro do saco, Tessa retirou uma peça de pão preto, duro e reluzente como uma pedra polida, mas, ainda assim, pão. Pão de verdade. Depois tirou dois jarros altos e finos com damascos, selados com parafina. Um tijolo de manteiga branca embrulhado em um pedaço de pano. Será que aquele soldado tinha voltado de uma licença? Teria sido recrutado recentemente, acabado de chegar às colinas da Toscana depois de receber da mãe ou da esposa essas manifestações caseiras de amor? Como era estranho, pensei, tocando na cera dos vasos, comida da Alemanha para alimentar uma família da Toscana. Lembro- me de ter implorado a Tessa para ficar quieta, dizendo-lhe que ela acordaria

P:142

Filippa e sabe-se mais quem, e mandei que tirasse as botas e me deixasse aquecer seus pés com minhas mãos. Perguntei se não seria melhor ela tomar uma xícara de chá de sálvia antes de dormir. Porém Tessa não conseguia me ouvir. Como se fosse um troféu, ela ergueu a manteiga bem alto sobre sua cabeça, um prêmio que ela trouxe em segurança noite adentro, um presente do inimigo conferido com misericórdia e, certamente, com uma boa dose de admiração. Sempre achei isso. – Os nove hunos que moravam na villa iam e vinham, em geral permanecendo em Florença durante dias, uma semana. Às vezes, o caminhão de suprimentos parava para fazer uma entrega quando estavam fora e eu era prudente com minha ladroagem, esperta na hora de esconder. Uma vez, quando voltaram de Florença ou de outro lugar qualquer, o coronel não estava mais com eles. Outro oficial, um que eu nunca havia visto antes, parecia estar no comando. Não falava italiano e nossos encontros esparsos e breves foram conduzidos com gestos. Todos os danke schöns e os bittes, todas as delicadezas, desapareceram com a chegada dele. Então compreendi que o coronel tinha uma relação paternal com seus homens, além de ser seu comandante. Os soldados que deixou para trás entraram em decadência. Seria uma rebeldia adolescente, agora que o coronel não estava mais por perto? Talvez. Mais do que isso, era a vez de sofrerem com o fim das ilusões. Os hunos estavam perdendo. – Assim que acabou a ameaça de geada e que uma enxada conseguiu penetrar na terra, nós plantamos. Certa manhã, eu semeava fileiras de ervilha e alface, quando ouvi um estranho mas familiar Buongiorno, signora. Ergui os olhos e vi nosso fattore bem ali. O pai de Biagio. Chamava-se Felice. Felicidade. Ele, sua esposa, chamada Annarosa, e Biagio estavam entre aqueles que vieram viver conosco na villa até que os hunos chegaram e os expulsaram, naquele primeiro dia de dezembro. Quando voltaram à sua fazenda, Felice começou a me contar, descobriram que tinha sido revirada, saqueada, queimada, estava invivible. Impossível de se viver nela. Os três fugiram para algum lugar no leste, acho que Le Marche, onde tinham família. Porém, lá estava ele naquela manhã no final de março, o querido Felice, já se curvando para assumir o meu trabalho, enfiando as sementes na terra do seu jeito, falando com uma voz suave e tensa. “Queria que Annarosa permanecesse um pouco mais com a família dela, mas ela voltou comigo. Quando senti o cheiro da primavera no ar, não pude me manter mais tempo distante, e Biagio está com quase 15 anos agora, signora. Espere até vê-lo. Vamos conseguir plantar dois, talvez três campos de trigo, quanto conseguirmos,

P:143

nós dois. E depois cuidaremos dos vinhedos e das oliveiras que precisam ser podadas, e Annarosa poderá ajudá-la com a horta. Eu não conseguia mais ficar longe. Preferia morrer aqui do que longe e não ligo a mínima para os hunos. Ouvi falar de seu pai, signora, ouvimos e...” Antonia faz uma pausa e prossegue: – Quando ele começou a chorar, chorei com ele, nós dois acocorados na terra escura e úmida. Era primavera, Felice estava ali comigo e semearíamos. Talvez vivêssemos o bastante para colher e a vida voltasse a ser parecida com o que tinha sido antes. De um saco que carregava nas costas, Felice retirou um pequeno queijo embrulhado em papel e estendeu-o para mim. “Trouxe isto. Da irmã de minha esposa, signora. Feito antes da guerra.” Tessa, Abri, Battista, Filippa e eu ficamos sentados na terra dura do lado de fora do abrigo onde se fazia vinho. Battista cortava pedaços de queijo e nos oferecia com a faca. Fantasmas silenciosos, ficamos sentados ali, encostados na velha cabana de madeira, fechando os olhos para apreciar a glória daquilo, apertando os farelos que caíam nas palmas de nossas mãos, chupando nossos dedos. Ainda posso sentir o sabor daquele queijo feito com ervas silvestres, terra, rocha, sol, a poeira do trigo recém-cortado, rebanhos molhados de chuva, fumaça de lenha de carvalho, tudo através da minha boca. Ainda sinto. Às vezes sinto. – Contei para você que a mãe de Biagio se chamava Annarosa? Um lindo nome. Uma vez por dia, Abri e eu a procurávamos, tentávamos ajudar a consertar seu casolare. É a casa onde Biagio e Giorgia moram hoje em dia, sabe. Na maioria das vezes inutilmente, trabalhamos com Annarosa, o ar fresco e verdejante balançando as cortinas chamuscadas contra os estilhaços das vidraças, enquanto varríamos e esfregávamos. Eles se recusaram a dividir os aposentos próximos à cozinha conosco, mesmo depois de termos implorado a Annarosa e Felice e de lhes ter dito que os hunos não ligariam, nem perceberiam. Enquanto tivessem água, Felice falou, podiam se virar. Lavavam panelas, roupas e a si mesmos em um velho tanque de mármore a céu aberto, naquilo que havia sido a cozinha, e prepararam camas em um cômodo que ainda tinha teto. Annarosa cozinhava em um buraco que abrira no quintal. Estávamos em abril. Certos acontecimentos em junho fariam com que Felice mudasse de ideia sobre viver na villa. Antonia respira fundo e prossegue: – Com o início da produção do orto e a chegada regular de suprimentos dos hunos, a fome foi substituída por outro pesadelo: a selvageria crescente de nossos hóspedes. Os hunos deixaram de tomar banho e de colocar a roupa suja

P:144

empilhada no chão de seus quartos, para ser lavada. Depois das manobras, ou seja lá quais fossem suas ocupações durante o dia, eles voltavam para a villa, abriam as túnicas e cortavam o gargalo das garrafas com suas facas; era mais fácil do que usar um saca-rolhas. Mas o passatempo preferido deles era atirar. No chão, nas paredes, nas pinturas, nos espelhos. Nas sombras. Mais de uma vez, um no outro. Como se corressem o risco de se transformar em homens, caso não praticassem a desumanidade, os hunos davam disparos com as pistolas. Às vezes, eu me perguntava se não cansariam de ser diabólicos ou de interpretar o papel de diabólicos, mas isso nunca aconteceu. Quando se dignavam a deixar o bordel ou seus aposentos para ir sentar-se à mesa, o fedor era insuportável, a nódoa de lã encardida sobre o corpo não lavado. Porém as botas estavam sempre reluzentes. Passavam horas sentados com pedaços de pano e latinhas de graxa e mais uma outra com algo para limpar o metal das fivelas. Fileiras de medalhas, rostos barbeados, cabelo cheirando a suor, arrumado com água. Brutamontes animalescos que estavam perdendo a guerra, nada disfarçava quanto eram perversos. – Era junho. Os Aliados haviam invadido a Europa pela Normandia, os americanos estavam subindo a península a partir da Sicília e, depois de derrotar os hunos impiedosamente, os russos avançavam pelo leste. Quasi finito, quase no fim, dizíamos uns para os outros com o olhar, um sorriso furtivo. Quasi finito. Antonia retoma seu relato: – Enquanto isso, o orto prosperava. Tessa, Abri e eu colhíamos ervilhas, alface, os primeiros feijões, cebola, abobrinha duas vezes por dia e, junto com os frutos e as verduras silvestres, que se somavam aos alimentos vindos pela estrada branca, resultado de sabe-se lá que tipo de vilania, acho que ficamos um tanto atordoados pela fartura, pelo fato de podermos voltar a nos dedicar a cozinhar e assar de verdade. No nosso modo de agir, havíamos nos adaptado à vida com os hunos, embora não em nosso sentimento. Sob o novo comando, uma de nossas tarefas diárias era limpar a cabana, guarnecê-la com comida, ver se o barril de vinho estava reabastecido. Eu odiava botar os pés no bordel dos hunos, mas o trabalho era bastante simples e tomava menos de uma hora. Assim que a villa estava mais ou menos arrumada, eu quase ansiava pela caminhada de ida e volta. Às vezes Abri e Tessa me acompanhavam, nas na maioria das vezes eu ia sozinha, deixando Filippa sob seus cuidados ou com Battista. Ela faz uma breve pausa e continua: – Naquele dia, já perto do final de junho, eram mais ou menos onze da manhã e

P:145

estava bem quente. Lembro-me de agradecer aos deuses pelo calor do sol em meu rosto enquanto descia a colina. Pousando os cestos, tirando o casaco e amarrando-o em volta da cintura do vestido, eu me sentia bem. De certa forma, bem. Não estava na metade do caminho quando ouvi Tessa gritando atrás de mim: “Aspetta, aspettami.” Sentei-me nas pedras por um momento, enquanto ela chegava, fomos juntas para a cabana e começamos a trabalhar. Tessa esfregando o chão, enquanto eu mudava a roupa de cama, resmungando que os hunos, sujos, deitavam-se com suas amantes, elas também provavelmente sujas, sobre lençóis que esfregávamos até que nossas mãos sangrassem e que deixávamos secar sobre arbustos de alecrim. Eu estava distraída, pensando na ironia da situação, quando Tessa ouviu primeiro a chegada deles. Parecia o barulho de jipes ou caminhonetes, talvez uma motocicleta. Na estrada do riacho. Estranho acontecer àquela hora, a não ser que estivessem transportando suprimentos ou pessoas para a villa. Fomos para a porta para ver. Os carvalhos com a folhagem de verão escondiam o que era e quem era, mas as vozes, os gritos bêbados, nos alcançavam com clareza. “Tessa, corra. Vá. Saia pela porta dos fundos e vá para o bosque, até a trilha dos caçadores. Espere por mim lá. Você sabe o que fazer, e como se tornar invisível. Sabe que consegue. Vá, Tessa. Agora.” Sacudindo a cabeça, o desafio cintilando como adagas em seus olhos, ela disse que não ia me deixar. Mas eu insisti: “Sozinha, posso dar conta deles. Corri. Corra.” Eu a vi partir pela trilha dos pinheiros e então me virei e vi que havia seis deles. Garrafas de uísque em uma das mãos, pistolas nas outras, chamavam aos berros pelas garotas de programa que eles imaginavam que estariam ali às onze da manhã. “Liebchen. Schöne mädchen. Querida. Menina linda.” Antonia prossegue: – Enquanto entravam, não fiz qualquer movimento, a não ser desamarrar o casaco da cintura e deslizar os braços pelas mangas. Comecei a abotoá-lo. Fiz tudo isso devagar, olhando para cada um deles, desafiando-os. Dando tempo para Tessa. A princípio ficaram emudecidos, talvez pela minha audácia. Depois um deles se aproximou e então os outros, me cercando, me dizendo palavras lascivas, oferecendo-me as garrafas, passando as mãos abertas nas minhas coxas, em meus seios. Um deles ficou próximo da porta. Dali, ele gritou algo que se fez ouvir sobre a balbúrdia geral e gritou de novo. Deu um tiro no ar para silenciá-los e repetiu as palavras novamente. Dessa vez, quase como um sussurro. Acho que lhes disse para me deixar em paz, que eu já estava comprometida com um dos oficiais. Foi alguma coisa assim, pois os demais desfizeram o círculo à minha volta, voltaram para as garrafas, se jogaram nas camas, baixaram as pistolas o bastante para acenderem cigarros. Quando fechei o último botão do casaco, olhei para o homem que os acalmara; fiz uma

P:146

saudação com a cabeça e saí porta afora. Assim que tive certeza de que estava fora de seu campo de visão, corri. Atravessei a campina até a trilha rochosa pelas colinas, subindo ao pé das montanhas onde os lavradores caçam cervos. Calculando a distância que Tessa já deveria ter coberto, pensei em interceptá-la. Chegaria à primeira bifurcação na trilha dos pinheiros antes dela. “Corri, corri da Tessa. Corra para Tessa”, eu dizia para mim mesma, ofegante. Mas minha mente gritava outras ordens, fazendo-me vislumbrar cenas borradas, como um filme que estivesse sendo projetado na velocidade errada. Ainda assim corri, até que alguma força, alguma compulsão, me tirou do caminho e me levou para os bosques fechados onde vivem os javalis. Só alguns pedaços de chão estavam suficientemente gastos para que eu atravessasse a densa vegetação. Retornando à trilha, dessa vez não fugi da cabana, mas atravessei a campina que conduzia até ela. Será que eu sabia? Era Tessa arranhando, xingando, cuspindo nos hunos? Foram essas as imagens que me fizeram correr a toda a velocidade pelas campinas? Por cima do som feroz das batidas do meu coração eu ouvia as gargalhadas deles ao me aproximar do abrigo. Gargalhadas bárbaras e cruéis. Antonia respira fundo e continua: – Eu os vi de pé, perto da porta. Aí eu a vi. Tessa estava nua, a não ser pela blusa aos farrapos, empalada sob os seios pela ponta de uma baioneta, pendurada na porta do abrigo. O troféu do dia. Menor do que um filhote de cervo. Formando uma espécie de fila, os homens esperavam sua vez. Ajoelhei na terra e fiquei balançando, mordendo os dedos, olhos fechados para não verem mais o que haviam visto. Se eu mantivesse os olhos fechados, poderia fazer com que a cena desaparecesse. Até agora, ela não desapareceu. Por que ela voltou à cabana? Eu sei o motivo. Ela queria ter certeza de que eu estava em segurança. Tessa voltou por minha causa. Ela faz mais uma pausa antes de continuar: – O soldado que havia mandado que se afastassem de mim estava aos berros, pedindo que os homens parassem, arrancando um e depois outro para longe do corpo morto de Tessa. Ele correu rumo à estrada do riacho, mas eu sabia que voltaria. Sabia e, ainda agachada, esperei-o. Pareceu levar muito tempo, mas esperei e então eu o vi. Sem pistola dessa vez, ele apontava outro tipo de arma. Metralhou os homens, deixou-os esparramados sobre as pedras. Vi o sangue de Tessa escorrer por suas coxas e gotejar sobre aquela escória. Então o soldado retirou a baioneta e ergueu o corpo de Tessa em seus braços. Juntos, nós a envolvemos em um dos lençóis perfumados de alecrim destinados às camas dos hunos. Sentei-me com Tessa enquanto o soldado foi até o jipe. Dirigindo sobre as pedras, passando pelos arbustos, ele parou perto da porta da cabana. Pusemos

P:147

Tessa na traseira e ajoelhei-me a seu lado, abraçando-a. Cantarolei a música que ela inventara para Filippa. Cantei a Valsa da Couve. – O soldado e eu levamos Tessa para o abrigo do vinho. Abri não estava por perto, mas Battista e Fillipa caminhavam em nossa direção, vindos da villa, até que eu gritasse para que ele levasse minha menininha de volta para casa. Ele hesitou, depois deu meia-volta, pondo Filippa sobre os ombros. O soldado ficou de guarda junto à porta até que eu retornasse com óleo, roupas limpas e farrapos. Não havia velas e o único sabão disponível era aquele feito com gravetos e azeite. Lavei-a, passei óleo em sua parca carne, vesti-a, trancei-lhe o cabelo. Embrulhamos seu corpo em uma colcha e eu entrei com ela pela porta da cozinha, e deitei-a na cama. Fiquei com Tessa, à espera de Abri. Em algum momento durante a vigília, o soldado se foi e nunca voltei a vê-lo. Quem era? Por que fez aquilo? Quisera eu que os deuses me brindassem com mais um dia de vida cada vez em que pensei nele. Acho que o que aconteceu foi que ele chegou ao limite de sua resistência com o que viu. Talvez pelo que tivesse feito. Ele se transportou para um lugar onde não era mais um soldado da Wehrmacht, mas simplesmente um homem. Um bom homem. Será que a lembrança que tenho dele amenizou o ódio que sinto pelos alemães? De vez em quando, sim. Até que ouço Tessa cantar para Filippa, dançando pela cozinha como naquela noite. Até esse momento. Antonia respira fundo e prossegue: – E nenhum de nós voltou a ver Abri. Pelo menos depois daquela tarde em que ela retornou da casa de Annarosa. Eu não contei a ela o que aconteceu, inventei que Tessa tinha sido vítima de fogo cruzado. Sem nada a dizer, sem gritos, ela curvou-se para beijar a filha. E então partiu. Depois da guerra, diziam que ela tinha subido as colinas para lutar, que ficou por lá, morreu por lá. Acredito nisso, mas não sei. Nunca me arrependi de ter mentido para Abri. Nunca. O mesmo não acontece com outra de minhas mentiras. Também não contei a verdade para Battista, nem para mais ninguém até que anos depois revelei tudo para Ugo. E, bem depois disso, contei para Biagio. Não quero que as pessoas saibam, ao mesmo tempo não gostaria que o que aconteceu seja esquecido. De forma alguma. Ela continua o relato: – Battista e eu enterramos Tessa ao lado de Marco-Tullio; foi mais Battista do que eu. Um homem desacostumado a empunhar uma pá, ele preparou a cova, juntou flores, lamentou a falta de um caixão. Chorou. Nem mesmo quando das mortes

P:148

de Tancredi e de Maria-Luce eu o vira desabar naquele tipo de agonia que ele demonstrou por Tessa. Enquanto eu o observava, palavras do passado, olhares, coisas ditas e não ditas formaram outro desenho. Seria Battista o pai de Tessa? Será que ele e Abri tinham sido amantes e por isso Abri sofreu tanto com a morte de Maria-Luce? Será que Abri se arrependia de ter traído a confiança de uma mulher que fora como uma mãe para ela, uma mulher que nunca sequer perguntara o nome do pai de seu filho? Ou Maria-Luce já sabia? Quantas mentiras e segredos foram levados para o túmulo? Eu a escuto respeitosamente. – Nunca soube o que foi feito com os homens mortos na cabana, nem se os oficiais que moravam na villa chegaram a saber do “incidente”. Nenhum deles falou sobre o que aconteceu aquela manhã, nem comigo nem com mais ninguém, até onde sei. Mas se houvesse a suspeita de que os Partigiani eram culpados das mortes, haveria represálias. Dez italianos para cada alemão. Era a regra. Porém, como se nada tivesse acontecido naquela manhã de junho na cabana, não se falou nada, não houve ameaças, nem vingança. Os hunos e nós; como eu disse, acho que havíamos virado fantasmas naquela altura. Eu caminhava até a cabana todas as manhãs, procurava algumas flores silvestres para colocar naquele lugar da porta, e elas sempre permaneciam intocadas quando eu voltava no dia seguinte. Não sei se o abrigo foi usado pelos hunos depois disso. Acho que não. Ninguém voltou a me pedir para fazer aquele trabalho no lugar, talvez sabendo que eu recusaria. Antonia respira fundo e prossegue: – Foi nessa ocasião que Felice, Annarosa e Biagino vieram morar na villa, em nossa companhia. Depois que Tessa morreu. É interessante pensar em nossas idades na época. Tessa tinha 16 anos. Abri estava com 33. Filippa, 5. Biagio, 15 anos, e eu, 24. Os mais velhos da tribo eram Annarosa e Felice, com 45 anos, e Battista, com 63. Enquanto Antonia fala, seu rosto, seus gestos, as linhas de seu corpo se transformam. Primeiro, tornam-se mais idosos, depois voltam às condições atuais. O mais curioso é que em boa parte do tempo ela parece estranhamente uma menina. Como a Antonia de 24 anos que refez as tranças de Tessa. – Foi no dia em que deixaram Castelletto. No início da manhã, antes do alvorecer do dia em que os hunos partiram. Era 11 de agosto de 1944, uma semana depois de Florença ter sido libertada pelos Aliados, o que foi um sinal claro para que

P:149

deixassem Castelletto, a Toscana e provavelmente a Itália. Mas eu não sabia disso naquela ocasião, enquanto ouvia imóvel a balbúrdia da partida dos hunos. Os gritos, os motores se aquecendo, botas esmagando pedras e passos pesados escada acima e abaixo. Eu sentia o cheiro deles. Sempre sentia o cheiro. Ainda há ocasiões, quando caminho pela dispensa ou estou lá em cima na mansarda, em que acho que sinto algo, um bafo terrível vindo deles, rodopiando, corrompendo. Antonia prossegue: – Filippa tinha tido febre na noite anterior, e nós duas havíamos nos recolhido logo depois que eu servi a refeição dos hunos e deixei tudo arrumado. Dormindo ao lado dela, com seus dois braços gorduchos envolvendo um dos meus, eu sentia seu rosto quente sobre meu ombro. Levantei-a e carreguei-a, ainda adormecida, as pernas balançando na altura da minha cintura, até a bacia com água no parapeito da janela. Lavei sua cabeça, seu rosto, seu peito orgulhoso, e voltei para a cama com ela. Era o segundo ou talvez o terceiro dia da colheita do trigo e ouvi Felice, Annarosa e Biagio se prepararem para partir para os campos, e também Battista, que os acompanharia naquele dia para ajudar. Por saberem que Filippa não estava bem, eles se movimentavam sem fazer barulho, e num silêncio ainda maior deixaram a casa. Eu sempre empurrava uma cômoda para frente da porta, antes de Filippa e eu irmos para a cama. Naquele momento, depois de um único golpe, a cômoda tombou diante da porta e lá estava ele. E ainda fez pose. Fechou a porta. Era Herkert. Aquele que viera falar com o coronel, o que me olhara com olhos de moribundo naquela noite no salone, meses antes. Occhi azzurri. Olhos azuis, da cor do céu de maio. Cachos louros na cabeça. Ele me amordaçou com algum pano sujo, amarrou meus punhos nas colunas da cama, pegou Filippa, já tomada por aquela espécie de terror silencioso e atordoado, e amarrou-a em sua cadeirinha, prendendo as cordas à maçaneta da porta de modo que ela se sentava inclinada para a frente, tensionando-se como um cachorrinho com coleira curta. Ele pegou um lenço nojento do bolso e a amordaçou, e eu percebia que ela estava com dificuldades para respirar. Então ele tomou o que queria de mim. Ergueu-se e me jogou da cama para o chão, então me prendeu com os braços para trás, garantindo minha imobilidade, amarrando-me aos pés da cama. Caminhou até a porta, bateu na cabeça de Filippa, ainda silenciosa a não ser por sua respiração entrecortada. Rindo, ele derramou a água da bacia sobre ela, rindo mais ainda quando ela a engoliu e se engasgou, observando-a até a cabeça dela tombar e ela parar de lutar. Endireitando as roupas, ele ficou parado ali, olhando para ela. Ele parecia bastante saciado, depois de aspergir sua semente e matar uma menininha tão pequena sem sujar as mãos. Então voltou-se para mim, tirou a pistola do coldre, mirou, a mão acompanhando o movimento de sua risada sanguinária. Atirou.

P:150

“Auf wiedersehen, meine liebe. Adeus, meu amor.” Antonia faz uma pausa, respira fundo e prossegue: – Tudo o que consigo me lembrar daquele primeiro instante depois que ele partiu foi de ter gritado para Filippa, mesmo amordaçada: “Guardami. Guardami, amore mio, guarda la mamma.” Uma vida inteira se passou antes que ela erguesse a cabeça e abrisse os olhos, só o branco aparecendo. Eu não parei de balbuciar: “Olhe para mim, meu amor. Olhe para a mamma.” Até hoje, quando vejo Filippa, especialmente quando ela está do outro lado do quarto ou acaba de passar pela porta, vejo minha menininha de 5 anos, vejo seus olhos revirando daquele jeito. Ouço seu grito silencioso. E às vezes, quando olho para Luce, eu... Já percebeu o tom de azul dos olhos de Luce? São azuis como o céu de maio. – Nunca saberei se Filippa perdia a consciência, de vez em quando, ou se permaneceu alerta durante todas aquelas horas que se passaram. Nove horas. Eu desmaiava, voltava a mim e a via ali, balançando-se, pequenina, da forma com que as cordas permitiam. Acho que ela gemia, ou quem gemia era eu. Talvez fosse a forma com que conseguíssemos nos reconfortar, uma a outra. Lembro- me de muito pouco. Sabia que Filippa ainda estava viva e acreditava que meus murmúrios, meus pedidos incompreensíveis a manteriam assim. Em algum momento, fiquei bem consciente, a ponto de sentir a dor na minha perna, o sangue escorrendo, e consciente o suficiente para tentar compreender o que acontecera. Nem tanto o que, mas por quê. Aquela visita teria sido uma vingança rápida contra a mulher que o excluíra dos confortos da mesa dela naquela noite, quando ele viera falar com o coronel? Que talvez o excluíra de sua cama? Foi o que ele pensou? Ou os planos dele eram ainda mais perversos? Era Filippa quem ele queria? Acho que sim. O prazer lascivo de assassinar uma criança e, para garantir ainda mais sofrimento, fazê-lo diante do olhar da mãe. Tenho certeza, sempre tive, de que Herkert pretendia matar Filippa, e acreditava que tinha conseguido. Ele não tinha a intenção de me matar, desejava me manter viva para sofrer e assistir à morte de minha filha. Antonia faz uma breve pausa e diz: – Lembra daquela primeira noite, quando você veio para o jantar, quando Filippa e Luce se sentaram conosco perto do fogo? Lembra o que eu disse sobre o impulso dos hunos para a brutalidade? Suas obscenidades têm um toque intelectual. Uma bestialidade erudita. Anos depois, eu li que Mengele requisitava a presença de um violoncelista que tocasse Schumann em seu laboratório, enquanto ele se ocupava em dissecar pequenos cadáveres de gêmeos que

P:151

acabavam de ser mortos. Deve ter sido um descuido ele não ter convidado a mãe das crianças para observar. Ela prossegue: – Mas como Herkert sabia onde me encontrar? Era como se meu nome estivesse escrito na porta e ele soubesse encontrar o caminho pelo labirinto do vilarejo e chegar até lá. Como ele sabia? Será que ele estava de conluio com os outros oficiais, que o conduziram até ali? Talvez tenham se passado dias inteiros, nos últimos sessenta anos, em que não revivi aquela manhã. Mas não foram muitos. – Foi Biagio que nos encontrou. Sempre se anunciando antes de chegar à villa, eu o escutei gritando para mim, vindo do caminho dos carvalhos. “Signora, signora. Ho trovato funghi. Achei cogumelos.” Repetidas vezes, lancei meu corpo contra a cama, mas é claro que não fiz barulho suficiente para indicar onde eu estava. Esperei, torcendo para que ele passasse pela cozinha, pela despensa, e finalmente isso aconteceu. Ele bateu na porta. Bateu com mais força, gritou. Arrombou a porta. Quando ele viu que Fillipa estava amarrada nela, ele se ajoelhou. Biagio sabia que a melhor forma de me ajudar era salvando Filippa, e a primeira coisa que fez foi beijá-la, conversando baixinho com ela enquanto afrouxava as cordas, desamarrava a mordaça de sua boca e a tomava nos braços. Filippa desabou no colo dele como uma boneca de trapos com o pescoço aberto. “Tutto va bene, signora, tutto va bene”, ele me disse enquanto a colocava na cama, esfregava os punhos dela, dava-lhe colo e a balançava, beijando-a, cantarolando, fazendo qualquer coisa para que a menina produzisse um som. Ela finalmente chorou. Com Filippa ainda em seus braços, ele se aproximou de mim e começou a desfazer os nós que me prendiam. Foi quando Annarosa chegou. Antonia faz uma breve pausa e continua: – Ela pegou Filippa no colo e deu ordens ao filho: “Aqueça água, despeje naquela moringa, traga sabão, óleo, lençóis que estão dentro do armário e vá procurar seu pai. Onde está o signor Battista?” Annarosa fez Filippa se sentar na cama, pôs o ouvido em seu peito, prestou atenção, contou os batimentos, disse para ela respirar fundo, mais fundo ainda, enquanto dizia, “Brava, bravissima”. Lembro que pediu a Filippa que lhe contasse uma história para poder ouvi-la falar, perceber a pronúncia das palavras. Enquanto Filippa contava a história, Annarosa a lavou, passou-lhe o óleo carinhosamente, vestiu-a com as roupas que eu deixara dobradas no peitoril da janela, na noite anterior. A essa altura, Felice e Battista haviam chegado e me desamarrado, levaram-me para a cama para que eu pudesse tocar em Filippa, conversar com ela enquanto Annarosa terminava de

P:152

arrumá-la. Porções de cachinhos negros em contraste com a palidez de seu rosto, olhos de milhares de tons de azul que se voltaram para me olhar. Filippa colocou a mão em meu braço. Ela respira fundo e segue: – Foi Felice quem disse que meu ferimento era só de raspão. Ao lavar minha perna, desinfetá-la com grapa, ele me ergueu para que eu desse um gole num copinho com essa bebida. Então sentou-me em uma cadeira com as pernas estendidas enquanto ele e Biagio trocavam os lençóis. Consigo lembrar cada detalhe de seus cuidados para com Filippa e comigo naquela tarde. Lembro-me, principalmente, de suas vozes. Ninguém fez perguntas. Nem Annarosa, quando depois me lavou e ajudou a vestir uma camisola branca e limpa. Alimentou-me com chá de sálvia e um ovo. A necessidade de ajudar era maior do que a de saber o que havia acontecido. Afinal de contas, eram todos toscanos. – O mal-estar perdurou entre nós. Quanto aos outros, eu me comunicava com acenos de cabeça e sorrisos sem vontade. Já Filippa gritava se qualquer um além de mim ou de Biagio a tocasse. Eu mantinha minha filha em meus braços, não importando o que mais eu tinha forças para fazer. Mesmo quando eu e ela conversávamos, era apenas naquela linguagem silenciosa dos desolados, bastando para nós estarmos juntas. Passou-se uma semana, duas. Filippa ainda evitava a companhia dos outros, exceto a de Biagino, grudando nele como fazia comigo, escondendo o rosto em seu ombro. Ele a levava até o riacho ou até o pomar, colocava-a na grama, tecia guirlandas de flores silvestres para seus cabelos. Ela sorria apenas para ele, cantava baixinho para a sua sopa, em vez de tomá-la. Dormia. – Depois de quase onze meses de ausência, Ugo apareceu em casa no dia 12 de setembro. Em outras palavras, foi um mês depois da visita de Herkert a meu quarto que se deu a volta de Ugo. Eu já sabia que carregava o filho de Herkert. Sabia em meu coração. Sempre sabemos. Eu acho. Se Ugo não tivesse voltado logo depois do ocorrido, será que a vida teria assumido um caminho diferente? Nos dias entre Herkert e a chegada de Ugo, imaginei uma série de situações: o que eu lhe diria, o que esconderia; ele voltaria e me encontraria grávida? Com um bebê nos braços? Mas, quando eu o vi, assim que o vi, eu soube o que faria. Antonia faz uma breve pausa e prossegue:

P:153

– Cabelo desgrenhado, mais grisalho, magro e alto como um velho e espinhoso peixe, ele era belo. Ugo era belo e até no momento em que corri em direção a ele, pelo caminho dos carvalhos, com os cabelos soltos esvoaçando ao vento quente de setembro, os pés descalços batendo nas pedras brancas, eu já sabia o que faria. E foi o que fiz. Ugo debruçou-se sobre o catre na cozinha, onde Filippa andava propensa a passar seus dias. Ela abriu os olhos. Olhou-o, afastou depressa a coberta, estendeu os braços. Segura no refúgio do peito dele, ela cobriu o rosto de Ugo com beijos. Em cada centímetro, ela distribuiu beijinhos com seus lábios ressecados, cor de cereja, parando de vez em quando para olhar fixamente para o rosto dele, antes de retomar a demonstração de amor. Colocando as mãozinhas morenas em sua face, ela ordenou: “Mai più, papà. Non puoi lasciarmi mai più. Nunca mais, papà. Não pode me deixar de novo.” Ele respondeu: “Mai, Filippetta. Nunca.” Ela disse: “Você tem que dormir comigo e com Mamma. E eu tenho que ficar no meio.” Ugo prometeu: “Você vai ficar.” – Contei a Ugo sobre Herkert. Queria que ele me defendesse. Não que fosse atrás de Herkert e o matasse, ou algo assim. Queria mais. Queria que ele defendesse meu bom caráter, coisa maior do que minha inocência. Queria que Ugo fosse meu paladino, atravessasse o fosso usando minhas cores. Sim, acho que é isso. Não queremos todas? Assim como queremos piedade. E o que Ugo queria? Nunca disse em voz alta. Sem palavras, o que ele implorava era a minha piedade. A piedade é um atributo da mulher, você sabe. Mais do que seios arredondados, ancas fortes e belas curvas como em uma pintura de Ticiano, o que um homem deseja é a piedade. E é a piedade o que um homem não pode conceder. Como se eu tivesse matado Tancredi, seduzido Herkert, incitado a guerra e toda a consequente selvageria, Ugo queria que eu o reconfortasse. Sim, silenciosamente ele exigiu minha piedade. Se eu a negasse ou pedisse a dele, ele teria se afastado. Mais cedo ou mais tarde, ele teria. Talvez ele tenha feito isso de qualquer maneira. As ovelhas permanecem. Os carneiros perambulam. Não ouso interrompê-la. – Quando se aproximou a hora do nascimento do bebê, Ugo desejava que nós contássemos uma linda história, disséssemos que o papai de verdade era um belo soldado louro que morreu na guerra. Eu não podia aguentar aquilo. “Você é o pai dela. Faça com que isso se torne verdade.” Luce nasceu em 28 de abril. Qualquer um que fizesse as contas a partir da volta de Ugo até o nascimento dela poderia tranquilamente acreditar que ele era o pai. Para os que cochichavam que meu filho havia sido concebido na manhã da partida dos hunos, o tempo decorrido também permitia que achassem que aquilo era verdade. O que não se

P:154

podia negar era que a pequena Luce era igual a mim, assim como Filippa. “Você é o pai dela. Faça com que isso se torne verdade”, implorei a Ugo muitas vezes, tentando-o com a piedade que ele tanto desejava. Minha piedade foi o preço pela mentira de Ugo. – Nossa vida no pós-guerra foi dedicada a restaurar as fazendas e reerguer as antigas casas de pedra. O número de homens de Castelletto que morreram em combate, em campos de prisioneiros de guerra dos alemães ou lutando pela Resistenza foi alto: onze mortes. No quadro geral de cinquenta e cinco milhões de vítimas, pareceria um pequeno número? Não quando se compreende que éramos uma família que perdeu onze filhos, além de Marco-Tullio. Com o passar do tempo, homens, mulheres e crianças que sobreviveram voltaram para casa e, cada vez que isso acontecia, era uma grande alegria. Mais um cordeiro estava a salvo junto ao rebanho. Os campos, os vinhedos e os pomares já estavam praticamente em ordem na primavera de 1946. Novos estábulos foram construídos para os animais que Battista e Ugo começaram a adquirir, embora o trabalho na reconstrução das casas dos lavradores levasse quase uma década para ser concluído, o que fez com que certas famílias residissem conosco na villa até 1955. Talvez por mais tempo ainda. Antonia prossegue: – Durante aqueles anos, Felice foi o herói. A terra, a reconstrução, o conforto aos lavradores, tudo prosperou sob sua administração, e ele mantinha Biagio sempre a seu lado. Na companhia de Battista e Ugo, foi Felice que começou, a princípio lentamente, a renegociar os acordos com os meeiros, a assumi-los como diaristas que deveriam receber salários mensais, transformando Castelletto em uma das primeiras grandes propriedades a abolir o sistema de mezzadria. Para Ugo e para mim, foi uma época de alegria restrita. Sofrendo os efeitos da guerra, permanecíamos alerta, dormindo com as botas calçadas, com armas sob os travesseiros. De certo modo, faço isso até hoje. Ainda acordo no meio da noite achando que ouvi alguém falar com a boca cheia de sangue: Bun jhorn’o, siiiignorrah. Ela faz uma pausa e continua: – Luce foi um bálsamo para as inevitáveis feridas de Filippa, uma criatura pequenina e bela para amar e cuidar. Naquele tempo, eu me perguntava, e continuo me perguntando, se Filippa, em meio a sua tristeza controlada com tanta coragem, seria capaz de sentir que a pequena Luce também tinha sido marcada de alguma forma. Desonrada. Será que Filippa sussurrou seus segredos para o

P:155

bebê? Eu costumava achar que sim e queria que ela fizesse o mesmo comigo, para que eu pudesse reconfortá-la. Em vez disso, Filippa se tranquilizava ao tranquilizar Luce. Eu tentava o tempo todo esquecer: Filippa amarrada à cadeira; os olhos de Herkert; Tessa. Zangada com Ugo por ele ser como era, sombrio, solitário, por retomar suas viagens mais uma vez. Eu já conseguira muita coisa com sua mentira, como eu poderia pedir mais? O que me fazia achar que eu merecia? No começo, Tancredi vivia entre nós. Agora havia Herkert, que chegara para ficar. Eu a escuto com cuidado. – Luce devia estar com quase 2 anos e Filippa com 8, quando certa manhã Ugo se preparava de novo para uma viagem. Embora àquela altura ele já tivesse me revelado sobre seu trabalho para a OSS, seu envolvimento antes e depois da guerra, e tivesse me explicado alguns projetos dos quais ele continuaria a participar, suas viagens eram uma espécie de deserção, fuga, desdém em relação a mim. Naquela manhã em especial, seu cabelo ainda estava úmido depois do banho, ele segurava uma camisa de seda branca e virou-se para mim, pedindo que eu o acompanhasse. Como eu nunca havia ido além de Florença, fiquei atordoada e em estado de choque. “E as crianças?” Ele disse que Annarosa poderia ficar com elas. Então perguntei para onde ele ia. Ugo respondeu: “Para Paris. Tenho alguns negócios para resolver, mas não tantos que nos impeçam de ficar juntos, principalmente à noite.” – Destruída, melancólica, com as marcas da guerra ainda em seu rosto, Paris exibia cansaço e fascínio com a mesma classe, e eu admirava a cidade mais do que gostava dela. Seguimos o mapa particular de Ugo. Enquanto caminhávamos por ruas estreitas, passávamos pelos esqueletos de construções cheios de escombros, ele apontava os cômodos do andar superior nas fachadas escurecidas de outros onde ele havia se escondido, dormido, esperado. Seus antigos pontos de encontro permaneciam ali, alguns eram cafés com longos bares de zinco, atrás dos quais se encontravam proprietárias de rouge no rosto e cabelos ruivos, já com alguma idade, que manipulavam as torneiras de porcelana para servir cerveja dos barris e passavam as palmas das mãos abertas sobre os seios, impassíveis. Antonia faz uma breve pausa e prossegue: – Eu torcia e prendia meu cabelo em coques complicados, desenhava uma linha fina junto às pálpebras, passava o mindinho em um recipiente de rouge e sobre meus lábios. Vermelho chinês, acho que era como chamavam. Usava o mesmo

P:156

vestido preto todas as noites, um que pertenceu a Maria-Luce. Ombreiras, um corpete em forma de coração, numa seda negra, e sempre achei que era curto demais, justo demais nos quadris para ser usado em Florença. Senti-me bem ao usá-lo ali, uma boa roupa para ser usada em Paris por uma moça de 27 anos, filha de um lavrador das montanhas da Toscana. Até meus sapatos tinham pertencido a Maria-Luce. Na rue du Bac, Ugo comprou para mim minhas primeiras meias de seda e o aparato necessário para mantê-las no lugar, luvas de renda negra, um arco de cabelo em veludo e um veuzinho negro que esbarrava em meus cílios fazendo meus olhos ficarem arregalados. Ugo caía na gargalhada. Não conseguia me lembrar de ouvi-lo rir desde antes do início da guerra. Acho que nunca tinha ouvido. Eu a escuto sem interrompê-la. – Ugo e eu não nos apaixonamos em Paris, naquela primeira viagem. Na verdade, foi lá que nos demos conta de que já éramos apaixonados um pelo outro. Bebíamos na rue du Temple porque gostávamos do lugar e de fazer a longa caminhada de volta até St.-Germain-des-Prés, onde jantávamos na Lipp. Eu comia a mesma coisa todas as vezes: celeri remoulade, confit de canard, mille-feuilles à la crème pâtissière. Durante todos os anos que se seguiram, em todas as vezes que Ugo e eu voltamos a Paris e à Lipp, esse foi o meu jantar. Gostaria de repeti-lo. Ugo implicava comigo por causa de meus passos largos, enquanto caminhávamos pelas avenidas, e insistia para que eu adotasse o delicado andar rebolado das Parigine. Tentei uma ou duas vezes, mas não consegui. Pensando bem, até minha forma de caminhar era condicionada por Herkert. Com certeza também a forma com que eu fazia amor. Será que eu o convidei a entrar em meu quarto naquela manhã? De forma inocente, inconsciente? Existem ações inocentes ou inconscientes? Minhas ou de qualquer pessoa? Comecei a duvidar e assim perguntei a mim mesma se houve algum gesto meu, algum olhar demorado demais naquela primeira noite. Será que exibi o que fornecia para os outros e lhe era negado? Fui eu quem atraiu a desgraça para mim e minha filhinha? – Nos 31 anos que fiquei casada com Ugo, achávamos nossa vida muito agradável. Viajávamos juntos de vez em quando, hospedando-nos nos mesmos quartos em Taormina sempre em fevereiro, levando as meninas para esquiar nas Dolomiti ou para caminhar no sentieri, nas trilhas, na Engadina. Não sei dizer ao certo quando foi que Ugo criou raízes, mas ele parecia cada vez mais ligado às meninas, a mim e à fazenda. Cavalgávamos juntos, tomávamos banho de mar, trabalhávamos no orto e nos campos, líamos, conversávamos, fazíamos planos,

P:157

recebíamos os amigos e saíamos com eles. De nosso jeito pacífico, lutamos. Ugo chegou a ponto de se acostumar a ficar sentado em uma poltrona atoalhada, ao lado da grande banheira quadrada, bebericando uísque enquanto eu me banhava à noite. Era preciso ter conhecido Ugo em sua juventude para saber como essa cena deveria ter sido inusitada. – Estávamos dançando. Não era exatamente um acontecimento raro. Costumávamos dançar nas sagre. Você sabe, aquele tipo de baile rural que tem sempre algum tipo de polca, previsível. Puxando-me para junto dele, começou a cantar, a boca próxima de meu ouvido. Suavemente. Uma melodia desafinada, fora do ritmo do acordeão. “Non ti scordar di me. La vita mia è legata a te. Io t’amo sempre più, nel sogno mio rimani tu. Non ti scordar di me. Não se esqueça de mim. Minha vida está ligada à sua. Amarei você cada vez mais e, em meus sonhos, você sempre estará lá.” Com os rostos colados, ele cantou todas as palavras de cada estrofe e eu não sabia dizer se as lágrimas eram minhas ou dele. “Como poderia esquecê-lo quando você está sempre grudado em mim? Você não me dá a chance de esquecê-lo, querido”, disse a ele, temendo ter ouvido o sussurro da morte. O acordeão já tocava outra melodia, mas ele ainda me segurava. “Preciso lhe dizer que deverei me ausentar. Sinto que minha presença está sendo requisitada com urgência. Do outro lado. Não vai haver muito tempo antes da minha partida.” Antonia respira fundo e prossegue: – Minha mãe, Tancredi, Maria-Luce, Marco-Tullio, Tessa; não era como se eu nunca tivesse encontrado a morte, como se nunca tivesse sofrido sua dor. Porém, quando Ugo morreu, eu me desesperei, bati com os punhos, sofri por dias e noites. Acho que foi a velocidade com que tudo aconteceu que me deixou desnorteada: diagnóstico, aceitação, seu desejo de não persistir, de não esperar. Ele teria a última palavra em vez de deixar nas mãos das Moiras. Se sua vida precisava chegar ao fim, tinha que ser do seu jeito. Eu estava sentada na cama, ele deitado em meus braços, a cabeça sobre meu peito. Conversávamos, mas não lembro o assunto. Perguntei se sentia frio. Seu corpo parecia muito frio. A morte encontrou Ugo enquanto dormíamos naquela noite. Será que conversamos sobre Herkert? Será que ele desejava contar a verdade para Filippa e Luce? Será que a mentira já havia se transformado em verdade ou ele havia morrido com um peso em seu coração? Será que isso acontecerá comigo? Eu a escuto atenta. – Viola, Isotta, Sabina, com seus colchões no chão, em volta de minha cama,

P:158

tomavam conta de mim. Que idade tinham, 10, 8 anos? Sabina, nem tinha 6 anos? “Nonna, você quer ouvir uma história? Podemos dormir na sua cama?” Como fiquei chocada diante de meu egoísmo quando finalmente percebi que aquelas três menininhas tinham acabado de perder o avô. Luce e Filippa, o pai. O único pai que conheceram. Antonia continua a contar seu relato. – Um ano depois, Battista morreu na véspera de completar 93 anos. Como sua herdeira, tornei-me a mais rica forrageira da Toscana, com todas essas terras e meus dois vestidos marrons, o guarda-roupa de minha sogra e as poucas joias que eu ainda não presenteara minhas filhas. Isso e o grande casaco de pele que Ugo me dera de presente poucos dias antes de morrer. Ugo havia me preparado, me aconselhado, criara listas minuciosamente detalhadas do que eu devia e não devia fazer, em quem devia confiar. Até hoje, Ugo é meu guia nas inevitáveis maquinações necessárias para se manter uma propriedade tão grande quanto Castelletto. Sem falar de uma família tão complexa quanto a minha. Umberto e as garotas acham que estão fazendo as coisas de seu jeito, e na maior parte do tempo permito que tenham essa falsa impressão, embora não se venda uma roda de queijo nem se conserte uma janela ou se plante algo sem minha aprovação, ainda que silenciosa. A minha e a de Biagino. Enquanto projetava as cenas de sua história, Antonia caminhava pelo aposento. Despejando o chá que sobrou da chaleira azul e branca para um jarro, ela o coloca na geladeira, volta a encher a panela com água, e faz mais chá só para deixá-lo também intocado. De uma pagnotta que Biagio trouxera naquela manhã, ainda intacta, ela corta pedacinhos e, como se os preparasse para uma criança, os salpica de açúcar. Para uma criança sua? Para a criança que ela foi? Ou que nunca foi? Ela caminha até a porta aberta da cabana, levanta a cabeça em direção ao céu e fecha os olhos para ouvir a algazarra das aves noturnas, o bater de asas das corujas assentadas em um galho elevado de um pinheiro. Dirigindo-se até as pedras, ela acolhe a chegada das estrelas, anuncia Vênus, Sagitário e depois, quando a lua se ergue, Capricórnio. Ela deve ter descido até o riacho em algum momento, pelo tempo que se demorou, mas nunca me ocorreu segui-la. A poeira branca da estrada ressequida está em suas botas, ao voltar. Ela foi até a cama de princesa, deitou-se sobre o colchão exposto, encolheu-se para um lado e chorou. Tirei um travesseiro de uma pilha que organizara anteriormente com roupas de cama, e o coloquei

P:159

debaixo de sua cabeça. Ao erguer minha mão, como se fosse colocá-la sobre sua testa, interrompi o gesto movimentando depressa a mão para o meu rosto, como se minha intenção tivesse sido mesmo aquela. Olhando-me, compreendendo, ela pegou minha mão, levou-a até a cabeça e a manteve ali, segurando-a com a sua. Por saber que não era preciso falar-lhe para que me ouvisse, permaneci em silêncio. Ao soltar minha mão, ela virou de barriga para cima, cobriu a testa com um braço dobrado, protegendo os olhos, embora houvesse apenas uma única vela acesa no aposento. Depois de um tempo, ela se levantou, ajeitou o vestido marrom, o cabelo e os grampos de tartaruga. – Pentimento. Conhece essa palavra? – Remorso. – Arrependimento, também é isso. Mas, para um pintor, pentimento é uma imagem oculta, uma pintura sob a pintura, um fragmento da pintura que aparece quando a última camada de tinta se torna transparente com o tempo. Será que me tornei transparente com a idade? Segredos e mentiras aparecem, não é? E é remorso o que sinto? Será arrependimento o que os deuses pedem a mim? Ou o que eu peço a mim mesma? Antonia prossegue: – Aí está. A essência. O desejo ao qual não consegui dar nome. É saber, saber com certeza, o que é o certo. Com minhas mentiras, me desviei da coisa certa? Costumava pensar que minha mãe se portou de forma traiçoeira por conta de seus segredos, e aqui estou eu, capaz de traição maior, eu acho, se a traição pudesse ser medida. Será que penso como um covarde, omitindo para proteger? E quem desejo proteger? Minhas filhas? Eu mesma? Não sei. Luce está com 58 anos e podem me condenar se tiver sido pior para ela não saber que seu pai era um estuprador, que tentou matar sua irmã e que provavelmente estava louco por causa do medo, da bebida e talvez por suas próprias dores. Querida Luccetta. Como é difícil amá-la! Nunca compreendi se isso se deve ao fato de ela ser de Herkert ou minha. Normalmente, sou difícil de ser amada. Outra coisa que temos em comum, eu e você. Aproxime-se, mas não demais. A memória tem sido minha grande amante. Como a segurei com força, alimentei-a como uma fogueira. Da mesma forma que eu ia contemplar minhas filhas adormecidas, para ter certeza de que estavam ali, faço o mesmo com minha memória. Para ter certeza de que permanece inteira. Vívida, intensa e inteira, de fato ela está, mas qual é o objetivo? O que devo fazer com todos os segredos que revelei esta noite, os sussurros sufocados que enxergaram a luz?

P:160

Ela faz uma breve pausa e continua: – Não posso criar um mito dessas manhãs, uma ficção barata. O que aconteceu nunca poderia deixar de pertencer a mim. Mas e depois de mim? Devo levar a história comigo, para junto de pedras e árvores, entregar tudo às Moiras que com ou sem meu consentimento envolverão tudo em silêncio? Melhor, devo transmiti- la para Luce? Para Filippa? Por quê? Para receber suas lágrimas, fazer com que sintam as mesmas flechas que me atravessaram? Se eu fizesse isso agora, no fim, eu me tornaria maior para elas, no momento em que deveria diminuir. Elas me dedicariam sua piedade feminina. Se vierem a saber, desejo que possa ser depois de mim. Existe uma decência em se diminuir no final. Um noturno em tom menor, aquietando-se, lento, pianissimo. Um botão que se fecha, cedendo ao anoitecer. – Acredito que Giorgia e Biagino já tenham jantado a essa altura. Se algum dos outros voltou, Giorgia provavelmente impediu que viessem nos buscar. Talvez tenha sido Biagino – diz Antonia enquanto traz as valises e as outras coisas que deixei arrumadas do lado de fora da porta para perto da cama de princesa. – Seu bizantino já deve estar chegando. Quer ajuda para montar acampamento antes que isso aconteça? Ela está estendendo um lençol, jogando-o sobre a cama, sacudindo-o para acertar, arrumando com habilidade. Assumo meu lugar do outro lado da cama. – No momento, isso basta – digo-lhe, afofando os travesseiros, um deles sendo aquele que, momentos antes, ela repousara a cabeça e que ainda guardava a umidade de suas lágrimas. – Sim. Por enquanto, acho que é o bastante. Vamos andar? Fecho a porta da cabana, a mão esbarrando em um ramo de giesta preso sob a cabeça do javali. Quando me volto, ela está me olhando. Mão no quadril, cotovelo dobrado, parece uma ave alta, pronta para a briga, com apenas uma asa. Sem plumas, o marrom de seu vestido é como uma pele escura, ela abre o sorriso, insegura da vitória assim como da derrota. E será que não se pergunta se as duas coisas não seriam iguais, no final das contas? As ondas que fustigam as rochas lá embaixo batem no ritmo de meu coração. Frente a frente, olhos nos olhos, ficamos paradas. – Decisão? – pergunto-lhe.

P:161

Ela espera, ainda me olhando, por muito tempo. Como uma menina chamada para responder uma pergunta diante da turma da escola, Antonia sabe a resposta mas não consegue pronunciar as palavras. Põe os braços sobre meus ombros, me puxa para junto dela. Sua voz está ressequida, como de uma velha senhora. Ela sussurra: – A decisão pertence apenas aos deuses. Aperto meu rosto contra a bochecha pequena e macia de Antonia e ela o mantém ali com a mão. – Ah, tesoro mio, minha querida, como as Moiras ririam de nós, duas centelhas que se supõem tão sábias a ponto de tomar uma decisão. Mas os deuses nos deram algo melhor. Eles nos deram a paixão. A doçura desse prato diário de beleza. Uma dose maior, uma dose menor, nunca saberemos quanto nos entregarão, mas na maior parte das vezes é o suficiente, acredito eu. E o resto é por nossa conta. O que fazemos. Nossa própria dose de beleza. Nenhum desperdício. A luz não vai esperar, você sabe. Então o que fazemos é subir as colinas. Às vezes subimos em meio a uma brisa do mar, junto a um trigal jovem que cresceu o suficiente para estremecer. Estremecemos. Continuamos a trilhar o caminho como se soubéssemos para onde nos conduz, desviamo-nos em alguma trilha, perseguindo os animais, aprofundamo-nos na vastidão, atraídas pelo perfume penetrante de um sonho, forçando a vista para ler os mapas que um dia desenhamos nas paredes de nossos corações de criança. É isso que fazemos. Ela prende o braço no meu. A lua derrama topázio na noite, cria uma fogueira amarelada nas espessas tranças verdes dos carvalhos, e os sinos distantes de Agostino são como o tintilar das cabras voltando para casa. Somos cabras que voltam para casa, Antonia e eu. Acho que todos nós somos. Voltando a subir a colina. Colina acima, colina abaixo. Enquanto Antonia abaixa a cabeça, mais próxima da minha, inclino-me em direção ao ombro dela. E formamos um triângulo, com um lado menor do que o outro, subindo a encosta da estrada branca. Porque é o que fazemos. Sem se virar, Antonia diz: – Andei pensando que deveríamos preparar um jantarzinho. As brasas ainda vão estar quentes no fogão, o suficiente para assar uns pedaços de pão, e enquanto isso vou dar uma olhada nos tomates. Pelo menos um deles estará maduro. Antes, porém, vamos nos sentar na varanda e tomar aquele tinto maravilhoso de Viola. Que tal?

P:162

Fine

P:163

Receitas À primeira vista, cozinhar alla Toscana parece brincadeira de criança, exigindo técnicas relativamente simples e nenhum tipo de ornamento ou floreio. Cuidado. Quando uma culinária é tão livre de adornos, tão direta, é a perfeição da materia prima que se torna fundamental. A autenticidade toscana exige ingredientes perfeitos, e esta é uma das razões que tornam um verdadeiro desafio reproduzi-la fora de seu próprio território. Bruschetta con gli asparagi PÃO ASSADO COM ASPARGOS A bruschetta – quer dizer, a autêntica bruschetta – nada mais é do que o simples pain de campagne tostado ligeiramente dos dois lados no fogo a lenha, regado com azeite de oliva verde produzido naquele mesmo ano e finalizado com toques de sal. O mundo adotou esta antiga forma de se abrir uma refeição e, em geral, não a tratou muito bem, servindo um pão não tão maravilhoso, com um azeite ainda menos satisfatório e depois cobrindo-o com todo tipo de ingredientes inapropriados. Quando se escolhe aprimorar o original, apenas a simplicidade das verduras simples e assadas é capaz de torná-lo melhor. Alho-poró, cebolinha, alho jovem são tão bons quanto aspargo. Rendimento: 4 porções Fogo a lenha que já se converteu em cinzas ou grelha quente, no forno Aspargos frescos, verdes, com a espessura de um lápis (ou menos), talos aparados e cortados – cerca de 8 a 10 por BRUSCHETTA Azeite de oliva extravirgem Fatias com cerca de 1,5cm de espessura de um bom pain de campagne Sal Coloque o aspargo numa grade diretamente sobre as brasas e asse, virando os talos com frequência, banhando-os em azeite de oliva, até que fiquem tostados e macios. Reserve em um prato. Ao utilizar uma grelha, coloque o aspargo em uma assadeira e faça a mesma coisa. O processo levará mais alguns minutos,

P:164

caso você esteja utilizando o forno. Quando os aspargos estiverem quase prontos, comece a assar o pão. O ideal é que os dois fiquem prontos ao mesmo tempo. Regue o pão quente com azeite, coloque os aspargos sobre o pão e umedeça com mais azeite. Algumas pitadas de sal e está pronto para servir.

P:165

Carabaccia de Catarina SOPA DE CEBOLA E ERVILHA AROMATIZADA COM CANELA, À MODA DE CATARINA DE MÉDICI Dizem que Catarina de Médici, esposa de Henrique II, da França, adorava ervilhas. Existem muitas histórias de seus excessos – com ervilhas e outras preferências. Sobrevivente dos antigos cânones gastronômicos medievais, a sopa torna-se única pelo aroma inesperado de canela, que transforma o que seria um prato caseiro em algo mais refinado. Não há dúvida de que esta receita foi a precursora daquilo que se tornou a soupe à l’oignon gratinée da França. Rendimento: 6 porções 4 colheres de sopa de azeite extravirgem 4 colheres de sopa de manteiga sem sal 4 cebolas amarelas grandes, descascadas e cortadas em fatias finas 1 colher de sopa de açúcar 2 colheres de chá de canela em pó Sal e pimenta branca moída na hora 3 xícaras de um bom caldo de carne, de preferência feito em casa 1 xícara de vinho branco seco 500g de ervilhas sem cascas, escaldadas em água durante 5 a 7 minutos, escorridas na peneira (o caldo da panela reservado à parte) e transformadas em purê (ervilhas minúsculas, congeladas e preparadas da mesma forma, podem ser utilizadas, mas o resultado não será tão bom) 1 xícara de Parmigiano ralado na hora Fatias com 1,5cm de espessura de pão de textura rústica, levemente torrado e untado com azeite de oliva extravirgem Aqueça o azeite de oliva e derreta a manteiga em uma sopeira grande. Acrescente as cebolas, refogando-as até se tornarem translúcidas. Polvilhe com

P:166

o açúcar e a canela as cebolas, misturando até cobri-las bem, adicione o sal e a pimenta branca e deixe cozinhar em fogo bem baixo, mexendo-as com frequência, caramelizando-as com o açúcar, colorindo, perfumando-as com a canela até que se transformem em uma geleia macia – o que leva cerca de 1 hora. A sopa é preparada sobre esta delicada base. Acrescente o caldo de carne, o vinho, o purê de ervilhas e o caldo do cozimento, deixando ferver, depois cozinhe em fogo baixo durante dez minutos. Fora do fogo, acrescente o Parmigiano, misturando bem. Sirva a sopa, quente ou morna, sobre a torrada com azeite de oliva em pratos fundos e aquecidos. Por fim, pingue algumas gotas de azeite.

P:167

Fagioli al fiasco sotto le cenere FEIJÃO-BRANCO ASSADO DENTRO DE UM VASO POSTO SOBRE AS CINZAS Em toda a península, os toscanos são conhecidos como mangiafagioli, comedores de feijão, e o repertório de sopas e ensopados tradicionais quase sempre é protagonizado por um cremoso feijão-branco. Entre as variedades disponíveis encontram-se cannellini, corona, purgatório, soranini, toscanello e mesmo o feijão gigante e achatado chamado coco, que é de origem francesa. Cozidos lentamente em uma garrafa enterrada nas cinzas de um fogo a lenha ou em panela de barro em um forno em baixa temperatura, os feijões brancos ganham uma cremosidade extraordinária, quase como uma musse. Rendimento: 6 porções 350g de feijão-branco seco (veja a lista ao lado), deixado de molho da noite para o dia, escorrido, pré-cozido em água fervente e salgada durante 1 hora e depois escorrido novamente 2 xícaras de água ½ xícara de azeite de oliva extravirgem 1 ramo de alecrim 3 dentes de alho, descascados e amassados 6 a 8 folhas de sálvia fresca Sal e pimenta moída na hora Mais azeite de oliva extravirgem a gosto ½ xícara de tomates descascados, sem sementes e bem picados Pão com casca crocante, para servir Coloque o feijão dentro de uma garrafa de vinho (de preferência, de Chianti, de fundo bulboso); adicione água, azeite, alecrim, alho e sálvia. Faça uma tampa para a garrafa com um pedaço de pano, deixando espaço para que o vapor escape, e evitando assim que o recipiente exploda. Enterre a garrafa nas cinzas

P:168

brancas de uma fogueira e deixe até o dia seguinte. Ao acordar, a casa estará perfumada e (como os feijões absorveram o azeite) a água terá se transformado em vapor. Remova a tampa e despeje os grãos em uma tigela, salpicando sal e pimenta generosamente. Retire o alecrim e o alho e acrescente, se necessário, mais algumas gotas de azeite. Para cozinhar no fogão, misture os ingredientes em uma panela pesada e deixe no forno com a tampa um pouco aberta por cerca de 2 horas em fogo baixo, de forma que os líquidos fiquem em repouso. Outra opção é fazer com que o feijão cozinhe sobre o fogão em panela de barro tampada, ou em sopeira com tampa, mantendo-a bem fechada no forno a uma temperatura de 150ºC durante 2 horas. O acréscimo de meia xícara de tomate bem picado, sem casca nem sementes, é opcional. Sirva quente, em temperatura ambiente ou mesmo frio, com mais algumas gotas de azeite, pedaços grandes de pão com casca crocante e um bom vinho tinto.

P:169

Arista LOMBO DE PORCO ASSADO À MODA FLORENTINA A palavra arista não é, como muitos pensam, o mesmo que arrosto ou “assado”. As publicações mais antigas asseguram que o nome para o famoso lombo de porco toscano assado no espeto surgiu de um glorioso elogio feito por nobres gregos em visita à corte florentina. Depois de serem servidos diversos pratos de entrada preparados de acordo com as leis de Savonarola (o monge ditava o número de pratos, seus ingredientes e o modo com que deveriam ser feitos e apresentados, destituídos de qualquer “extravagância e ostentação”), foi oferecido aos convidados gregos um assado simples. Não se sabe se como uma manifestação de alívio pelo fim da austeridade das receitas anteriores ou apenas como um tributo ao aroma da carne temperada com alho e alecrim, mas está escrito que “aqueles gregos de vestes sombrias devoraram o assado com voracidade, sem falar nem ouvir o que era dito a sua volta. Ao terminarem, ficaram de pé e exclamaram em coro “Arista! Arista!”. Assim, arista, raiz da palavra aristocrata e significando “poderoso por ser o melhor”, passou a ser adotado pelos florentinos. Aqui se encontra uma versão preparada no forno que é igualmente “aristocrática”. Difere apenas minimamente da receita mencionada na narrativa. Rendimento: 10 porções 3,5kg de lombo de porco com as costelas (a carne deve estar quase totalmente desprendida dos ossos, que precisam estar quebrados para facilitar o corte da carne) 1 alho grande e roxo, descascado e amassado 2/3 de xícara de folhas frescas de alecrim ½ xícara de azeite de oliva extravirgem Sal e pimenta moída na hora 1 ramo ou vários raminhos grossos de alecrim silvestre 1 garrafa de vernaccia ou outro vinho branco ácido e intenso Faça incisões de 2,5cm por toda a superfície do porco. Na tigela de um

P:170

processador de alimentos aparelhado com lâmina mecânica ou em um grande pilão, processe ou amasse o alho, folhas de alecrim e azeite, até formar uma pasta grossa. Adicione generosas quantidades de sal e pimenta e misture bem os ingredientes. Massageie a pasta profundamente nos cortes e sobre toda a superfície da peça. Mantenha a carne presa aos ossos com a ajuda de barbante e deixe que o porco absorva os sabores desta pasta durante várias horas, coberto e em lugar fresco, ou passando uma noite na geladeira. Coloque em assadeira pesada, não muito maior do que a peça, e asse a 250ºC, virando a cada 10 minutos aproximadamente. Toda vez que for virar o assado, use o galho de alecrim silvestre para umedecer o porco com seus próprios sumos. Continue a virar e a umedecer em intervalos de 10 minutos até que todos os lados estejam bem dourados. Retire a assadeira do forno e adicione lentamente o vinho, até obter uma camada de aproximadamente 5cm. Reserve o vinho restante. Cubra a assadeira e a devolva ao forno quente. Dez minutos depois, reduza a temperatura para 180ºC e deixe assar por mais 1 hora e meia ou até que a carne comece a se desprender dos ossos. Com cuidado, coloque o porco em um prato fundo, cubra com papel- alumínio e deixe descansar durante 15 minutos, enquanto prepara o molho. Coloque a assadeira sobre o fogo e acrescente o restante do vinho, reduzindo os caldos em um terço. Corte o barbante e sirva em fatias grossas, entre os ossos. Leve à mesa com o molho. Um purê de feijão-branco ou favas, temperado com semente de funcho, é um belo acompanhamento.

P:171

Schiacciata con l’uve del vino PÃO ACHATADO COM UVAS DE VINHO Herança dos etruscos e de suas celebrações da colheita, talvez seja o mais antigo dos pães. Exala um aroma divino enquanto assa, e o sabor – doce, apimentado, picante – é inigualável. Sua textura é crocante, embora úmido pelo sumo das uvas. Rendimento: 6 a 8 porções 1½ xícara de farinha de trigo 1 colher de sopa de açúcar mascavo claro 2 embalagens de fermento seco ativo ou 2 cubinhos de fermento fresco 1 xícara de água morna ½ xícara de azeite de oliva extravirgem 3 colheres de sopa de folhas frescas de alecrim, picadas 2 colheres de sopa de sementes de funcho, amassadas 2 colheres de sopa de sementes de anis, amassadas 1 colher de sopa de pimenta em grão moída na hora 4 xícaras extras de farinha de trigo 1 colher de sopa de sal ¼ de xícara extra de açúcar mascavo claro 2 ovos Uvas verdes, roxas e vermelhas, cortadas em pequenos cachos com 6 a 8 uvas em cada – um total de 12 cachos 2/3 de xícara de açúcar granulado Pimenta preta moída

P:172

Em uma tigela grande, misture 1½ xícara de farinha, 1 colher de sopa de açúcar, fermento e água, deixando a massa em repouso durante 15 minutos. Enquanto isso, em uma panela pequena, aqueça o azeite, adicione alecrim, funcho, anis e pimenta, de forma que aromatizem o azeite por dez minutos, em fogo baixo. Retire do fogo e separe. Volte à tigela e acrescente as 4 xícaras adicionais de farinha, o sal, ¼ de xícara de açúcar mascavo, ovos e tudo o mais, à exceção de 2 colheres de sopa de azeite temperado com as sementes, misturando bem os ingredientes. Vire a massa em uma bancada levemente polvilhada com farinha e amasse por 5 minutos. Coloque a massa em uma tigela ligeiramente untada com azeite e deixe-a crescer por 30 minutos. Depois desinfle a massa e enrole-a ou achate-a com as mãos até formar uma espécie de círculo ou retângulo, colocando-a em uma forma forrada com papel-manteiga. Pressione os cachinhos de uva na massa, embeba-os com as 2 colheres de sopa que sobraram do azeite temperado – com as sementes e tudo o mais –, salpique-os generosamente com açúcar granulado e tempere com bastante pimenta moída. Cubra o pão com um pano de prato limpo e deixe-o crescer durante 40 minutos. Asse a schiacciata a 200ºC por cerca de 25 a 30 minutos ou até que esteja dourada e inchada, com as cascas das uvas se soltando. Esfrie o pão em uma grelha por 5 minutos. Sirva quente ou morno, para acompanhar um novello (a versão italiana do Beaujolais, um tinto recém-vinificado, jovem, com baixo teor alcoólico e repleto de sabores de frutas vermelhas). Uma ideia mais incomum: servir o pão no jantar para acompanhar um belo assado de carne de boi ou de porco, ou grelhados.

P:173

Le tortucce della contadina PÃO CHATO FRITO, TEMPERADO COM ALECRIM, PREPARADO À MODA DAS CAMPONESAS Estes pães sedutores talvez sejam a forma suprema de se agradar a todo mundo. Recomenda-se muito que você não prepare tudo sozinho na cozinha e depois apresente os tortucce prontos como num passe de mágica. O processo de abrir a massa, lançá-la no azeite fervente, observar enquanto borbulha e fica dourada, retirar os pães e colocá-los sobre pratos forrados com papel para que sequem, salpicar sal, tudo isso é parte do prazer, momentos para compartilhar com aqueles que vão comer. Faça os convidados entrarem na cozinha, abra algumas garrafas de vernaccia bem frescas, sirva, erga a taça e comece. Aqui, comemos tortucce com fatias de mortadela ou de prosciutto crudo nostrano (o presunto artesanal local). É difícil superar esses tortucce, por isso só uma sopa rústica ou massa parece ser apropriada para completar a refeição. Rendimento: 8 porções 1 cubo de fermento fresco (18g) 1 xícara de água morna 2 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem ½ xícara de leite integral 2 colheres de sopa de manteiga sem sal, amolecida 2 xícaras de farinha de trigo não branqueada 1 colher de chá generosa de sal refinado 3 colheres de sopa de folhas de alecrim, picadas bem finas Uma frigideira funda e pesada ou uma fritadeira Azeite para fritura (em Orvieto, o azeite de qualidade é tão abundante que usamos para as frituras dos pães; uma alternativa é o óleo de amendoim) Esfarele o fermento no fundo de uma tigela grande, ligeiramente aquecida.

P:174

Despeje ½ xícara de água e misture (padeiros experientes usam o movimento giratório de uma das mãos). Deixe a mistura descansar por alguns minutos, depois volte a agitá-la. Adicione a água restante, o azeite, o leite, a manteiga, a farinha, o sal e o alecrim até formar uma massa solta. Despeje a massa em uma bancada ou sobre o mármore levemente polvilhado com farinha e amasse até adquirir uma textura acetinada, durante cerca de 10 minutos. Lave e seque a tigela que foi usada para fazer a mistura e, enquanto ainda permanece morna, derrame nela algumas gotas de azeite de oliva. Coloque a massa e vire-a até que fique toda bem untada. Sele a tigela com filme plástico. (Na zona rural, muitos cozinheiros cobrem a tigela com um pano de prato dobrado ou mesmo com um pequeno cobertor. Embora não haja nenhuma base científica para isso, de certa forma satisfaz o instinto materno inspirado pela preparação de pão.) Deixe que a massa cresça até dobrar de tamanho, por cerca de 2 horas, dependendo do clima e da temperatura na cozinha. Quando a massa tiver crescido o suficiente, desinfle-a com dois ou três socos e coloque a frigideira com o azeite sobre fogo médio (esquentar o azeite em fogo alto vai deixar pontos mais frios e fazer com que o cozimento não seja uniforme). Enquanto o azeite se aquece, comece a separar porções com cerca de 50g de massa e abri-las em círculos finos. Alguns cozinheiros passam o rolo sobre a massa; outros preferem dar forma com a ponta dos dedos. Embora esse último método exija alguma prática, é bem mais divertido do que usar o rolo. É nessa hora que os convidados podem ajudar. Com o azeite quente, sem soltar fumaça, frite a primeira leva de tortucce. Eles vão imediatamente inchar, borbulhar e começar a se agitar no óleo. Deixe-os por 2 minutos antes de começar a virá-los. Quando estiverem bem dourados, retire-os com uma escumadeira e coloque-os em uma assadeira forrada com papel-toalha. Adicione uma pitada de sal. Não vão durar muito. O vinho fresco, os tortucce quentes...

P:175

Castagnaccio PUDIM DE FARINHA DE CASTANHA Como a narrativa é ambientada na primavera e no verão, castagnaccio não fazia parte dos menus de Antonia. Mas, todas as outras vezes que visitei Castelletto no outono, a receita era sempre servida. De fato, todos os toscanos mais velhos que conheço (ou conheci) sempre acabavam preparando em algum momento este tradicional pudim de outono. E sempre começavam a contar as histórias – em geral tristes – dos castagnaccio de sua infância. Junto com a polenta, o castagnaccio foi o alimento que garantiu a sobrevivência histórica dos camponeses durante as guerras e outros períodos difíceis. Até o sufixo da palavra – accio – denota algo menos do que refinado, talvez menos do que desejável. Porém, com o passar do tempo, os dias de miséria ganharam um toque de nostalgia de forma que praticamente todas as famílias de camponeses aguardam ansiosamente pela chegada da farinha de castanha ao mercado, no final de outubro. Os sacos de meio quilo, fechados com barbante, são levados para casa; a farinha de castanha, fina e acetinada, é salpicada, alla pioggia – como chuva –, sobre água fria e misturada com uma colher de pau até que a massa fique uniforme. Passas ensopadas, alecrim picado, um punhado de pinhões, uma colher de azeite, pitadas de sal são adicionados (embora fossem luxos impensáveis, nos tempos mais difíceis) e a massa é despejada em uma fôrma redonda – a mais surrada da casa – e assada em fogo quente até que o pudim endureça, a superfície fique rachada e um pouco seca. Sirva o pudim quente ou na temperatura ambiente, com uma taça de vinho tinto ou uma menor de Vin Santo. Os moradores locais tendem a servi-lo quente, enriquecido por uma porção da ricota de leite de ovelha produzida no dia, como forma de equilibrar o sabor forte e incomum do pudim. Eles sempre adornam o prato com uma história. Rendimento: 6 porções 500g de farinha de castanha (disponível em mercados especializados e em mercearias de bairros italianos. Verifique a data de validade, pois a farinha de castanha não se conserva por mais de 6 meses). Água fria ½ xícara de pinhões, levemente tostados

P:176

½ xícara de passas que ficaram de molho em água quente e depois foram coadas 2 colheres de chá de folhas de alecrim, picadas 1 colher de sopa de azeite de oliva ½ colher de chá de sal Coloque a farinha em uma tigela média e despeje a água em fios finos, misturando o tempo todo com uma colher de pau, até adquirir uma consistência de massa fina. A quantidade de água varia imensamente dependendo da textura da farinha de castanha – cerca de 2½ xícaras ou mais. Acrescente os pinhões, as passas, o alecrim, o azeite de oliva e o sal, batendo bem. Despeje a massa em uma fôrma untada com azeite e asse a 230ºC durante 30 minutos, ou até que ela adquira a aparência escura de um bolo de chocolate rachado. Sirva quente ou na temperatura ambiente.

P:177

Ricotta di pecora al miele di castagne pepato RICOTA DE LEITE DE OVELHA COM MEL DE CASTANHEIRO E PIMENTA MOÍDA NA HORA Nem doce nem salgado, este prato é conhecido como um fine pasto (em oposição a um antipasto, servido antes da refeição, ele é apresentado depois da refeição. Muitos pensam, erradamente, que antipasto significa “antes da massa”, mas a palavra é pasto, refeição). De qualquer modo, foi este tipo de prato, feito com ingredientes difíceis ou fáceis de se encontrar, que um dia serviu de sustento a pastores e camponeses. Embora tenha sido servido de uma forma delicada e refinada na noite de meu primeiro jantar em Castelletto, também já desfrutei dele junto a um rebanho de ovelhas nas campinas de Buon Respiro, acima de Orvieto. Leite de ovelha coalhado diretamente de uma panela pendurada sobre uma fogueira de carvalho, despejado em uma tigela de madeira e que recebe mel em fios vindos de um favo. Como não havia um moedor de pimenta a céu aberto, meu amigo Orfeo retirou algumas nozes de dentro de seu saco de coleta. Bateu nelas com uma pedra até que abrissem e, com um canivete, picou-as na coalhada. De alguma forma, essas duas lembranças daquele que é, em essência, o mesmo prato evocam o que mais gosto da vida na Itália: a influência universal niveladora criada pela comida, que atravessa todas as camadas da sociedade.

P:178

Agradecimentos A Fernando Filiberto-Maria amore mio À presença constante de: Erich Brandon Knox Annette Barlow Giuseppina Sugaro Pettinelli Mary Jo Martin Rosalie Siegel Sylvia e Harold Epstein Stefania Rolfi e Marco Pepe Ilaria Moscatelli e Gianluca Pepe Francesca Pierangeli e Leonardo Napoli. Especialmente a Lavinia Petrangeli, a mais doce menininha de Orvieto, e sua bela família. À minha editora, Catherine Milne, que com rara sensibilidade e paixão pegou-me por uma das mãos enquanto com a outra abria uma trilha pelo bosque onde me encontrara. A Clara Finlay, soberba editora dos editores, que deu o polimento final ao texto com extraordinária raffinatezza e me ajudou a lembrar que compreender e ser compreendida é a mais duradoura das felicidades. Em memória dos amados Daniela Caiello Picaria e Giancarlo Bianchini da Todi

P:179

Conheça outros títulos da autora Mil dias em Veneza Apaixonada por Veneza, Marlena um dia é surpreendida por uma ligação enquanto almoçava em um restaurante da cidade. Era Fernando, um veneziano

P:180

que a vira um ano antes e se apaixonara por ela à primeira vista. Quando a reencontrou no restaurante, ele concluiu que só podia ser o destino. Esse livro pode parecer um conto de fadas, mas é uma história de amor verídica – o amor entre uma mulher e um homem, o amor pela comida e o amor por uma cidade. Mil dias na Toscana

P:181

Marlena e Fernando, apesar de muito diferentes, se apaixonaram e se casaram num espaço de tempo incrivelmente curto. Mas o amor que surge entre eles é tão forte que consegue superar todas as dificuldades. Mil dias na Toscana é uma deliciosa viagem a um lugar quase perdido no tempo, uma ode à amizade e às coisas que realmente importam na vida. A doce vida na Úmbria

P:182

Dessa vez, Marlena de Blasi nos leva a uma emocionante jornada pela Úmbria. Com sua energia e sua capacidade de se encantar pela vida, ela conquistará o coração de pessoas das mais variadas classes sociais. E provará que, em volta da mesa e diante de uma boa comida, é possível encurtar as distâncias, superar as diferenças e até acabar com rancores de uma vida inteira.

P:183

CONHEÇA OS CLÁSSICOS DA EDITORA SEXTANTE 1.000 lugares para conhecer antes de morrer, de Patricia Schultz A História – A Bíblia contada como uma só história do começo ao fim, de The Zondervan Corporation A última grande lição, de Mitch Albom Conversando com os espíritos e Espíritos entre nós, de James Van Praagh Desvendando os segredos da linguagem corporal e Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, de Allan e Barbara Pease Enquanto o amor não vem, de Iyanla Vanzant Faça o que tem de ser feito, de Bob Nelson Fora de série – Outliers, de Malcolm Gladwell Jesus, o maior psicólogo que já existiu, de Mark W. Baker Mantenha o seu cérebro vivo, de Laurence Katz e Manning Rubin Mil dias em Veneza, de Marlena de Blasi Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss Não tenha medo de ser chefe, de Bruce Tulgan Nunca desista de seus sonhos e Pais brilhantes, professores fascinantes, de Augusto Cury O monge e o executivo, de James C. Hunter O Poder do Agora, de Eckhart Tolle O que toda mulher inteligente deve saber, de Steven Carter e Julia Sokol Os segredos da mente milionária, de T. Harv Eker Por que os homens amam as mulheres poderosas?, de Sherry Argov

P:184

Salomão, o homem mais rico que já existiu, de Steven K. Scott Transformando suor em ouro, de Bernardinho

P:185

INFORMAÇÕES SOBRE OS PRÓXIMOS LANÇAMENTOS Para saber mais sobre os títulos e autores da EDITORA SEXTANTE, visite o site www.sextante.com.br, curta a página facebook.com/esextante e siga @sextante no Twitter. Além de informações sobre os próximos lançamentos, você terá acesso a conteúdos exclusivos e poderá participar de promoções e sorteios. Se quiser receber informações por e-mail, basta cadastrar-se diretamente no nosso site ou enviar uma mensagem para [email protected] www.sextante.com.br facebook.com/esextante @sextante EDITORA SEXTANTE Rua Voluntários da Pátria, 45 / 1.404 – Botafogo Rio de Janeiro – RJ – 22270-000 – Brasil Telefone: (21) 2538-4100 – Fax: (21) 2286-9244

P:186

E-mail: [email protected]

Create a Flipbook Now
Explore more