Simpósio de Estudos Barrocos e Neobarrocos - Dobras de Tradição Criativa

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Leila Tabosa Aluísio Barros Ciro Soares dos Santos

“Dobras de tradição criativa” apresenta I Simpósio de Estudos Barrocos e Neobarroco

1ª Edição

Edições UERN Mossoró -2016


Reitor Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto Vice-Reitor Prof. Aldo Gondim Fernandes Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. João Maria Soares Comissão Editorial do Programa Edições UERN: Prof. João Maria Soares Profa. Anairam de Medeiros e Silva (Editora Chefe) Prof. Eduardo José Guerra Seabra Prof. Humberto Jefferson de Medeiros Prof. Sérgio Alexandre de Morais Braga Júnior Profa. Lúcia Helena Medeiros da Cunha Tavares Prof. Bergson da Cunha Rodrigues Assessoria Técnica: Daniel Abrantes Sales

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. V

Simpósio de Estudos Barrocos e Neobarrocos - Dobras de Tradição Criativa(I, 2016, Mossoró,RN) Anais do I Simpósio de Estudos Barrocos e Neobarrocos – Dobras de Tradição Criativa/ Organizadores Ciro Soares dos Santos, Aluísio Barros, Leila Tabosa. - Mossoró,RN, 2016. 196 p. ISBN: 978-85- 7621-136- 5 Evento realizado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. 1. Estudos barrocos. 2. Neobarrocos. I. Santos, Ciro Soares dos. II. Barros, Aluisio. III. Tabosa, Leila. IV. Universidade do Estado doRio Grande do Norte. III. Título. UERN / BC

CDD 709.032

Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319


Sumário A

ENSAIOS E ARTIGOS CIENTÍFICOS

1

GREGÓRIO DE MATOS E O SÉCULO XVII Francisco Ivan da Silva (UFRN)

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A FLOR E O MARACUJÁ Samuel Anderson de Oliveira Lima (UFRN)

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A SÁTIRA MODERNISTA COMO PARÓDIA EM CANTO PARALELO DA POESIA DO BARROCO: GREGÓRIO DE MATOS, MÁRIO DE ANDRADE E OSWALD DE ANDRADE Ciro Soares dos Santos (UFRN)

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4

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106

A VARANDA DO FRANGIPANI: ELEMENTOS NEOBARROCOS NA ESCRITA DE MIA COUTO Ylana Karla de França Lopes (CEEL-UERN)

115

O SERMÃO DO MANDATO DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O AMOR DE JESUS CRISTO PELA HUMANIDADE: UM AMOR A SER ENTENDIDO Aurenísia Almeida de Mesquita (CEEL-UERN) Daniele Ramalho Pereira (CEEL-UERN)

123

TRÊS OLHARES VOLTADOS PARA AS CONCEPÇÕES BARROCAS EM SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ Jackeline Tôrres Maia (CEEL-UERN)

135

6

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HAROLDO DE CAMPOS E O BARROCO: CANTOS PARALELOS Armando Sérgio dos Prazeres (Universidade São Judas Tadeu-SP)


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APONTAMENTOS SOBRE A ESTÉTICA BARROCA EM FRANKENSTEIN: O SAGRADO E O PROFANO; A CIÊNCIA E A FÉ Jônatas Andrade de Oliveira

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A ELIPSE BARROCA NA LÍRICA RELIGIOSA DE GREGÓRIO DE MATOS Rayane Kely de Lima Fernandes

158

O CLASSICISMO NA MISCELÂNIA BARROQUIANA: REFLEXÕES ACERCA DE DOIS SONETOS DE CAMÕES Taynã Alves Rebouças (Graduação DLV - UERN) Francisca Berlandia da Silva Paiva (Graduação DLV- UERN) Maria Selma dos Santos (Graduação DLV - UERN)

168

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149

A LIRA MALDIZENTE DO TROVADORISMO NA POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS E CAETANO VELOSO Jéssica Marissa Mendes da Silva (Graduação DLV- UERN)

176

GREGÓRIO DE MATOS, POESIA LÍRICA E A IDENTIFICAÇÃO ENTRE OS OPOSTOS Gina Cristina Costa dos Santos (Graduação DLV- UERN) Joana Tamires Silveira Bezerra (Graduação DLV- UERN)

185

Exposição de BANNER'S realizada pelos estudantes da Graduação da Faculdade de Letras e Artes (DLV e CEEL)

191

B

C

Catálogo da Exposição de pintura do artista Isaías Medeiros "BARROCO TROPICAL: UNA FIESTA DE COLORES" Curadoria e catálogo: Leila Tabosa (UERN) Coordenação da Exposição: Pedro Adrião (UERN)

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...Dobras de tradição criativa...

O debate acerca da permanência do Barroco e de sua sobrevida sob o signo de Neobarroco na literatura e nas artes é recorrente entre os estudiosos dessa estética. O reexame teórico passa pela compreensão de Barroco como "estética do movimento" em várias formas artísticas (WÖLFFLIN, 2005), como "eon"- constante transtemporal (D'ORS, 1990), como "elipse" (SARDUY, 1989), como "ética do desperdício"- Neobarroco (SARDUY, 1998) e como a "dobra que vai ao infinito" (DELEUZE, 1991). O reflexo artístico de movimentoeon-elipse-desperdício-dobra pode ser percebido desde o século XVII nas artes de Bernini, Velázquez, Góngora e Sor Juana, assim como nas obras de Gregório de Matos e Antonio Vieira, passando pelo Barroco tardio de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em pleno Arcadismo brasileiro, chegando ao Modernismo brasileiro e logo a expressões mais contemporâneas: a exemplo de João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Oscar Niemeyer. A proposta de registro da memória do I Simpósio de Estudos Barrocos - dobras de tradição criativa -, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, é reapresentar discussões, diálogos e estudos realizados no evento, no ano de 2015, na UERN-FALA-DLV- Campus Central. A proposta deste apontamento em forma e-book reitera o objetivo maior do evento - ascender o debate acerca do Barroco e (re) pensá-lo não só como categoria artística integrante de uma estrutura histórica, mas também como estética de características modernas e que sobrevivem até a contemporaneidade.

Leila Tabosa


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A - ENSAIOS E ARTIGOS CIENTÍFICOS


GREGÓRIO DE MATOS E O SÉCULO XVII Francisco Ivan da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Norte

O Século XVII. Estamos no ciclo da cana-de-açúcar; período de cultura e opulência do Brasil colonial; bastante suor, sangue e lágrimas correm e pingam nas caldeiras dos engenhos. Os versos de Gregório de Matos aparecem como chaves que abrem as portas da consciência colonial; seu humor e sarcasmo, o espírito crítico como procedimento paródico é a grande arma de conquista da época barroco/moderna. Nada há de separado ou intocado no contexto de sua poesia, exceto a liberdade crítica; em seu tempo, poesia e crítica social são uma e mesma coisa. Gregório não se coloca como servidor da igreja, do estado ou da Colônia; ele é o servidor crítico da linguagem e da poesia. A poesia e a sátira da moral e dos costumes eram empreendimentos libertadores e relacionados para Gregório de Matos, já que ambas criavam espaços para a “crônica” dos procedimentos e comportamentos das pessoas, das instituições, da política e da igreja na Colônia. Algo de tristeza com algo de terror Gregório de Matos pressentia. Todas as coisas que aconteciam na Colônia chegavam à sua vista; a escravidão sobre as terras dos engenhos de cana-de-açúcar se alastrava e se derramava como gotas de sangue pelos caminhos. É o ciclo dos navios cargueiros carregados de açúcar como recorda a história da Colônia. O vigor da cana-de-açúcar parece residir na consciência agora (trans)plantada. Floresce em forma de poema essa mesma consciência. É o poeta Gregório de Matos que surge; distinto, diferente, mas, legitimamente, brasileiro. Coloca-se em uma posição que faz ver a natureza e a qualidade da poesia brasileira com suas preocupações constantes e suas características temático-imagéticas. Ele nos abre outros caminhos entre as brenhas da Colônia; sua voz nos diz mais da própria vida brasileira. Junto a Don Luís de Góngora, Quevedo, Sor Juana Inés de la Cruz, Gregório de Matos é uma das grandes vozes do Século XVII; uma das grandes expressões do Barroco, no Brasil e, no espaço literário hispano seiscentista. A poesia culta era uma só na esfera do mundo hispânico. Nunca é demais repetir que o Brasil seiscentista era uma explorada colônia portuguesa e como tal estava sob o

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domínio do Rei de Espanha, período que se estende de 1580 a 1640. Diria: a poesia de Gregório de Matos faz parte de uma ampla tradição: a da poesia de Góngora e Quevedo; poesia de língua castelhana transcrita e transplantada para as terras do Novo Mundo, na época colonial. Assim, pode-se afirmar que a poesia colonial brasileira, a poesia da época chamada Gregório de Matos, foi a expressão de uma luta e devoração antropofágica; uma devoração cultural, polêmica, um debate consciente com o colonizador europeu, o homem de mentalidade civilizada, mas que queria ser americano. Processo que desde Oswald de Andrade, ou seja, desde o Modernismo Brasileiro de 1922 é denominado, “devoração cultural.” E quando se juntam essas gentes, essas diferentes culturas enlaçadas pela força da língua e da poesia que dela brota, perguntamos: é possível medir ou determinar valores e fazer simples comparações, maior ou menor, com respeito ao grau de produção cultural? As grandezas produzidas por esses poetas não se podem comparar ou medir; será bastante confrontá-las e cotejá-las. “Góngora e Quevedo, e antes de ambos Camões, que aos dois influenciou e já anunciava no maneirismo o código barroco, não abolem a contribuição diferencial — as diferências chamadas Gregório de Matos, Caviedes, Domínguez Camargo, Sor Juana Inés de la Cruz. Nesse sentido, não há ‘literaturas menores’, apassivadas diante do cânon radioso, do ‘significado transcendental’ das literaturas ‘maiores’”. A história da literatura, de um modo geral, especialmente, a história da literatura brasileira cujo estatuto romântico se firma em ideologias e que faz um percurso escatológico/diacrônico foi ao longo desses trezentos anos injusta com o Barroco e, por que não dizer, com a Poesia, em letra maiúscula, a Poesia de Gregório de Matos; mas é importante dizer que neste sentido uma nova história crítica vem sendo construída. Veja-se o fragmento que agora cito, anotado do livro de Haroldo de Campos1, expoente de vanguarda na literatura contemporânea unindo-se assim à tradição barroca, irritado com os detratores de Gregório de Matos e com a presunção e dureza de suas críticas: “Da perspectiva de uma historiografia não-linear, não-conclusa, relevante para o presente de criação, que tenha em conta os ‘câmbios de horizonte’ de recepção e a maquinação ‘plagiotrópica dos percurso oblíquos e das derivações descontínuas; a pluralidade e a diversidade dos ‘tempos’; as constelações transtemporais (porém não 1

CAMPOS, H. de. O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: O Caso Gregório de Matos, Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1989, Bahia.

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desprovidas de ‘historicidade’, como as vislumbrava Benjamin; dessa outra ‘perspectiva histórica”, Gregório de Mattos existiu e existe — viveu e pervive — mais do que, por exemplo, um Casimiro de Abreu (‘o maior poeta dos modos menores que o nosso Romantismo teve’, segundo a Formação, II, 194), e que hoje quase só pode ser relido como Kitsch (veja-se a paródia oswaldiana dos ‘Meus oito anos’); o frouxo e quérulo Casimiro que, tendo publicado As primaveras em 1859, foi contemporâneo exato de Baudelaire e de Sousândrade...” Gregório de Matos é o verdadeiro iniciador da literatura brasileira; é a voz brasileira; a poesia crioula do Brasil hispano-americano. Sua poesia crioula coincide com a acepção diferencial de Barroco americano conforme define Lezama Lima quando em seu livro La Expresión Americana aplica ao Barroco da América sua diferença e originalidade: é uma arte da “contraconquista”. E é um dos poetas mais importantes na tradição da poesia brasileira desde o Seiscentos até hoje. O que vale sublinhar: a poesia moderna brasileira, do Modernismo de 1922 à Poesia Concreta até à Tropicália evidencia uma série de coincidências temáticas e formais com os autores coloniais, que deixa supor um deliberado procedimento paródico/imitativo. Em defesa desses autores barrocos, especialmente, em defesa de Gregório de Matos, interviram expoentes de vanguarda, Oswald e Mário de Andrade, Augusto e Haroldo de Campos, o músico tropical, Caetano Veloso, que o reapresentou no cenário da ditadura brasileira da década de sessenta, defendendo-o das armas militares e de sua institucionalizada censura. É bem conhecido, citado e recitado em todas as antologias gregorianas o soneto, Triste Bahia, que Caetano pôs música e cantou nos palcos do Brasil na época da ditadura militar. Não cabe dúvida de que sua postura e seu canto tropical, — donde convergem muitas expressões e gestos teatrais, em cena evocando as volutas significantes da linguagem poética de Gregório de Matos. No tropical cenário brasileiro, em plena ditadura militar, um cantor tropicalista canta batendo as cordas de uma viola e de um berimbau e algumas fitas esvoaçam ao movimentar-se no palco quando em cena busca na velha cidade da Bahia suas antigas passagens e vielas. Trata-se de um soneto que aparece em uma atmosfera pesada, momentos difíceis que fluem em uma paisagem de ações e figuras convergentes. Leiamos e ouçamos o poema na voz de Caetano Veloso: Triste Bahia! Oh quão dessemelhante! Estás, e estou do nosso antigo estado!

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Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vejo eu já, tu a mi abundante. A ti tocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me tocando, e tem trocado Tanto negócio, e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sangue Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanhecesse tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! Um horizonte parece inclinar-se, a cabeça do poeta/cantor parece, também, inclinarse; de tristeza? As palavras se juntam ou coincidem com o real; metáforas que exprimem as diversas naturezas e condições dos homens em tão irritantes, e outras tão tolerantes. E, de ser bem ou mal, da exploração da cana-de-açúcar dependem as formas de vida da Colônia. E há o poeta Gregório de Matos, de olhos abertos fixados em seu tempo. Ele adivinhou toda a tristeza do Brasil naquele tempo da Bahia. A Bahia portuária que se abria e se fechava; que dormia sem dormir em seus engenhos moentes. As imagens do soneto traduzem uma consciência melancólica e inquietante. Tudo gira em torno de um centro de exploração comercial, escravidão, censura e suspeita... É a mesma situação dos que se dedicam à política da Colônia seiscentista e do Brasil, país, independente. Escreve Gregório de Matos, no século XVII; canta Caetano Veloso no século XX. Canta Caetano com o mesmo propósito de constituir como pensava Gregório de Matos, um protesto de liberdade e independência, protesto contra qualquer forma de repressão e poder. Da Bahia tomam o barco para o exílio; Gregório é exilado para África; Caetano é obrigado a deixar o Brasil e vai para a Europa, passa a viver exilado em Londres. Embarcando ao desterro o primeiro poeta brasileiro porta ao colo sua viola de cabaça feita por suas próprias mãos “e nunca sem ser visto nas funções, a que seus amigos o convidaram.” Conta-se. Pois, sim, através da leitura deste poema gregoriano, Triste Bahia, o leitor poderá sentir as sensações, terríveis e violentas que viveram Gregório de Matos e Caetano Veloso, ambos nascidos na Bahia, em tempos distantes, porém demasiado unidos e próximos pelos elos da poesia. Era o tempo em que se abriram muitos engenhos sobre os

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campos da cana-de-açúcar e o tempo das torturas tropicais feitas em trechos debaixo das sombras dos quartéis militares e dos gritos dos soldados em noites de terror. (Voltarei mais adiante a este soneto). Sinto o barroco como um contemporâneo; o barroco não significa apenas um período histórico; o Barroco é um estilo e um espírito, “o espírito” da literatura, um saber estar no mundo, um modo de ser e de dizer... O barroco é um sentir e um sentido, sentido que recupera outros sentidos em circunstâncias diferentes e sincrônicas. Gregório de Matos, (nascido na cidade do Salvador, em março de 1623, doutor em leis por Coimbra, magistrado em Lisboa e advogado na Bahia, falecido em dezembro de 1696?) autor seiscentista da idade do barroco, do período colonial brasileiro, ocupa um lugar polêmico e original na História da Literatura Brasileira, de sua origem ao contemporâneo. O espírito moderno/contemporâneo buscou n’Ele sua identidade nacional. Mas, desde já se pode dizer: a expressão poesia brasileira é complexa: poesia escrita por um poeta nacional ou poesia que de certa forma revela o espírito de uma época, a época colonial, a realidade ou o caráter do Brasil colonial? Sabe-se que Gregório de Matos é o mais brasileiro de nossos poetas; Ele é o primeiro na lista da formação da tradição literária brasileira e, no entanto, através de certos críticos ficamos sabendo que sua obra é de tal modo plagiada que seria inútil buscar sua identidade nacional... Se aquilo que a distingue é sua brasilidade a ponto de essa obra ser considerada de Crônica do Viver Baiano, isto consiste em não se identificar com nada da realidade colonial seiscentista. Assim, não seria um caráter geral, mas uma expressão poética bizarra, uma anomalia pessoal. Não diria que Gregório de Matos é o gênio nacional, mas sim que o espírito da época o aproxima de Góngora, Camões, Quevedo… Três poetas distintos, em uma época e, de uma época. Desde o princípio Gregório de Matos foi visto com desconfiança: teve admiradores e detratores. Certo é que, na História da Literatura Brasileira, Gregório de Matos é um autor sem precedentes. Escreve no idioma (poético) do século XVII, — brasileiro?— mas a brasilidade de sua poesia é tão duvidosa quanto a ideia mesma de poeta nacional. Certo é que a partir da cuidadosa edição de James Amado o leitor poderá desfrutar de sua poesia e vale dizer como o poeta Augusto de Campos: “enquanto se discute o q é e o q não é de gregório / nós vamos ler e viver ‘a poesia da época chamada gregório de matos’ / como bem disse james / em contato com a dura realidade social brasileira / de uma bahía amoravelmente infra-humana / gregório parte para uma linguagem realista e plebeia / q desmonta o metaforismo nobre e

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convencional / (pele=neve / dentes=pérolas) / a q ele mesmo submetia / é a musa crioula: […].2 Foi um poeta de temperamento apaixonado e incapaz de submeter sua paixão às regras da sociedade colonial em que vivia. Apaixonar-se e envolver-se nas dobras da política religiosa e social da Colônia estes e muitos atos assinalam sua vida e sua obra e tudo parece inscrever-se na paradoxal visão do século XVII. Gregório distante da Colônia parece percebêla mais próxima, busca nas margens a realidade central da sociedade e com esse artifício revela. Ao ler certos poemas/sonetos de sua vasta Obra Poética, precisamente, os mais cruéis e terríveis, não podemos evitar o riso. Sua sátira rasga o tecido moralista social. A voz do poeta ecoa pelas ruas da Cidade da Bahia, suas palavras tremem em sua boca, ardem, combatem e atormentam: Que me quer o Brasil, que me persegue? Que me querem pasguates, que me invejam? Não vêem, que os entendidos me cortejam, E que os nobres, é gente que me segue? Com o seu ódio a canalha, que consegue? Com sua inveja os néscios que motejam? Se quando os néscios por meu mal mourejam, Fazem os sábios, que a meu mal me entregue. Isto posto, ignoramos, e canalha Se ficam por canalha, e ignorantes No rol das bestas a roerem palha. E se os senhores nobres, e elegantes Não querem que o soneto vá de valha, Não vá, que tem terríveis consoantes. E não é de estranhar que se haja discutido tanto a existência desse Poeta, seu espaço na historiografia brasileira, bem como a autoria de uma Obra Poética dita de sua criação. Ao escrever sobre Gregório de Matos nós devemos ter em mente a original história de sua Obra: uma Obra apógrafa, recitada e transcrita de memória. Os textos que compõem a chamada Obra Poética de Gregório de Matos foram recolhidos de memória por anônimos daquele tempo. Leitores anônimos. Assim, podemos dizer: sua Obra Poética só é obra graças aos leitores 2

Campos, A. de. O Anticrítico, Companhia das Letras, São Paulo, 1986, p.87.

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anônimos que a escreveram e recitaram de cor, isto é, de memória. Nada mais barroco; nada mais popular; a memória é, naturalmente, barroca. É já um hábito dizer que Gregório de Matos é um plagiador; é certo, e deste tema brota a verdade desse Poeta cuja fama nos leva a descobrir que sua Poesia é a poesia de todos e de muitos autores. Seu procedimento é literário e, sem isto, corre-se o risco de não compreender sua Obra se se omite o gosto pelo plágio/paródia, procedimento tão comum entre os autores barrocos. O barroco é uma tradição que abusou e abusou do plágio e da paródia. Portanto, a Poesia de Gregório, inconfundível e peculiar, faz parte de uma tendência universal de um período histórico áureo da Literatura. E para nós aqui, falar de Gregório de Matos e o Século XVII, no Brasil, é o mesmo que falar da poesia de uma época chamada gregório de matos, A questão é tão antiga como a reflexão histórica mesma da origem da Literatura Brasileira; e não pode resolver-se sem Ele. É discutível, no período colonial brasileiro, a existência de uma poesia brasileira, não o é a realidade da poesia barroca. Não se quer negar com isso as tradições do Brasil com o sentimento popular, apenas é importante dizer que o barroco como estilo ou uma forma de discurso, isto é o barroco enquanto um discurso, conscientemente, artificioso é universal. Gregório de Matos inaugura a poesia do povo brasileiro. — Nacionalismo? Origem? Biografia? Vida e Morte? — A biografia de um Poeta do porte de Gregório de Matos já aparece em todo seu tempo e espaço escrita nas entrelinhas de sua Obra. Vida, paixão e morte estão circunscritas em seus versos. Só nessa conjunção de autor, obra e leitores, ainda que anônimos, é possível reconhecê-lo. Gregório de Matos nasceu na cidade de Salvador, na Bahia; e desde que começou a escrever logo remarcou sua paixão telúrica e penetração aguda nas coisas da terra. Nada mais brasileiro; nada mais telúrico. Neste sentido, ler Gregório de Matos hoje, é desnudar a principal vertente da Literatura Brasileira e regressar à origem. Em suma, sua Poesia servirá para talhar, detalhar e moderar o Poeta barroco/apaixonado que foi. Regressemos ao Século XVII. Antes de tudo, Gregório é toda a poesia do século XVII, no Brasil. Sua Obra é considerada Crônica do viver baiano seiscentista. “E houve quem assegurasse —escreve Araripe Júnior — que o Boca do Inferno com seus versos conseguira moderar o desregramento dos costumes e impedir que se incrementasse o desgoverno da Colônia”. 3 3

Júnior, Araripe. Gregório de Matos. In Obra Crítica de Araripe Júnior, volume II, 1888-1894, Ministério da Educação e Cultura – Casa de Rui Barbosa/Centro de Pesquisas; Rua São Clemente, 134 – Rio de Janeiro, Brasil.

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Seria inútil buscar em todo o período colonial outro poeta que não, Ele. Há muitos gregórios: há o Gregório erótico, o Gregório de poemas religiosos, o Gregório das sátiras, o Gregório burlesco, o lírico amoroso, o Gregório popular, o culto, todos configurados em um só poeta: Gregório de Matos. Podemos perceber pelo exame demorado de seus poemas que foi um homem, autenticamente, apaixonado; sua Poesia foi sempre uma provocação em um mundo de preconceitos sociais; em seu tempo despertou antipatias e inimizades, mas entre os modernos

e

contemporâneos

tem

despertado

interesse

e

aberto

perspectivas

historiográficas; e não há necessidade de imaginar como foi difícil sua vida, como padeceu na Bahia de seu tempo; basta saber que escreveu uma Obra Poética grande, do tamanho de sua paixão; paixão excessiva convertida em Poesia. Delicadeza piedade, devoção e ternura, são sentimentos visíveis em seus poemas de temática religiosa. Poesia cuja linguagem exibe os procedimentos barrocos. E de olhos abertos para sua Obra o leitor moderno aprenderá a decifrar esses procedimentos da linguagem da Poesia, em que rimam os escândalos com as solenidades e as sátiras com o lirismo e religiosidade. Gregório de Matos é um dos grandes poetas barrocos. Escreveu este poema, luxo de linguagem poética, um soneto emblemático, em sua Obra: O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo. Em todo o Sacramento está Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo. O braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, Assiste a cada parte em sua parte. Não se sabendo parte deste todo, Um braço, que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo.

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O fio condutor deste soneto é a metalinguagem investigadora acerca da forma em que as partes do poema se transformam em peças idôneas em combinação com sua construção total. Quem lê este soneto, a um tempo, em partes e inteiro, como um caos de palavras? Filósofos, teólogos e, acima de tudo, poetas. Lembro aqui Gilles Deleuze que compreendeu com visão moderníssima o barroco ao definir a filosofia de Leibniz nos termos de uma teoria que leva às últimas consequências a lógica das combinações, artifício, por excelência, da arte da memória. A este soneto segue outro com o mesmo assunto e dentro da mesma visão barroca da lógica combinatória. Entre as ideias de Leibniz por Deleuze celebradas vale a pena recordar aqui a ideia de dobra que se desdobra ad infinitum, ideia que expressa com grande lucidez o que realmente é barroco. E ante esse infinito de dobras o filósofo francês recorda o a ideia de mônada, conforme Leibniz: “A região clara de uma mônada se prolonga na porção clara de outra e, em sua mesma mônada, a porção clara se prolonga definitivamente nas zonas escuras, posto que a mônada expressa o mundo inteiro”.4 Mas voltemos a Gregório; pairemos no soneto acima transcrito. Soneto pictórico. Riqueza de imagens. Surpreendente desfile de imagens e edificante invenção formal. A concepção combinatória de partes que formam o todo; o mundo do mundo do poeta é barroco, por excelência; baseia-se na ideia das partes e do todo; as partes e o todo, tudo se acha enlaçado, inextricavelmente, sujeito a uma mesma lei, e com a totalidade através de infinitas relações. O que se produz em uma parte, isto tem relação com todas as demais partes. A forma do poema cria um sistema de correspondência, uma palavra tem correspondência interna e externa com todas as outras. O ritmo aqui é tudo na criação do poema; cada palavra posta no poema diz algo, o poema em sua natureza repartida em partes diz a si mesmo, em cada uma de suas partes diz o soneto como um todo. Poesia é antes de tudo ritmo. E por isto mesmo apreciamos a beleza do poema. No mundo colonial seiscentista há Gregório de Matos que escreve versos com profunda consciência poética. A linguagem do poema cria seu caráter barroco, procedimento que deixa o Poeta em sintonia com a grande poesia do tempo: o tempo em que se inscrevia com extraordinária perfeição. Gregório assim desafia os limites da Colônia e cria uma Poesia de caráter universal, barroco, a expressão mais refinada de seu tempo.

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Deleuze, Gilles. A Dobra, Leibniz e o Barroco.

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Gregório fala e escreve no idioma barroco. Gregório é nossa autêntica origem: origem barroca. Gregório é o Poeta antropófago que desde o primeiro instante da “descoberta” recebe, prova e assimila o “gosto” da refinada cultura europeia, especialmente, o gosto literário do Século de Ouro. Rompe os limites coloniais e anuncia, na forma de ritual antropofágico, a origem “crioula” da Poesia brasileira. (Nossa identidade nacional que será repensada e retomada mais tarde através do projeto radical dos poetas modernistas de 1922). Debaixo de um sol de ouro, dentro de um cenário tropical, Gregório de Matos irá temperar todo o gosto da cultura ibérica com expressões que aparecem logo em vários poemas transfiguradas por uma linguagem feita de novas cores, novos acentos e espantosas invenções verbais. É a voz inaugural da grande poesia; a voz da alta poesia no panorama da Literatura Brasileira. Sua poesia, produzida no Século XVII, tudo carrega, tudo converge e tudo reflete à sua volta desde a razão divina à religião, moral, erotismo, sarcasmo e costumes da época. Poemas onde esses temas se refletem e se encenam com maior realismo de linguagem. A variedade temática não causa confusão à compreensão geral de sua Obra: tudo se corresponde e se atualiza no que está bem e maldito na forma da expressão poética da Obra Poética de Gregório de Matos, considerada como Crônica do viver baiano seiscentista. Boca do Inferno, de onde saíam todas as coisas enlaçadas umas com as outras — poesias religiosa, satírica, erótica, amorosa, jocosa, burlesca, etc. Estampou em sua Obra uma verdadeira visão, em sentido religioso, social e moral da palavra. Visão teatral e barroca. Essa visão assombra, espanta, causa tristeza, orgulho, ufanismo e até vergonha. Como um homem seiscentista viveu como ninguém a crise de seu tempo, a crise do mundo barroco; crise que Ele mesmo expressa na confusão e ambiguidade de sentimentos — religioso, amoroso, erótico, popular, satírico, — que se reflete em sua Poesia. “Gregório fez da sátira o seu breviário: é ele no Brasil quem inicia o filão da farsa e do espírito destrutivo, com prejuízo de todos os preconceitos, do amor-próprio e da própria família, ao contrário do que se deu com o Pe. Vieira, que antepôs à sátira ‘as agudezas poéticas e a diplomacia’. É por intermédio deles e dos cronistas da época que poderemos reconstruir com grande fidelidade o retrato da sociedade brasileira do século XVII”. 5 Gregório é o Poeta 5

Spina, Sigismundo; A Poesia de Gregório de Matos / Introdução, Seleção Antológica e Comentários Sigismundo Spina; Prefácio Haroldo de Campos. — São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

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da Cidade da Bahia de seu tempo. Perceber a cidade, ter o olhar crítico sobre a cidade, perceber seu estado de crise é uma forma de compreensão barroca muito própria dos autores seiscentistas. Do Recôncavo baiano, Gregório de Matos através de seus versos saca a Bahia de seu tempo. Versifica sem parar; é o que poderá notar o leitor pelo exame apurado de sua Obra, tanto no plano da acumulação de metáforas quanto no plano dialógico de sua expressão verbal. Escreveu versos, romances, sonetos, poemas eróticos, poemas de cunho moral, poemas religiosos, costumes... Mapeia as praças e passagens da Cidade da Bahia, suas igrejas, conventos, sua gente, em um ir e vir de rimas e poemas jocoso-sérios com uma linguagem popular e, ao mesmo tempo, culta. Com Gregório nasce e cresce a Bahia, com ele nasce o Barroco, a raiz mais funda e fecundante da cultura brasileira. Uma vez mais cito Araripe Júnior:6 Gregório de Matos foi a floração da mais híbrida sociedade que tem havido no mundo, e, absorvendo tudo quanto a colônia no século XVII possuía de original e picante, como brasílio-europeu que era, deu o livro mais curioso que já saiu da pena humana.” Há nisto um ponto de enfoque que se poderia aclarar: a tradição barroca da cultura e da literatura brasileira que o Modernismo esboça com a imagem do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, Manifesto que abre desde então a consciência crítica para a origem e para a nacionalidade brasileira. É grande a importância do Modernismo: o Modernismo foi, por assim dizer, uma escola poética, onde Oswald e Mário de Andrade, principalmente, nos ensinaram a ver as obras de nossos autores barrocos coloniais, ou seja, a grande tradição barroca, ameaçada e arruinada, em fins do Século XVIII com o advento do Romantismo. Os modernistas de 22, no Brasil, destacaram as lutas históricas dos nossos barrocos coloniais; — aqui devemos lembrar os Inconfidentes de Minas Gerais — destacaram suas obras, direta, e indiretamente, tanto em ensaios, conferências, citações, nos manifestos, etc. Em sua concepção cultural e literária, a antropofagia é a forma de expressão crítica mais bem acabada de compreensão da modernidade barroca brasileira, e, neste sentido, não parece exagero dizer: Gregório de Matos é um contemporâneo de Oswald de Andrade. Essa contemporaneidade se chama sincronia poética e implica consciência crítica do(s) poeta(s) e o tempo em que vivem e escrevem; o tempo da poesia tanto quanto a poesia do tempo. A Poesia de Gregório de Matos foi, por assim dizer, um ponto de encontro entre os poetas

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Op. Cit. P. 390.

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moderno-vanguardistas. No Século XX Gregório de Matos será consagrado pelo Modernismo brasileiro de 1922 e pela Poesia Concreta e Tropicália. O tempo é um grande leitor de poesia. Mais tarde, em 1989, Haroldo de Campos o colocaria em seu retábulo barroco, de forma definitiva, com o livro: O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira. Com efeito, assumindo que a Poesia de Gregório de Matos é Poesia barroca, por excelência, devemos dizer que Ele carrega consigo todo o Século XVII, carrega um sentido de tradição natural do Barroco e todos os seus poemas celebram um ritual de comunhão antropofágica com os autores seiscentistas da Península Ibérica. Assim, a forma mais afim à sua natureza poética foi a paródia. Gregório de Matos não é um autor, mas, sim, muitos autores; os autores de seu tempo. O Gregório de Matos que escreve na Bahia do Século XVII é o grande Poeta barroco da Literatura Brasileira; é o Poeta que escreve assumindo, claramente, o caráter estilístico do Barroco: jogos de estilo das oposições, dos contrários, das antíteses. Junto a isto, sua perseguição infatigável da expressão popular, a base crioula de sua Poesia. Estilisticamente, segue Góngora, Quevedo e, naturalmente, parodia, Petrarca, Camões, Sá de Miranda. É o Poeta que imita e parodia o estilo de Góngora e Quevedo: Gregório, culterano, paralelo a Góngora; Gregório, conceptista, paralelo a Quevedo. Gregório de Matos escreve em comunhão com esses autores; os autores mais significativos de sua época, todos pertencentes a uma tradição de poesia. Escreve em comunhão com esses autores, e obedece a um procedimento de sistemática e consciente fusão entre a linguagem religiosa, satírica e erótica de seu tempo barroco; linguagem carregada de sensualidade, exasperação e blasfêmia. Em sua época, sem dúvida, Gregório lia Góngora e Quevedo; Certamente, lia seus poemas religiosos, eróticos e satíricos; escreve sob o signo desses poetas; em comunhão com esses autores, descobre e revela as paixões, vícios e costumes de sua gente; poemas carregados de censura de vícios e defeitos dos homens, inveja, luxúria, soberba, crimes, etc. E, eis aqui o Poeta, em versos claros, contemplando sua Bahia com ironia, assombro, angústia e até tristeza; eis aqui em um de seus poemas, uma definição da Bahia de seu tempo: A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar a cabana e vinha, Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro.

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Em cada porta um frequentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos Mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia.7 Notável poema de consciência histórica que carrega na linguagem sua verdadeira dimensão. Em sua visão se aliam a compreensão e a sátira. Este poema é, antologicamente, citado; parece um dos mais recitados poemas de Gregório de Matos. Claro, diz algo sobre um tema que preocupou o Poeta a vida toda. É um ponto de vista da Cidade da Bahia que nos revela uma visão dramática do presente colonial. Cada um de seus versos descreve com exatidão o estado em que se encontra a Cidade da Bahia. A Bahia passa a ser um símbolo da Poesia de Gregório de Matos. Qualquer acontecimento aí, por meio da linguagem jocosa, popular, carnavalesca de seus poemas se converte em um símbolo da situação original da Colônia e de sua gente. O espírito crítico é a grande conquista da Poesia de Gregório de Matos enquanto autor da época barroca. É intenso o espírito crítico de Gregório. Sua Poesia possui fortíssima veia por onde corre sua essência satírica e crítica; para Gregório de Matos, parece, nada existe de sagrado e intocável, exceto a liberdade de pensar e, pensar aqui é fazer Poesia crítica é fazer paródia. Gregório parodiou tudo, versículos bíblicos, salmos, discursos e orações religiosas, os dogmas da Igreja, parodiou Góngora, Camões, Quevedo, etc. A cidade e a sociedade seiscentista da Bahia estão presente na Poesia gregoriana como alvo de crítica; alvo de sua sátira. Qualquer leitor conhece algumas composições de Gregório de Matos e pode perceber a visão do Poeta sobre a Cidade da Bahia; pode perceber, facilmente, o mais visível de sua Obra; em suas composições mais populares predomina a ordem dos sentidos, o sensual, o sexual, o pornográfico, o obsceno, etc. E é isso que conta na poesia barroca. Os sentidos se 7

Matos, Gregório de, 1633?-1669? Gregório de Matos: Obra Poética / 2. ed. edição James Amado; preparação e notas de Emanuel de Araújo. — 2. Ed. — Rio de Janeiro: Record, 1990. Volume I, p. 33

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mostram, singularmente, apurados incitados e excitados. Em seus poemas burlescos e satíricos saltam aos olhos as ousadias, as irreverências, as obscenidades, as imoralidades... A visão que tinha Gregório da Cidade da Bahia era uma visão caótica, dramática, onde aparece uma gente usurpadora e imoral; a Bahia é essa gente, brancos e pretos misturados, e essa gente é, a seus olhos, um horizonte assombroso e ameaçador. Horizonte de altos e baixos relevos da história. O Poeta crítico faz Poesia crítica. É a época do Barroco; é a época em que a cidade da Bahia se ergue sob o signo do barroco. A Bahia é histórica e, culturalmente, barroca. Época de contrastes e contradições; uma época de crise; crise moral; uma época caótica, onde se cruzam os mais fortes contrastes, Deus e Diabo, morte e vida, oposições grotescas, etc. E Gregório de Matos vive essa crise intensamente; joga com os contrastes mais extremos. Ele é um homem barroco entre as contradições do espiritual e o mundo com suas provocações carnais e eróticas. Como homem barroco, vive as contradições entre a paixão carnal e o mistério da fé na encarnação de Cristo. Mas, ao sentir isto Gregório escreve sua Poesia com alta atmosfera erótica, carnal e sensual. Visão cristão da existência humana (des)velada por um sentimento transcendental temperado de vícios, sofrimento, culpa e desengano. Podendo-se vê-lo como um homem de profunda consciência culpada, refletindo, naturalmente, uma atitude bastante normal no Século XVII, quando a Igreja colocava em evidência a punição, penitência dos pecados e a confissão das culpas do homem. Este dado que o deixa não de todo convertido ao Catolicismo de seu tempo é, profundamente, moderno. Podemos inseri-lo, sim, dentro de uma tradição moderna de revisão sincrônica e atualização do barroco. E talvez, nisto, resida seu valor e que lhe dará atemporalidade e contemporaneidade e modernidade. Gregório é nosso Poeta barroco contemporâneo. Na verdade, valendo-se da paródia, procedimento poético típico do barroco, Gregório submete à sua crítica o clero, a alta sociedade da Bahia de seu tempo, amor, interesse pela riqueza, trajes, costumes hábitos, crenças, etc. Criticou a sociedade de seu tempo de forma, demasiadamente, severa. A tal atitude e oposição, em Gregório de Matos, como um autor barroco, correspondia uma especial tendência popular, espontânea para criticar, deleitar, divertir fazer rir e provocar censura no que se refere a instituições, personagens, moral, acontecimentos, etc. O leitor poderá compreender isto fixando-se nas palavras do seguinte poema pontuado por um mote de significante valor dialógico:

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De dous ff se compõe esta cidade a meu ver um furtar outro foder. Recopilou-se o direito, e quem o recompilou com dous ff o explicou por estar feito, e bem feito: por Digesto, e Colheito só com dous ff o expõe, e assim quem os olhos põe no trato, que aqui se encerra, há de dizer, que esta terra de dous ff se compõe. Se de dous ff composta está a nossa Bahia, errada a ortografia a grande dano está posta: eu quero fazer aposta, e quero um tostão perder, que isso a há de preverter, se o furtar e o foder bem não os ff que tem esta cidade a meu ver. Provo a conjetura já prontamente como um brinco: Bahia tem letras cinco que são B-A-H-I-A: logo ninguém me dirá que dous ff chega a ter, pois nenhum contém sequer, salve se em boa verdade são os ff da cidade um furtar, outro foder.8 Gregório de Matos é o Poeta a quem o povo chamou de Boca do Inferno. Só que enquanto corre essa lenda, sua Poesia vai se criando e existindo. Quanto d’Ele se aprendeu! Sabe-se que o padre Antônio Vieira se referendo a Ele, disse que “maior fruto produziram as sátiras do poeta que as missões dele jesuíta”. Mais que um simples homem que viveu na Bahia do Século

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Matos, Gregório de. Op. Cit. p. 38.

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XVII, é o Poeta crítico que implantou e decidiu os rumos da Literatura brasileira frente ao mundo colonizador e colonizado. Pois, bem, aí está sua Poesia como a marca original da Literatura Brasileira. No poema, acima citado, chama a atenção o uso vulgar das palavras que apontam, impiedosamente, para um espetáculo grosseiro. Poder-se-ia dizer que até as volutas das palavras, das sílabas e das letras, na boca do Poeta, se acham incorporadas a esse espetáculo. Por sua dicção e por seu idioma, é um poema plástico, uma crítica à sociedade seiscentista da Bahia. Escarradas barrocas atiradas fora pela boca de Gregório de Matos. Boca do Inferno que cospe e escarra o amargo de sua sátira. Garganta cruel que vomita o fel amargo da ironia, matéria prima de sua Poesia barroca. A vida colonial dessa sociedade grosseira se apresenta como teatro em presença de Gregório de Matos. Nada mais escandaloso no cenário da Bahia seiscentista. Sensualidade e desejos carnais expostos e proclamados à maneira reveladora de uma prática. Que sentido poderiam tomar ou tomaram as palavras deste poema para os homens do Século XVII? O poema que acabamos de recitar é de obscena transparência. O sentido obsceno se insinua em todos os versos. O detalhe de suas revelações concretas deixa bem visível a Cidade da Bahia com sua libertinagem e vida sexual. Revela um mundo de falhas, faltas, crimes e “pecados” cometidos pela sociedade da Cidade da Bahia. Revela um mundo de práticas pecaminosas cometidas por uma parte da sociedade seiscentista da Bahia. E para que não duvidemos das condições retratadas e interpretadas pelo Poeta, recitemos outro soneto, esta joia de soneto, Triste Bahia, de belíssima visão plástica. É um poema triste, suas palavras são sensíveis: podemos ler, ouvir e cantar. Vejo este soneto como um lamento que clama, grito de alerta, em uma estação sombria. Sim, este soneto é a voz da poesia de Gregório de Matos, voz que não deve ser esquecida, e, esquecê-la é uma atitude traiçoeira. Foi gravado e cantado por Caetano Veloso, em um Long Play lançado na década de 70, Transa, e evoca a visão do Poeta e do Artista, inclinados ao pessimismo frente à sua Cidade natal. O soneto está salpicado de notas de melancolia, de ironia e de lamento. O discurso de Gregório de Matos neste soneto é, perfeitamente, dirigido em função de seu tempo. Ocorria algo semelhante entre o tempo em que o Poeta escreveu este soneto e o tempo em que Caetano Veloso o interpretou nos palcos da Bahia ao som de viola e berimbau com a sua fantasia tropical? Leiamos: Triste Bahia! Oh quão dessemelhante!

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Estás, e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vejo eu já, tu a mi abundante. A ti tocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me tocando, e tem trocado Tanto negócio, e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sangue Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanhecesse tão sisuda Que fora de algodão o teu capote!9 Poema da realidade. Poesia cuja essência é a verdade de carne e osso; verdade de um povo que é a pedra de fundação da história do Brasil. História remarcada por um usurpador que ocupou o poder durante o caos provocado pela colonização. Em uma Colônia atrasada e atormentada pelos ventos da exploração onde os valores naturais se dispersam e viram cinzas. Crítica, por excelência, desse estado, a Poesia de Gregório de Matos reflete sempre a realidade; a mesma realidade que a cria. Duro contexto social brasileiro retratado em forma de poema; contexto social retratado através de uma linguagem, criticamente, realista. É o rosto da Cidade da Bahia; rosto desfigurado, transparecendo seu estado infra-humano. A atmosfera deste poema é o ambiente colonizado de exploração social da Bahia. Lamento de um poeta que olha com olhos críticos para sua Cidade desfigurada. A culpa de tudo isto o Poeta vê no progresso. Em nenhum momento Gregório mostra a Bahia de sua época através de uma perspectiva satisfatória de progresso, porém, como um movimento de mudança e incidentes funestos. Há uma vaga nostalgia da ausência... Ou, um sentimento de desilusão e desengano. É possível ver, neste poema, o espírito de uma época, uma identidade crítica da realidade social de uma época. — Leiam o poema, escutem a canção de Caetano Veloso. — A canção de Caetano Veloso ao som de viola e berimbau à maneira popular evoca outro tempo, é uma evocação; Caetano evoca a visão mais importante de Gregório de Matos: o Poeta barroco popular que nas cordas de sua viola de cabaça, fabricada pelo próprio punho, canta o 9

Matos, Gregório de. Op. Cit. P. 333

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drama de sua gente injustiçada e leva a refletir sobre a circunstância do estado colonizador. Por sua forma de expressão, perante a realidade refletida no poema podemos ver todas as ameaças e perigos do estado colonial. Caetano canta um poema do passado com a tonalidade tropical de sua época e recria assim o poema gregoriano através de uma linguagem atual. Caetano nos leva a outro tempo; o tempo de Gregório de Matos, a temporalidade barroca da Cidade da Bahia do Século XVII. Ou, Caetano Veloso nos traz de volta para nosso tempo o Poeta Gregório de Matos: abre nossa consciência para a realidade do nosso tempo real. Ou seja: faz do poema gregoriano uma canção ideal em estado sensível de censura ideal. Postura radical e transgressora, e, profundamente, crítica/renovadora, pois, o homem que vive o presente e só vê seu tempo, encerra-se em si mesmo, não abre os olhos para si mesmo nem quer ver outro horizonte. Versos, aparentemente, simples se enchem de sentido; sentido político, sentido social, sentido crítico, sentido urbano, moderno, dramático, caótico... A atitude de Gregório não seria outra senão a do Poeta crítico de crítico olhar sobre a cidade; a cidade é sua gente. (Gregório mais parece um exilado dentro de sua própria terra, no meio de sua gente). Neste sentido, pode-se dizer que a Poesia de Gregório de Matos inscreveu-se, precisamente, sobre a noção de crítica; crítica a tudo o que era considerado sagrado ou intocável. A Bahia enfrenta sempre mais a crítica e o sarcasmo de Gregório de Matos que, como escritor barroco contempla um quadro funesto da Bahia. Seu olhar sobre a Cidade da Bahia é notório. A sua visão do estado da Bahia é remarcada (semi)ótica, significantemente, funesta, uma atmosfera de pessimismo urbano; pessimismo que se exprime, igualmente, como os autores barrocos de seu tempo como identificação de crise, ruína, destruição e denúncia; e essa identificação de crise e ruína só pode desembocar em um estado de nostalgia; nostalgia tão natural nos autores barrocos. Em suas direções mais diversas, a cidade foi o ponto focal dos autores barrocos. A visão que tiveram os autores barrocos da cidade é teatral, monumental, violenta e moderna; criticamente, moderna. E Gregório de Matos está aí, no meio da Cidade, no centro da Cidade. Gregório é a língua, os ouvidos, os olhos e a boca do povo baiano ao mostrar o que foi, no Século XVII, a vida na Colônia. Ele nos faz ver e refletir a imagem de uma colonização onde se desenvolveram muitas lutas, muitas derrotas, muitas injustiças e muitos sofrimentos. Edificou com sua Poesia a Cidade da Bahia de seu tempo. Fez ver algo mais sobre a Cidade: desafio real do mundo social colonizado; mais ainda, compromisso de fidelidade à sua gente,

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a seu povo. Isto implica uma visão universal que não esconde a realidade local e não nos deixa isolados em uma existência colonial/fechada. Portanto, o panorama da Cidade da Bahia tem sua paisagem assinalada pela expressão mais alta de sua voz: Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanhecesse tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! Poesia. Precisamente, porque sua Poesia mesma constitui seu único ponto de partida. Gregório de Matos por instinto e sensibilidade artística penetrou e se relacionou de modo crítico com a Bahia do Século XVII e aí mesmo, na cena do barroco seiscentista, descobriu o cenário e a matéria original de sua Poesia. A Cidade da Bahia é o ambiente propício à Poesia de Gregório de Matos. O estado colonial que nasce e se desenvolve no seiscentos é o estado da criação poética de Gregório de Matos: aí Ele cria sua Poesia e esta Poesia mesma influencia esse estado. Em sua Poesia, é muito aguda a consciência do estado da Colônia e de sua condição atual, mas sempre percebido como crítica, falta e ausência de outro. O poeta penetra na realidade, o passado, o presente e o futuro. Seja visto e bem dito: o estado da criação poética de Gregório de Matos é o estado original da Literatura Brasileira. Augusto de Campos escreveu estas palavras que vão mais além de qualquer discussão em torno de nosso Poeta. Disse: “Sem a boca do inferno do nosso primeiro antropófago, esse baiano e estrangeiro que deglute e vomita o barroco europeu e o retempera na mulatália e no sincronismo tropical, não há formação — por mais bem intencionada — que informe o que há de vivo por trás dessa coisa engraçada chamada literatura brasileira”. 10. Gregório de Matos moldou e ergueu sua Poesia no idioma da época. O idioma culto dos autores barrocos, de fundamentos greco-latinos. Escreveu no idioma de seu tempo; um idioma culto e ibérico, sem deixar de mesclar esse idioma culto com toda classe de desafios linguísticos com o repertório lexicográfico brasileiro, onde realçava sua originalidade com seu sotaque nítido, com sua dicção pessoal e uma contaminação exagerada de expressões e palavras do tupi e do africano, carregando assim a sua linguagem com fortes pinceladas das 10

Campos, Augusto de. Da América que existe: Gregório de Matos. In Gregório de Matos /Obra Poética, Vol. II, Edição James Amado / Preparação e Notas, Emanuel Araújo, Editora Record, 1990, p.1296.

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cores brasílicas fazendo transparecer o barroco tropical da paisagem brasileira em sua natureza, em sua realidade linguística, social, religiosa e cultural. A língua enquanto corpo vivo faz ver a realidade que a incorpora, e, a própria realidade leva o Poeta ao estado de Poesia. Por sua vez, a Poesia leva à descoberta do povo, da gente. Triste Bahia. Ao ver a gente, enfim, o estado da Bahia, a visão do Poeta se torna consciência histórica. Um estado visto com os olhos do Poeta, visão ampla: crítica e criativa. Uma visão fotográfica, instantânea, parecendo utópica — utópico é o barroco com seu olhar infinito e transcendente — também, um olhar, uma visão sensual, material e realista, combinando sensações e estado de espírito a elementos externos e díspares. Há toda uma série de poemas, romances, sonetos escritos pelo Poeta, que, de modo bastante claro, transparecem relações amorosas ilícitas, referências a personalidades do tempo, pessoas do clero, do alto escalão social, etc. O leitor se dá conta de que esses poemas estão escritos em um código barroco, um código ambíguo, inclusive de simbologia religiosa, mas com alta atmosfera satírica, sensual, erótica e obscena. Poemas de temática erótica, burlesca, temática essa envolvida em uma linguagem religiosa ou, ao contrário, o erótico e burlesco envolvidos de religiosidade. Assim como os nomes de damas e freiras estampados em seus romances e sonetos, no tocante à observação de seus encantos e beleza. É importante ressaltar que na sátira se cruzam e se mesclam as vertentes religiosa e erótico-amorosa da Poesia gregoriana. Gregório necessita de veneno para temperar sua Poesia; e este veneno o faz picante na cena do barroco, e aos olhos do leitor moderno. Em Gregório de Matos, criação e crítica é a mesma coisa. Poesia crítica; crítica dos códigos estabelecidos. Gregório não se coloca jamais como um servidor desses códigos, não se posiciona como um escritor subjugado aos padrões da Igreja e do Estado Colonizador; ele é o artista da linguagem e sua Poesia é antes de tudo crítica da linguagem; Linguagem pessoal de colorido nítido, reproduzindo de forma extravagante e grotesca tudo quanto possível em seus versos. Disse Augusto de Campos: “Gregório de Matos Guerra era um artista completo/ poeta dos 5 sentidos / como disse Lorca de Góngora / com mais aquele 6º sentido q a Bahia dá”.11 Gregório, ao lado de tantos outros poemas sobre a Cidade da Bahia, escreveu esta preciosidade, um detalhe de sua sátira e de sua Obra maior. Preciosidade que ficou famosa:

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Campos, Augusto de. O Anticrítico / Augusto de Campos. — São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

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A nossa Sé da Bahia, Com ser um mapa de festas, É um presépio de bestas, Se não for estrebaria: várias bestas cada dia vemos, que o sino congrega, Caveira mula galega, o Deão burrinha parda, Pereira besta de albarda, tudo para a Sé se agrega.12 Embora seja um poema bem conhecido, recitei aqui para melhor compreensão das ideias deste ensaio. O poema é um emblema de sua poesia satírica. Também de sua visão da Cidade da Bahia. Cada verso é uma censura e advertência. Trata-se de uma alegoria de insatisfação irônica. Ironia que faz rir... Ironia de ver sua Cidade assim. O Poeta se resigna em ver? Pergunta que para responder é preciso ler para ver segundo o olhar do Poeta. Vivendo nesse cenário, um cenário de convenções e crenças que não o deixam satisfeito e tanto menos convencido e ajustado, tudo o que não lhe convence e a ele não se ajusta é motivo de crítica e sarcasmo. Vale dizer: o tema da alegoria satírica aparece em toda a Poesia de Gregório de Matos e, é natural que esta forma de expressão apareça em sua Poesia religiosa e amorosa, também. Há algo, em Gregório de Matos, que une esses mundos, (religioso, erótico, amoroso) aparentemente distintos: a paixão. Seu mundo é feito de contradições, de vícios, de propósitos de correção, violências, críticas e sarcasmos. Quem poderia bitolar sua liberdade de expressão ou dobrar sua língua em qualquer ocasião, quer religiosa, amorosa ou erótica? A Poesia de Gregório de Matos reflete uma realidade concreta e complexa de nossa formação. O que disse acerca de nossa colonização foi retomado pelo Modernismo e aplicado e exposto como manifesto pelas vanguardas brasileiras. Escrevemos sob o signo de Gregório de Matos para quem escrever era provocar a vida e despertar os ânimos contra o terror e mentira dos poderosos; gritar nas praças públicas e nas esquinas contra as decisões falsas dos dirigentes. E, como logo recordamos, por isto mesmo, Gregório de Matos tornou-se conhecido como o Boca do Inferno por sua língua de serpente que a todos destilava seu veneno. Há quem diga que esse epíteto lhe veio por 12

Matos, Gregório de, Op. Cit. p. 195

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empréstimo, extraído de um soneto de Lope de Vega (Madrid, 1562-1635) contra um autor italiano, escritor de sátiras que, conforme se sabe, cultivava o hábito de falar mal dos espanhóis, Bocalini, el Boca del Infierno. Cabe aqui recitar o soneto que, segundo edição consultada, traz o título A los Raguallos de Bocalini:13 Señores españoles, ¿qué le hicistes al Bocalino o boca del infierno, que con la espada y militar gobierno tanta ocasión de murmurar le distes? El alba, con que siempre amanecistes, noche quiere volver de oscuro invierno, y aquel Gonzalo y su laurel eterno, con quien a Italia y Grecia oscuricistes. Esta frialdad de Apolo y la estafeta no sé que tenga valentía, por más que el decir mal se la prometa; pero sé que un vecino que tenía, de cierta enfermedad sanó secreta poniéndose un raguallo cada día. Talvez a citação deste poema aqui nada acrescente à discussão em torno de Gregório de Matos, o Boca do Inferno. Talvez isto não necessite de provas nem de demonstração. No entanto, e, sobretudo pelo prazer de ler vale a pena citar o soneto de Lope de Vega (15621635). Verdadeira ou falsa a origem prosaica do epíteto gregoriano, empréstimo ou plágio, o certo é que Gregório de Matos como podemos dizer, parafraseando, parodiando e imitando é a figura central do Século XVII colonial brasileiro, pois é ele quem abre a cortina do cenário da Bahia seiscentista com sua sátira e sua ironia risonha, o mundo moralista, falso e ilusório construído pela sociedade de seu tempo. Seu sarcasmo radical aos contemporâneos da Colônia e da Corte, se assim podemos pensar, foi um instrumento para desconstruir hierarquias onde se asseguravam certos valores religiosos, morais e sociais. A sátira assume importância capital na Poesia de Gregório de Matos. Há quem diga — e, eis aqui mais uma

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Veja, Lope de. Obras Escogidas/Tomo Segundo; Poesias Líricas – Poemas – Prosa – Novelas; Estúdio Preliminar, Biografia, Notas y Apéndices de Federico Carlos/ Sanz de Robles; M. Aguilar Editor, Madrid, 1946, p. 331.

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lenda que corre sobre o Poeta — que o Boca do Inferno com seus versos conseguira moderar o desregramento dos costumes e impedir que se incrementasse o desgoverno da Colônia. Poeta de visão, lúcido, livre, pensa e diz o que sente. Seus versos têm muito veneno. Leva às últimas consequências esse veneno a ponto de exagerar nas expressões verbais. E, sem sombra de dúvida, essa sátira gregoriana se mescla na direção dos gêneros específicos de sua Poesia, religiosa, erótica ou amorosa como, normalmente, é classificada. E desde já é possível afirmar: Gregório de Matos não existe isolado; não existe poeta solitário. Gregório de Matos é um homem de seu tempo e, como poeta é o produto da Poesia Barroca de seu tempo. Assim, é preciso entendê-lo dentro do cenário da vida cultural da Europa seiscentista, e, principalmente, da Colônia quando se pretende compreender seus giros poéticos, suas paráfrases, seus pastiches, suas paródias, seus plágios, certas posições ideológicas e pontos temáticos com que o Poeta escreveu sua Poesia ou se colocou como homem de seu tempo. Gregório de Matos é um Poeta que tem consciência de sua realidade. Sabe que é poeta, Parece saber que escrever sobre a realidade de seu tempo é seu dever e seu destino. Sabe que só Ele mesmo nos dará a visão do estado original da formação brasileira. Ele é a consciência crítica da Poesia Brasileira Seiscentista. Ele é o signo da Alta Poesia Barroca, o signo da Poesia europeia que se transplanta para o Brasil, encontra terra fértil e então cresce. Oswald de Andrade, o poeta antropófago de nosso Modernismo, o crítico/poeta para quem os problemas da cultura brasileira deviam resolver-se de forma crítica — ritual antropofágico, comunhão — sabia de nossa originalidade e começo. E afirma: “O Brasil literário começou em ponto alto. Portugal no século dezessete era um dos quatro países cultos da Europa e sua língua vitoriosa possuía gramática e dicionário. O que trouxeram para cá os missionários, os navegadores e cronistas respirava a atmosfera da poesia de Camões. O que veio, já veio feito. E tivemos uma curiosa transposição, o consciente e o formal, antes do inconsciente que constitui o substrato de toda a literatura.”14 Estamos em uma época, a época das utopias, época barroca, de crises e contradições. “O Estilo Utópico seria o Barroco”.15 É a época das descobertas. Portugal e Espanha singram os mares nunca antes navegados. Ampliam e remarcam fronteiras. Tudo se comunica. No mar da poesia não há limites. 14

Andrade, Oswald de. (1890-1954); Conferência pronunciada na Biblioteca Pública Municipal de São Paulo, em 1945. Cf. Boletim Bibliográfico, ano II, v. VII, abril-maio-junho de 1945. 15 Andrade, Oswald de. (1890-1954); Descoberta da África; in: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias; Obras Completas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1970, p. 223.

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E Espanha por esse tempo imperava, e cultivava o gosto da Poesia Barroca; reflete-se a Poesia de Góngora e de Quevedo. É o Século de Ouro Espanhol. Um Século de crise, crise de sensibilidade, crise marcada pela luta entre Reforma e Contrarreforma, crise que abala as convenções e certezas. O mundo com suas metáforas em claro-escuro; o mundo com suas sombras, fantasmas, imagens ilusões... Vamos do já dito ao dito: o barroco constituía o código universal mais elaborado da época; o gosto pelo gongorismo florescente e cultivado em toda Península que se movia sob o signo da Contrarreforma. Era o tempo em que se fortalecia cada vez mais o poder da Santa Inquisição e se debatiam certos temas políticos e religiosos, como por exemplo, o poder da Inquisição, a Educação Jesuíta; temas esses debatidos e revestidos da pomposa e exuberante linguagem do barroco. O principal personagem desse cenário é Dom Luís de Góngora, o Senhor Barroco. Deixou para o leitor/poeta moderno uma Obra edificante de poesia. “Si toda inspiración se resuelve en una construcción, y eso es siempre el arte, lo típico de Góngora es la abundancia y la sutileza de conexiones que fijan su frase, su estrofa. Nunca poeta alguno ha sido más arquitecto. Nadie ha levantado con más implacable voluntad un edificio de palabras. El impulso implícito en cualquier arte como tal ha llegado en las obras mayores de Góngora”. —Disse Jorge Guillén.16 Foi criticado e imitado por todos. Na cena do barroco não há maior expressão que a expressão de sua própria Poesia. Elevou a Poesia à categoria de Poesia Pura e, como personagem solitário, assiste a um público não esclarecido, que o julga de Poeta obscuro/hermético. Anjo das trevas que ilumina a Poesia até nossos dias. Góngora continua hermético para os que ignoram o código da Poesia Barroca; para os que ignoram sua sintaxe moldada de acordo com a sintaxe da poesia latina. Góngora continuará obscuro para os que ignoram a mitologia greco-latina, a mais legítima origem de sua Poesia. Estamos diante de um ponto chave para compreender a Poesia de Góngora: não existe poesia obscura ou hermética; existe, sim, poesia difícil, de alto repertório, que exige do leitor alto repertório, também. Seus poemas possuem a polidez da pérola, o brilho nacarado da pérola, o corte refinado, a melancolia, a solidão, a nostalgia, a utopia, o relevo e as cores das construções de seu tempo; o tempo barroco. Leitores e poetas, todos os que liam a Poesia de Góngora o absorviam e devoravam. A polêmica sobre sua Poesia criou o Gongorismo. O Gongorismo é expressão que resume a tradição a que Góngora se liga: a tradição greco-latina

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Guillén, Jorge. Lenguaje y Poesía; Alianza Editorial, S.A. Madrid, 1992, p. 38.

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de poesia; eis, pois, a tradição de Don Luís de Góngora. E assim, uma vez mais, na historia da Literatura Universal a criação poética se nos revela como algo superior, uma ética cuja matéria cultivada é a Poesia da época barroca. Foi enorme e constante a influência gongorina na literatura do Ocidente; gosto que já Gregório de Matos, no Brasil, Sor Juana Inés de la Cruz, no México, bafejavam e saboreavam na natureza tropical das Américas. Penso aqui na tradição e herança de Góngora. A herança poética que nos legou. A Geração de 27, na Espanha é testemunha: Lorca, Gerardo Diego, Luís Cernuda, Salinas, Jorge Guillén, Dámaso Alonso... Aqui no Brasil, João Cabral reivindica para si parte dessa herança, também; disse que era filho espiritual desse poeta do Século de Ouro. E com isto nova poesia surge. Há famílias de poetas; há gerações de poetas que arrastam as mais antigas tradições. Poetas que levam a outros poetas... Rigoroso horizonte. Seja o que seja o ponto de vista poético em que Gregório de Matos se situa, certo é que Ele bebeu em fontes gongóricas. A leitura cuidadosa de sua Obra nos faz ver que seus temas burlesco-eróticos estão colados em Góngora. O colorido do ambiente que nosso Poeta faz aparecer, as figuras clericais às quais o Poeta traça seus próprios perfiz, a jocosidade, o desnudamento erótico dessas figuras, tudo se liga a Góngora. Os elementos barrocos encontrados em sua Poesia existem, da mesma forma em Góngora e Quevedo. Em todos os escritores do Século XVII predomina a luta entre forças contrárias... Reler a Poesia de Gregório de Matos é penetrar nas ruínas barrocas e escutar seus ecos e reflexos. O barroco foi nosso começo; o começo da história brasílica. Foi a hora de Gregório de Matos em seu tempo; o tempo da Poesia barroca. Hora fantástica do nascer da Poesia Brasileira, hora tropical, meridional de nossa sensibilidade e inteligência artística; inteligência transplantada e devorada, antropofagicamente, sob os trópicos; hora amarga, mas, também cheia de saberes e sabores; os saberes e os sabores da poesia e da tradição peninsular europeia. A Poesia Brasileira nasceu nessa hora; a hora de Camões e Góngora; e por isso somos sensíveis a essa hora de nossa história. É preciso sublinhar: esse momento histórico é o momento onde ardem as vísceras e a alma desencarnada de Gregório de Matos, indivíduo único, em pleno solo baiano, onde sua vida e sua Obra mesma se conectam como novo eco. Graças à sua paixão e fome antropofágica a Poesia Barroca penetrou no Brasil trazendo consigo toda uma nova mentalidade. Isto implicou uma luta contra preconceitos e práticas que circulavam na Colônia. Nascemos sob o brilho pleno do Século de Ouro da

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Literatura Espanhola; o Século de Dom Luís de Góngora; também, o Século de Gregório de Matos; cada poeta tem seu tempo, sua luz própria e espaço e a Poesia é a matéria que os une e reúne sempre e per omnia sæcula sæculorum. Nota-se, pois, como Gregório dentro de seu mundo e em seu tempo articula e utilizou o idioma barroco fazendo a intersemiose ou a mestiçagem de signos e culturas. O mundo de Gregório de Matos foi, em seu tempo, bem mais vasto e mais estreito, um mundo de linguagem e de realidades um mundo feito de contrastes e oposições e Ele viveu tudo isto com sua consciência; uma consciência crítica e solitária frente à Cidade, à Colônia e sua história. A paródia foi o procedimento perfeito nessa articulação intersemiótica de códigos. Nesse mundo vasto e estreito, e em suas circunstâncias, não há mais diversão e entretenimento que fazer paródia, como se tratasse de um espetáculo do mundo em que vivia. Todo poema de Gregório de Matos é um espetáculo paródico que apresenta outros personagens mais além da linguagem. A paródia que Ele cria dá um sentido mais ambíguo à palavra revelando assim outras realidades. E fez este soneto parodiando Camões:

33 Sete anos a Nobreza da Bahia Serviu a uma Pastora Indiana e bela, Porém serviu à Índia, e não a ela, Que à Índia só por prêmio pertendia. Mil dias na esperança de um só dia Passava contentando-se com vê-la: Mas Fr. Tomás usando de cautela, Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia. Vendo o Brasil, que por tão sujos modos Se lhe usurpara a sua Dona Elvira, Quase a golpe de um maço, e de uma goiva: Logo se arrependeram de amar todos, E qualquer mais amara, se não fora Para tão limpo amor tão suja Noiva.17 Como não recordar a imagem gravada no poema de Camões? Ou, a imagem bíblica de Raquel, gravada no coração de Jacó? A tradição bíblica foi bastante cultivada pelos autores 17

Matos, Gregório de. Op. Cit. p. 678.


barrocos. Ao longo da Poesia gregoriana escuta-se o eco bíblico, alusões e paródias como neste poema de Camões. Refiro-me, exatamente, ao soneto por demais conhecido: Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana e bela; Mas não servia ao pai, servia a ela, E a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contendo-se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assim negada a sua pastora, Como se a mão tivera merecida, Começa de servir outros sete anos, Dizendo: — Mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta vida! Os dois poemas, tanto o de Gregório de Matos quanto o de Camões, são dois momentos da mesma tradição. Ambos os escritores têm em mente o texto bíblico. Lemos um e outro poema. Vemos e sentimos um poeta através do outro. Ambos refletem o texto do Antigo Testamento. Claro, o poema gregoriano está contaminado de um sentimento oposto. Construção conceitual e paródica onde se desenvolve o sentido da paródia do texto consagrado até o desdém. E, como em toda sua Poesia, se cruzam as marcas satíricas, amorosas, religiosas chegando ao burlesco. Gregório de Matos dominou as formas cultas da tradição ibérica além das formas chamadas populares. Imitou como imitaram outros poetas barrocos. Imitar era norma poética no tempo de Gregório de Matos. E aqui está nosso poeta com as qualidades que o fazem Poeta. A forma usada, a economia de palavras, a justeza do tom, a simplicidade e a sutileza do riso, o humor e revelações espontâneas, sua dicção e a dicção do outro poeta, seu lirismo e o lirismo camoniano... Se imitar foi o pecado de Gregório de Matos, nosso Poeta do tempo barroco, a ignorância e incompetência crítica de seus contemporâneos foi um pecado maior que sequer merece perdão.

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A Poesia de Gregório de Matos é, inteiramente, paródia. Vale dizer: Gregório como todos os autores do Barroco, aventurou-se neste procedimento erudito, tão antigo e tão moderno de criação literária. Portanto, deve-se considerar que, no Século XVII, o conceito de plágio e a recorrência à imitação literária constituía uma norma prática entre os escritores. Poesia nasce de Poesia. Na Poesia, na Alta Poesia, os poetas dialogam em razão e paixão, ciência e fé e se elevam até a excelsa altura. Compreende-se cada vez mais por que chamam plagiário ao Poeta Gregório de Matos. Sua Poesia é a Poesia da descoberta; a descoberta de outro poeta, de alguma obra, de algum poema; a descoberta é poética, pois, implica leitura; leitura de Poesia. Os poemas de Gregório de Matos são chaves para a descoberta e compreensão de outros poetas e de outros poemas; de outros textos, de outros temas ideias e pensamentos. Um bom leitor de Poesia insistirá nessa chave. Uma chave de abertura que nunca irá revelar tudo; pois, trata-se de uma chave poética e, como tal, sua arte é, também, simulacro insinuação, sugestão, evocação, alusão, elisão, pausas, cortes, e até censura; alta censura. Neste sentido, é preciso ter em mente que a paródia gregoriana, é sempre crítica, censura, sátira, transgressão e, assim, implica em troca de signos e símbolos, muda e transforma valores; o sagrado torna-se profano; o alto é rebaixado. Isso levado ao extremo, no caso de Gregório de Matos, produz-se algo violento em termos de mudança. Abre-se um cenário terrível no tocante aos costumes, hábitos, moralidade da sociedade de seu tempo. Prenúncio de vanguarda. Prenúncio de nossas vanguardas. Os poetas modernistas de 1922 foram os primeiros a perceber a Poesia gregoriana... Depois, os Poetas Concretos, a Tropicália, cada um a sua maneira, projetam a subversão da vanguarda de seu tempo. É a modernidade. O Modernismo brasileiro, de Oswald de Andrade até as vanguardas mais recentes, Poesia Concreta, Tropicália, revelaram, por exemplo, um Gregório antropófago, um poeta selvagem, no cenário tropical seiscentista, temperando a comida do outro com o tempero tupi a ponto de despertar cobiça, não em vão, ao bom apetite e desejo de outros. A Poesia foi o recurso que Gregório de Matos utilizou para transcender seu conflito em seu tempo. Nem a vida social nem a religiosa ofereciam a Gregório de Matos satisfações emocionais, intelectuais e sentimentais. É o poeta da melancolia e da angústia barroca da época colonial brasileira: blasfema e faz versos de fé e piedade. E, quanta ternura em seus sonetos da piedade! Quanta ternura! Gregório se confessa e declara seu ato de contrição em forma de paródia. Seus poemas rituais mais parecem anunciar a hora crepuscular de sua vida,

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a hora em que a luz se apaga nas sombras. Vejamos este célebre soneto, onde o Poeta imita desde o miserere do Salmo 50 ao ato de contrição do Catecismo católico estampado nos Adoremus da época e, naturalmente, praticado pelos devotos no ato confessional: Ofendi-vos, meu Deus, bem é verdade, É verdade, meu Deus, que hei delinquido, Delinqüido vos tem, e ofendido, Ofendido vos tem minha maldade. Maldade, que encaminha à vaidade, Vaidade, que todo me há vencido; Vencido quero ver-me, e arrependido, Arrependido a tanta enormidade. Arrependido estou de coração, De coração vos busco, dai-me os braços, Abraços que me rendem vossa luz. Luz, que claro me mostra a salvação, A salvação pertendo em tais abraços, Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus. Quanto lirismo e quanta ternura. A piedade e ternura em um só ato: ato de contrição poética. Ato de expressão, rigorosamente, poética. É o poema expressão dessa ternura. Voluptuosa ternura; isto na medida em que o poeta pronuncia as palavras do ato. Poema de ciência religiosa e, também, de terrível revelação da consciência humana. Seu mundo é o mundo da consciência, povoado pelos fantasmas que atormentam. A consciência é o reino desses fantasmas; consciência que se abre e se fecha quando exposta ao exame. O barroco fez dessa consciência a mais clara interpretação. Vejamos: o poema é um ato de contrição, um exame de consciência. O poeta religioso e contrito, mas crítico diante das aparências da crença católica parece de coração tocado e contrito em súplicas e miserere... Confissão, contrição, reflexão interior, exame de consciência, refinamento, musicalidade, sonoridade, tudo está exposto neste poema alegórico; a linguagem da Poesia barroca em seus livres movimentos e vaivéns. Um mundo se revela na confissão do poema. Deste poema religioso de Gregório de Matos não se pode extrair de forma transparente uma certeza de crença; certeza de fé; da fé do Poeta no dogma católico. Diante da crise de sensibilidade, o fantasma

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gregoriano quer escapar do sentimento carnal, mas sua mente o atormenta e o aprisiona fazendo-o contradizer-se na declamação do poema que é o ato de contrição de um homem que não esquece que é carnal pecador penitente que pede perdão e misericórdia. Gregório parece rezar em forma de poesia, de alta Poesia. Poesia religiosa? Poeta religioso? Um exame mais cuidadoso revela que sua poesia religiosa pode estar poluída de sensações eróticas e carnais; suas fantasias religiosas quase sempre se desdobram em movimentos físicos, como nestes versos do recitado soneto: Arrependido estou de coração, De coração vos busco, dai-me os braços, Abraços que me rendem vossa luz. Trata-se de uma postura crítica do ato de confissão e de bom propósito de nunca mais pecar, conforme a doutrina católica do Catecismo de Trento, prática no Século XVII. Postura crítica codificada e concebida pela experiência religiosa do Poeta em seu tempo e pelos artifícios da retórica do Catolicismo escolástico de seu tempo. O poema acima demonstra o litúrgico/sacramental ato de penitência, ato de contrição do Poeta contra os pecados do mundo. Mas sua confissão, seu arrependimento, são como seus arrebatamentos irônicos suas espontaneidades em outros poemas. Não vemos aqui um arrependido convicto e contrito; crente, sim; nunca um ateu. Mas sempre uma confissão ou ato de arrependimento alusivo, jamais realizado. Revelações do perdão divino com a carnal existência do humano e da paixão violenta. O poema é uma alegoria do homem arrependido de ter praticado os vícios e com o firme propósito de emendar-se e nunca mais pecar. Alegoria e transfiguração da realidade do homem por um procedimento poético (a paródia), que por sua forma retrata uma percepção religiosa do mundo. Há, na Obra de Gregório de Matos, uma série de sonetos/poemas — uma espécie de retórica rimada — que revelam uma paródia dos sentimentos religiosos. É impossível que Gregório de Matos, em pleno Século XVII, não tenha vivido a experiência catequética do Sacramento da Confissão. Claramente, o soneto acima é uma paródia da Confissão, do salmo 5018, salmo recitado em ato penitencial, de acordo com o Breviário de

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Peccatoris pœnitentis confessio, promissio, preces; Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam; Biblia Sacra / Vulgata Editionis; Sixti V Pontificis Maximi iussu reconita et Clementis VII Auctoritate edita. Editioni San Paolo s.r. l., 2003 (Milano).

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Trento. Gregório de Matos sabia. Gregório de Matos, autor seiscentista, certamente, era leitor da Bíblia. A Bíblia foi o livro de cabeceira da leitura dos autores barrocos. E, logo se nota: a Poesia de Gregório de Matos está cheia de cenas, versículos, e passagens da Bíblia que comprovam que o repertório bíblico, a liturgia eclesiástica, tudo isso era o signo de cultura barroca. Liturgia de confissão, contrição e consciência culpada. Gregório compreende bem essa liturgia, compreende o Catecismo católico/romano; compreende e cria um estado poético de criação, de sensualidade religiosa alucinante, feito de orações, de trechos litúrgicos, cantos, princípios catequéticos e promessas. Tudo é perdoado pelo ato de contrição e de absolvição que se recita. Reza contrito o homem de consciência culpada e o Poeta lúdico que faz paródia. O poeta que se confessa é o poeta que se confunde com a linguagem da liturgia católica e o poema se transforma em um ato teatral, uma celebração poética, não um juízo sobre a religião católica. Sem dúvida, são os poemas religiosos de Gregório de Matos onde se acha a expressão mais comovente de sua Poesia. Seus poemas religiosos oscilantes entre o sagrado e a verdadeira poesia às vezes nos perturbam e nos deixam duvidosos, crentes e descrentes. E, parece, Gregório de Matos não encontrou, nem quis encontrar a fé nos atos piedosos do clero de seu tempo. Buscou a realidade transcendente expressa em sua Poesia, através de uma linguagem que o reconciliou consigo próprio e com seu próprio tempo. E se justifica assim sua poesia religiosa, especialmente, seus poemas de culpa e arrependimento. Gregório de Matos confessa sua culpa e arrependimento em forma de poema porque não encontra tema de comunhão nos costumes do clero e da gente de seu tempo. Vive e expressa sua fé poética: esse é seu estilo de pensar. Gregório intuiu, naturalmente, os temas essenciais da Poesia de seu tempo: o tempo barroco. Como poeta, expressou com a maior lucidez o drama e conflito do homem barroco. Nosso poeta viveu todas as contradições do homem barroco. Blasfemou, duvidou, jurou, desconjurou, perjurou, esconjurou, pecou pediu perdão se confessou... Por isto tudo, vejamos o soneto A Christo S. N. Crucificado, estando o Poeta na última hora de sua vida (conforme sua didascália ou instrução para representação/recitação do poema): Meu Deus, que estais pendente em um madeiro, Em cuja lei protesto de viver,

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Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme e inteiro. Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai, manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor, e meu delito, Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. Com este poema o drama do homem pecador, Gregório de Matos, parece resolver-se. Ainda que se diga que o poema é um ato de confissão estando o poeta na hora da morte, isto é muito superficial. Diria: é uma semelhança paródica de ritmo, entonação e sentido do conceito do ato sacramental. Mas o Poeta que escreve não o homem que se confessa. Gregório sabe isto muito bem. A confissão brota da abundância da mente literária do Poeta, não do dogma da religião, simplesmente. Teria o Poeta mesmo escrito este poema na última hora de sua vida? Existe nisto muita lenda. Deste modo, arrepender-se pelas faltas cometidas e antes da morte se confessar é a maior recompensa, o passaporte seguro para a entrada definitiva no reino da vida eterna. Tudo parece resolvido: faltas cometidas e perdão, arrependimento e absolvição, assim, estaria pronto o homem para entrar no Céu e gozar das delícias da graça divina sem sacrifício ou penitência. Pedir perdão é um dever sagrado, talvez, o maior dever que, cumprido, fica assegurada ao pecador a glória eterna. Essa temática aparece em outros poemas, onde o poeta realça a eficácia da graça divina. Neste sentido, a Poesia gregoriana contém inumeráveis passagens e alusões a este tema religioso, que adquire a forma (paródica) de um ato de contrição penitencial. Este poema e outros que versam sobre o mesmo assunto é o lugar de encontro dos críticos/leitores de Gregório de Matos. A crítica o coloca naquele espaço semântico denominado poesia sacra; E o citado soneto é exemplo maior. E sempre na memória como marca do Poeta pedindo perdão na hora da morte. E Cristo crucificado é o modelo religioso da confissão e do perdão da culpa. Aqui, o espaço semântico dirige a atenção do leitor. Um espaço crítico de afinidades e oposições. Nota-se aí, neste espaço, um corpo de

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doutrinas que se fecham no ato de piedade, ou no dogma da Religião. Ao tempo de Gregório a religiosidade é exagerada e absoluta. Religiosidade e poesia estão em constante simbiose e dialogia. O verso barroco do poema torna-se rígido diante do exercitado exame de consciência de reflexão de imagens, conceitos e formas espirituais. O ato de contrição torna-se vertiginoso. O mundo católico de Gregório participa da mecânica da linguagem da poesia; seu ato de contrição é uma fé parodiada; uma fé paramentada com os signos da poesia. Ou, poesia paramentada com os signos da fé. Contrição simulada e feita por um homem de espírito livre, que quer cada vez mais se libertar dos limites corporais. Por trás do poema de Gregório não há nada, contrição alguma; há apenas o poema, paródia do ato de contrição litúrgica. Não há nada porque seu ato de contrição é paródia, puro jogo de linguagem; sua consciência transparece refletida na aparência do poema. Esta experiência, que Gregório de Matos assume na forma de poema aparece em outros autores barrocos. Examinar a consciência é próprio do homem barroco. E o exame de consciência seguido do ato da confissão da culpa foi uma prática muito estimulada e obrigada pela Igreja católica, no Século XVII. Os autores barrocos tendem a penetrar naquela zona secreta de nossa consciência, onde se acha nossa alma angustiada e melancólica. O soneto, acima recitado, é de contrita beleza e de tranquilizadora verdade, neste sentido. Mas, é, sobretudo, Poesia. A concepção de Gregório se cobre de pura linguagem e fantasia. O que não se pode, pois, reduzir o poema à mera convenção ou ponto de vista do crítico pouco ilustrado que quer afirmar que o poema testemunha o arrependimento do Poeta pelas faltas cometidas em sua vida. Não obstante, sem eliminar qualquer interpretação religiosa, o leitor se move diante de uma experiência pura de Poesia. Seguindo esta ideia, temos outros exemplos de poemas gregorianos bem próximos da Bíblia e do Catecismo Católico seiscentista, isto é, o Catecismo de Trento, de prática obrigatória na época de Gregório de Matos. O ato de contrição penitencial de Gregório de Matos é uma experiência, liturgicamente, poética. E a exata referência intelectual desta experiência de purificação e exame de consciência é o ato de contrição do poeta contrito em busca dos favores divinos. Não nos surpreende de modo algum que Gregório de Matos tivesse vivido de forma poética essa experiência religiosa; experiência religiosa em paralelo com a poesia. Para um leitor exigente, a confissão de Gregório já nada se parecerá com o ato penitencial praticado por um católico devoto passado de sua existência no pecado para uma

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vida segundo o rito sacramental da salvação. Os poemas religiosos de Gregório mais sugerem sua posição racional ao desejar expressar, racionalmente, algo transcendental. Longe de se confessar como qualquer devoto católico, o Poeta refina sua expressão poética em forma de paródia. E, ao leitor superficial fica difícil formar uma imagem mais coerente do Poeta e do homem que compôs esses versos. Há, por exemplo, um soneto da época do Barroco, ou anterior, de autor anônimo, cujos versos são mais ou menos semelhantes: a mesma temática, a mesma dicção, a mesma sonoridade que prova nosso ponto de vista paródico sobre Gregório de Matos e nega qualquer subjetivismo ou impressionismo crítico sobre nosso Poeta, mesmo sabendo que era um homem de formação Católica. O poema está construído nos mesmo termos de uma situação parecida, — a Cristo Crucificado —, situação ligada a uma tradição mais antiga onde o poeta se prende ao exame de consciência de si mesmo, no desespero, na angústia e na espera do perdão divino. Cito: No me mueve, mi Dios, para quererte, El cielo que me tienes prometido, Ni me mueve el infierno tan temido Para dejar por eso de ofenderte. Tú me mueves, Señor; muévame el verte Clavado en una cruz y escarnecido; Muéveme ver tu cuerpo tan herido; Muéveme tus afrentas y tu muerte. Muéveme, al fin, tu amor, y en tal manera, Que aunque no hubiera cielo, yo te amara, Y aunque no hubiera infierno, te temiera. No me tienes que dar porque te quiera; Pues aunque lo que espero no esperara, Lo mismo que te quero te quisiera.19

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BECKER, Idel. Manual de Español, Companhia Editota Nacional, São Paulo, 1953, p. 271. Este hermoso soneto A Cristo Crucificado es de autor incierto. Fué atribuído a Santa Teresa de Jesús, a San Ignacio de Loyola e a San Francisco Javier; y también fray Pedro de los Reyes y al agustino fray Miguel de Guevara, que murió misionero en México en 1640.

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O sentimento religioso, comum aos autores barrocos, crentes ou céticos, místicos ou, não, é a característica deste poema. Creio que este poema poderia ter sido escrito por Gregório de Matos. Acho oportuno citá-lo aqui ao falar do sentimento religioso de Gregório de Matos, pois, encarna e configura sua visão e contrição diante do símbolo de Cristo Crucificado em seus poemas. O soneto acima é mais uma expressão poética do mesmo tema e sua atmosfera é idêntica: a contrição como prova de amor divino. Acentua o sentimento religioso. É o espirito de consciência arrependida que regressa ou a consciência que engendra nossos desejos. Os dois poemas acima reúnem os sentimentos do homem religioso e contrito. Sua religiosidade poética, velada de ambiguidade se move a praticar, simbolicamente, o ato de arrependimento que confessa. E tudo depende de o que irá ocorrer em uma nova situação em que o homem carnal se encontrar. Sem sombras de dúvida; Gregório de Matos parodiou desde a Bíblia ao Breviário Católico. Compreende-se por que chamam a essas “paródias” poesia religiosa: sua temática é religiosa. Mas não é uma temática fechada no dogma. Trata-se de uma visão paródica que transcende de forma racional o horizonte do dogma da religião sem discutir nem esbarrar na ideia de verdade. A Poesia de Gregório de Matos devemos mais ler e reler do que crer no que dizem d’Ele certos críticos. Na verdade, sua Poesia revela mais da consciência dos homens e das pessoas de sua época do que os críticos possam revelar d’Ele. Sua confissão é um drama de consciência e de existência; seus poemas de arrependimento e contrição são desdobramentos de sua vida e de sua existência até a revelação íntima e realização de sua Obra. Gregório é um grande Poeta religioso; religioso humano; de religião mais humana que divina. Não ignora a fraqueza da carne; não ignora que o homem está sujeito a caídas e recaídas, sabe mais do homem pecador que qualquer confessor. Por isso diz com contrita autoridade este Acto de Contrição que fez depois de se confessar:20 Meu amado Redentor, Jesus Cristo soberano Divino Homem, Deus Humano, da terra, e céus criador: por seres, quem sois, Senhor, 20

Matos, Gregório de. Op. Cit. p. 71.

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e porque muito vos quero, me pesa com rigor fero de vos haver ofendido, do que agora arrependido, meu Deus, o perdão espero. Bem sei, meu Pai soberano, que na obstinação sobejo corri sem temor, nem pejo pelos caminhos do engano: bem sei também, que o meu dano muito vos tem agravado, porém venho confiado em vossa graça, e amor, que também sei, é maior, Senhor, do que meu pecado. Bem não vos amo, confesso, várias juras cometi, missa inteira nunca ouvi, a meus Pais não obedeço: matar alguns apeteço, luxurioso pequei, bens do próximo furtei, falsos levantei às claras, desejei mulheres raras, cousas de outrem cobicei. Para lavar culpas tantas, e ofensas, Senhor, tão feias são fontes de graças cheias essas chagas sacrossantas: sobre mim venham as santas correntes do vosso lado; para que fique lavado, e limpo nessas correntes, comunica-me as enchentes da graça, meu Deus amado. Assim, meu Pai, há de ser, e proponho, meu Senhor, com vossa graça, e amor nunca mais vos ofender: prometo permanecer em vosso amor firmemente, para que mais nunca intente

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ofensas contra meu Deus, a quem os sentidos meus ofereço humildemente. Humilhado desta sorte, meu Deus do meu coração, vos peço ansioso o perdão, por vossa paixão e morte: à minha alma em ânsia forte perdão vossas chagas dêem, e com o perdão também espero o prêmio dos Céus, não pelos méritos meus, mas do vosso sangue: amém. As estrofes aqui transcritas fazem deste poema uma verdadeira contrição, no sentido religioso da palavra: uma confissão com a dicção aberta à poesia. Dicção que é preciso ouvir. A voz do Poeta ecoa em contrição, uma contrição em que as palavras se abraçam no ato de contrição do próprio poema. Consciente e deliberado ato de imitação poética. É um ato de contrição que comparte com muitos poetas do Século XVII. A temática do poema se assemelha à verdadeira doutrina do sacramento católico da confissão, em que o poeta se confessando pode converter sua vida de pecador em “estado” de graça. Ato de contrição e ato de imitação. Isto enlaça o Poeta em fantasias barrocas. Detrás de Gregório há a velha doutrina de Trento da remissão dos pecados. E mais, a ideia de mundo como coisa negativa, mal, desordem e morte; o poeta ante a ideia de céu da pregação jesuíta. Acto de contrição que fez depois de se confessar. Mas quem escreveu o poema? O poeta, Gregório mesmo? Autor e ator deste ato mesmo; nenhuma dúvida que o Poeta sente e confessa toda sua culpa e sente a necessidade de que seja perdoado. A confissão de Gregório de Matos parece não corresponder inteiramente à realidade dos propósitos jurados no ato sacramental. E qual seria a causa de sua consciência arrependida com o firme propósito de emendar-se? Talvez o Poeta mesmo não se dê conta do alcance de suas confissões. Vale dizer que a poesia é, parodicamente, uma forma de confissão. O poema aqui é uma paródia, uma apropriação do ato de contrição que se recomendava recitar depois do ato da confissão. Neste poema que aqui comentamos, Gregório de Matos faz uma confissão paródica que realça o rigor de seu procedimento poético. Pode parecer patético, mas é uma confissão que faz o poeta a cada um de seus leitores, e seu ato de

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contrição é um ato litúrgico de excelência poética. Tão absorvente é o ato de expressão poética que se confunde com o ato de oração. Contemplamos com muita atenção o poeta confesso em ato de oração e poesia. Expressão religiosa da vontade do poeta ou da necessidade de se colocar na história de seu tempo. De qualquer modo, Gregório de Matos segue como o primeiro da lista e da linhagem barroca no Brasil. Com Ele começa uma aventura que se completa com o Modernismo de 1922 e esbarra nos poetas concretos, nossa vanguarda, por excelência. Festa tropical. O prato melhor de nossa antropofagia cultural.

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A FLOR E O MARACUJÁ Samuel Anderson de Oliveira Lima Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Diante de todas as querelas que envolvem o nome de Gregório de Matos, queremos frisar que o mais importante para nós é a poesia. É o texto poético que vai subsidiar tudo que aqui vai ser dito. Todas as análises e todas as discussões estarão ancoradas naquilo que tem mais importância, a obra poética. Baseando-se nisso, concordamos com Adriano Espínola (2000, p. 22-23) quando afirma: Não importa quem tenha sido: plagiário ou não, original ou esteticamente convencional, autor legítimo ou espúrio desses ou daqueles poemas, falso ou verdadeiro poeta, o fato é que, sob o seu nome, a história nos legou um vigoroso painel poético do Barroco e da sociedade colonial brasileira, em processo de formação e afirmação, sem deixar, entretanto, de tratar tematicamente das aspirações mais profundas do ser humano, através de sua poesia religiosa e líricoamorosa (ESPÍNOLA, 2000, p. 22-23).

Estudar a obra poética gregoriana ultrapassa o discurso preconceituoso da dúvida da existência do poeta, da incerteza da originalidade dos seus versos, da difusão de seu processo imitativo, mal entendido como plágio. Estudar Gregório de Matos, portanto, deve partir do princípio de que a poesia suplanta os arroubos historicistas. A poesia acima de tudo. Além disso, é através de sua poesia que podemos enxergar o vigoroso painel poético do Barroco no solo brasileiro, participando ativamente do processo de formação cultural, literária e identitária. Com essa visão, pode-se percorrer do Seiscentos ao Modernismo, quando a vanguarda resgata o poeta dando-lhe então uma roupagem nova, a de barroco-moderno. Gregório de Matos está lá nas margens coloniais, mas também está nos centros da modernidade. Esse panorama é dado também pela difusão do movimento antropofágico pela voz do modernista Oswald de Andrade. Mais tarde, os irmãos Campos vestem Gregório como nosso primeiro antropófago, quem primeiro mastigou e deglutiu a cultura do outro (índios, negros, portugueses, franceses, espanhóis) e regurgitou poeticamente uma nova cultura, a brasileira.

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É Gregório quem sabiamente inicia a festa da carnavalização antropofágica, devorando, muitas vezes, a palavra do pai, transformando-a noutro discurso, destituído da oficialidade, transgressora, por vezes, enigmática. Como num baile de máscaras barroco, Gregório vai construindo um labirinto, com percursos tortuosos, fechados, mas festivo. Símbolo exagerado do Barroco, o labirinto coloca-nos numa tensão, num paradoxo – são escolhas de caminhos dificilmente acertados, altamente desconexos. Acertadamente, Haroldo de Campos (2010, p. 209) considera que “GM soube levar a mistura de elementos do Barroco à própria textura de sua linguagem, através da miscigenação idiomática de caldeamento tropical”. O Barroco brasileiro é a imagem desse discurso de Haroldo de Campos, como no caso mais explícito da pintura e da arquitetura. O transplante do Barroco para a América provocou essa mistura na linguagem. A viagem pelo Atlântico admitiu ao Barroco ser perfurado pelo intenso jogo tropical da abundância das frutas, dos índios. Um exemplo é a fachada/frontispício da Igreja de Nossa Senhora da Guia em Lucena/PB, onde se percebe perfeitamente a mistura eurotropical, com anjos com rostos indígenas e frutas tipicamente brasileiras:

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ILUSTRAÇÃO 1: Fachada da Igreja de Nossa Senhora da Guia – Lucena/PB. (Foto: Samuel Anderson)

No caso da literatura, em Gregório, só como exemplo, seu texto poético traz traços dessa miscigenação cultural, na tradução do processo antropofágico, como “uma civilização


que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o jabuti” (ANDRADE, 1978, p. 17). O ritual antropofágico, num ato desmedido de devoração, instaura no cenário brasileiro o resgate daquilo que formaria nossa identidade como povo, como gente. Gregório é o príncipe que retoma seu trono perdido no século XVII e renova as forças desmistificantes do substrato apoteótico da palavra, ele é a parte do todo perdido que foi achada pelo século XX. O objetivo da antropofagia rezado por Oswald de Andrade era “resgatar os valores nacionais para divulgá-los em todo o mundo, fazendo com que o europeu aceitasse a cultura estrangeira não apenas pela perspectiva excêntrica, mas pelos critérios da diferença e da autenticidade” (BITARÃES NETTO, 2004, p. 63) e Gregório foi o porta-bandeira desse pensamento, o primeiro antropófago barroco-brasileiro. Feita essa explanação, vamos nos concentrar na análise poética. A obra que estamos usando neste trabalho foi organizada por James Amado (1999). Nela, há dois sonetos que têm algumas particularidades interessantes para discutir. Por exemplo, as rimas são formadas pelas mesmas palavras: “vana”, “reverente”, frente”, “losana”, “ufana”, “floreciente”, “eternamente”,

“hermana”,

“pomposa”,

“crescimientos”,

“dichosa”,

“tormentos”,

“gloriosa”, “luzimientos”, com esquema ABBA/ABBA/CDC/DCD, muito comum na época barroca.

AO MISTERIOSO EPILOGO DOS INSTRUMENTOS DA PAYXAO RECOPIDADO NA FLOR DO MARACUJÁ Divina flor, se en essa pompa vana Los martirios ostentas reverente, Corona con los clavos a tu frente, Pues brillas con las llagas tan losana. Venera essa corona altiva, y ufana, Y en tus garbos te ostenta floreciente: Los clavos enarbola eternamente, Pues Dios com sus heridas se te hermana. Si flor nasciste para mas pomposa

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Desvanecer floridos crescimientos, Ya, flor, te reconocen mas dichosa. Que el cielo te ha gravado en dos tormentos En clavos la corona mas gloriosa, Y en llagas sublimados luzimientos. (AMADO, 1999, p. 76, v.1) RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VYEIRA RAVASCO NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES21 DE OUTRO FEITO À FLOR DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS RESPOSTAS DO NOSSO POETA. Ya rendida, y prostrada mas que vana A vuestros pies mi Musa reverente Por coronar com ellos a su frente Del suelo sube al cielo mas losana. Por convencido ostenta gloria ufana, Que tiene por corona floreciente, El quedar-se rendida eternamente, Porque humilhada al triumpho se germana. Rendimiento fiel haze pomposa, Que en beber los castalios crescimientos Se adquire la ventura mas dichosa. A que Phenix nos causa mil tormentos Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa Por ser rendida a vuestro luzimiento. (AMADO, 1999, p. 76-77, v.1) Os dois poemas22 estão alicerçados na imagem da flor do maracujá, que tem uma simbologia bem significativa. Inclusive, o primeiro soneto estabelece relação direta com o símbolo da flor do maracujá. Essa flor significa a Paixão de Cristo, por isso, na didascália dizse: “instrumentos da paixão recopilado na flor do maracujá”. Todo o soneto descreve os instrumentos da Paixão de Cristo: coroa, cravos, chagas, martírio, feridas. A flor aqui se transforma num símbolo barroco. A Paixão é por excelência um símbolo do Barroco, pela 21 22

Refere-se à rima. Os poemas estão postos aqui da mesma forma como estão na obra de James Amado. No entanto, é sabido que há inúmeros problemas de ortografia nos poemas em espanhol, talvez por culpa dos copistas.

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oposição que estabelece entre a morte que dá vida. Inclusive, essa oposição é cara aos poetas barrocos de todos os tempos. Conta-se que quando os missionários portugueses chegaram à América e se depararam com a flor do maracujá, logo fizeram alusão ao mistério da Paixão de Cristo, da seguinte forma: Os três estigmas correspondiam aos três cravos que prenderam Cristo na Cruz; as cincos anteras representavam as cinco chagas; as gavinhas eram os açoites usados para martirizar; por fim, no formato da flor era visível a imagem da coroa de espinhos levada por Cristo para o ato de crucificação 23.

Essa descrição é melhor percebida na imagem a seguir:

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ILUSTRAÇÃO 2: Flor do maracujá Fonte: http://www.academus.com.br/forum/topics/perfume-das-flores

A descrição feita pelos missionários condiz perfeitamente com a imagem da flor do maracujá. Além disso, o modo como Gregório compôs o poema constrói a cena da Paixão de Cristo por meio do recurso metonímico: a flor remete-nos à coroa de Cristo cravejada de espinhos. É interessante observar que, na época barroca, a morte de Cristo, ou seja, a Paixão, interessava mais do que sua ressurreição, como conclui Moacyr Scliar (2003, p. 36): “Para Calvino, a Paixão de Cristo, sua agonia terrível, sua morte, importavam até mais do que a ressurreição. Os jesuítas desenvolverão igualmente a ideia da morte arraigada na existência”.

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Texto disponível em: <http://www.significados.com.br/flor-de-maracuja/>. Acesso em: 20 jan. 2013.


Divina flor, se en essa pompa vana Los martirios ostentas reverente, Corona con los clavos a tu frente, Pues brillas con las llagas tan losana. É possível observar, na análise de alguns poemas de Gregório que têm como tema central a flor, que esta representa a fugacidade da vida. Ou seja, é vida, exuberância, beleza, mas também é morte, tristeza, velhice. Contudo, neste poema, a flor é divina, embora também represente a morte. Metonimicamente, a flor do maracujá, que representa a Paixão, inserese num silogismo: se é flor, e flor representa a Paixão, ela é vida e é morte: a morte após o sofrimento de Cristo e a vida que essa morte significa. O jogo barrocolúdico, para usar um termo de Haroldo de Campos, está bem construído no poema. A coroa, que simboliza o sofrimento de Cristo, é também a coroa da árvore que dá o fruto, portanto, a vida. O poema barroco traduz, por meio das imagens que as palavras criam, o sentimento de angústia interior. Veja-se que a maioria dos poemas barrocos trata de dualidades, de hemisférios antagônicos. E a sensação de desilusão ou de perda dentro do mundo é algo que permeia o coração do homem desde aqueles momentos. O homem barroco não é diferente do homem moderno, ambos convivem per si com a mesma sensação agônica, com o mesmo sentimento de desilusão, com a mesma presença da dor, mas também da alegria. O homem moderno é o homem barroco em outra esfera temporal. Paradoxalmente, a vida vai passando diante do ser humano como exemplifica o segundo terceto que também é a estrofe que encerra o poema: Que el cielo te ha gravado en dos tormentos En clavos la corona mas gloriosa, Y en llagas sublimados luzimientos. O poema condensa duas imagens antagônicas em um mesmo ambiente: os cravos estão associados à coroa gloriosa e as chagas ao brilho, à ostentação. Portanto, de forma paradoxal, o poema une o momento de dor e sofrimento com o de glória e felicidade. A mesma coroa com seus espinhos causam dor, porém, ao mesmo tempo, causam alívio. Num mesmo objeto (a coroa), representado pela flor do maracujá, concentram-se os dois ambientes.

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Voltando a relacionar os dois sonetos, ao observarmos os vocábulos que servem como rimas dos poemas, um deles está grafado de maneira distinta em ambos: no primeiro, “hermana” e, no segundo, “germana”. Esse exemplo ilustra o que foi dito sobre os problemas ortográficos dos poemas em espanhol. Não é uma questão de evolução da língua, mas é notório que aí houve um equívoco com a ortografia da palavra. Embora saibamos que a língua espanhola fazia parte do cotidiano colonial do século XVII, podemos crer que os copistas não tinham tanto conhecimento linguístico do espanhol, o que pode ter ocasionado esses atropelos. Há, por exemplo, outras palavras que estão grafadas incorretamente, como “losana”, que deve ser grafada com “z” e não com “s”; da mesma maneira “luzimientos” que não se escreve com “z” e sim com “c”. Casos assim prejudicam a leitura proficiente dos poemas, pois não estando nos dicionários da forma como aparecem na obra completa de James Amado, o leitor terá problemas na tradução desses termos. O segundo soneto, que também trata da flor do maracujá, já não faz alusão direta à Paixão de Cristo, trazendo então o vocativo “Musa” como base para a construção das imagens. A Musa tão cultuada pelo poeta é a Bahia, sua pátria, que “triumpha humilhada, y tan gloriosa” assim como Cristo triunfou humilhado e glorioso, na narração da Bíblia Sagrada 24. A Paixão de Cristo aparece veladamente e para enxergar a mesma cena que se passa na Bíblia é preciso que o leitor tenha conhecimento do episódio. A flor, que também é a coroa, está rendida desde o primeiro verso até o último. Note-se que o soneto começa e termina com o vocábulo “rendida”: Ya rendida, y prostrada mas que vana A vuestros pies mi Musa reverente Por coronar com ellos a su frente Del suelo sube al cielo mas losana. *** A que Phenix nos causa mil tormentos Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa Por ser rendida a vuestro luzimiento.

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C.f. Romanos 14:9 – “Pois Cristo morreu e viveu de novo para ser o Senhor tanto dos mortos como dos vivos”.

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O poema foi constituído por meio de elipses25, os termos (os referentes), muitas vezes, não estão presentes na superfície do texto. É preciso um olhar mais atento para conseguir fazer as conexões certas entre as estruturas semânticas do soneto. Trata-se então da elipse barroca, que oculta o significado, mas também desvela. Para Sant’Anna (2000, p. 101), “toda linguagem é elíptica, pois todas são alusivas, analógicas e alegóricas”. A elipse esconde algo que quer revelar, ao mesmo tempo. São como as volutas nas igrejas barrocas, que se contorcem e se retorcem sobre o ângulo de conexão da imagem. É o caso desse poema, em que a leitura só pode ser feita com a decifração das elipses. GM é então esse poeta que está sustentado pela tradição, resgatando os grandes poetas, desde Petrarca, e pela modernidade de sua poesia, com as elipses, os jogos verbais, a devoração da palavra. Gonzalo Aguilar (2001, p. 23) afirma que “el ingenio de Gregorio, de la poesía de la época denominada Gregorio, se prueba en el marco de la reglamentada poesía de su tiempo, pero las estrategias de escritura que pone en juego forman parte de una habilidad con las texturas que llega a niveles sorprendentes aun para los mejores poetas de su tiempo” 26.

No soneto, a figura mitológica “Phenix”, metonimicamente, representa a ressurreição, a vitória diante da morte, diante da humilhação de se estar coroado com espinhos; nesse sentido, representa a morte e a vida.

A que Phenix nos causa mil tormentos Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa Por ser rendida a vuestro luzimiento.

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A elipse, segundo Severo Sarduy ([1988?], p. 67), “constitui o campo e o solo do barroco gongórico: não apenas por uma realização mecânica da figura, em conformidade com as prescrições dos retóricos – isto é: a supressão de um dos elementos requeridos para uma construção completa -, mas no registro vazio da supressão em geral; de uma ocultação teatral de um dos termos a favor do outro, sobre o qual cai então a luz de maneira abrupta”. Essa elipse em Gôngora estudada por Sarduy é a mesma que surge nos poemas gregorianos, tem a mesma função, significa também a falta, a lacuna. Sarduy ([1988?], p. 68) ainda conclui: “a elipse, identifica-se, portanto, na retórica barroca com a mecânica do hermetismo: pela sua exclusão de um significante expulso da distribuição simbólica”. “O talento de Gregorio, da poesia da época denominada Gregorio, pode ser provado no marco da regulamentada poesia de seu tempo, mas as estratégias de escritura que ele põe em jogo fazem parte de uma habilidade com as texturas que chega a níveis surpreendentes até para os melhores poetas de seu tempo” (AGUILAR, 2001, p. 23, tradução livre).

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O poema também nos remete à imagem visual da flor do maracujá, assim como o soneto anterior: “Por convencido ostenta gloria ufana,/Que tiene por corona floreciente”. A coroa florescente, que é formada pelas fímbrias da flor, tem uma luminosidade formada por suas pontas em cor roxa. Aliás, essa cor representa a Paixão e os padres costumam usar paramentos com a cor roxa na Semana Santa. A dificuldade em compreender as imagens desse soneto será maior sem a leitura do anterior. Como esse tem muitas metáforas, muitas elipses, o referente é depreendido da leitura do primeiro soneto. Um completa o sentido do outro. Todo ele está formado por elementos que precisam ser substituídos, encaixados nas lacunas do significado. Há outro soneto que também foi construído sob a imagem da flor. No entanto, neste, ela não está sozinha, há um jardim de flores, formando um ambiente, portanto, de alegria, bem jovial: LIZONGEA FINALMENTE A CONVALECENCIA DE SUA ESPOSA.

54 Puedes, Rosa, dexar la vanidad: No presumas, clavel, de enacarado: Branca Açucena ya, y Jasmin nevado, Dexe de blasonar vuestra beldad. Grana purpurea aprissa retirad Brillante rosicler gala del prado, Si de la pompa el tiempo está acabado, Vuestra pompa en retiros minorad. Porque salió Maricas de un desmayo Flor en las gallardias mas vistosas, Que brotó Primavera, Abril, y Mayo. Pero a su vista os quedareis hermosas, Suplicandole humildes un ensayo Açucena, Clavel, Jasmin, y Rosas. (AMADO, 1999, p. 529, v. 1) Alguns sonetos, segundo as didascálias, são dedicados à mulher do poeta. Como os poemas não têm data nem indicação de localidade de produção, não é possível afirmar a que mulher esses poemas se direcionam, pois Gregório de Matos teve duas esposas, oficialmente.


Segundo algumas informações das biografias do poeta, quando afirmam que a maioria da produção de GM se deu no Brasil após seu regresso de Portugal, conclui-se que a mulher evocada aqui é Maria de Povos. O tom de evocação já é transmitido a partir do primeiro verso “Puedes, Rosa, dexar la vanidad” e que tem continuidade nos seguintes: No presumas, Clavel, de enacarado: Branca Açucena ya, y Jasmin nevado Dexe de blasonar vuestra lealtad. Na primeira quadra, há a evocação de quatro flores: “Rosa”, “Clavel”, “Açucena” e “Jasmin”, sobre as quais o poema irá discorrer nos outros versos e é com elas que o poema se encerra: “Açucena, Clavel, Jasmin, y Rosas”. É comum, nos poemas barrocos, o recurso do arremate. Palavras-chave são trabalhadas no poema e ao final são evocadas para arrematar o pensamento que fora ali discutido. Esse processo é chamado de disseminação e recolha. Segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos (1979, p. 16), “no que entende com a estrutura do soneto, tem vigência em nosso barroco um sistema de construí-lo espalhando pelas quadras certos nomes que depois são arrecadados no fim”. Acontece justamente a disseminação dos vocábulos para, em seguida, ao final, serem arrematados; são semeados e depois colhidos, como afirma Dámaso Alonso, são os “versos correlativos” (apud RAMOS, 1979, p. 17). Interessante são as cores que aparecem no soneto: branco, enacarado, nevado, com as quais as flores se envaidecem, porque cada cor é peculiar a cada flor. No caso da expressão “Branca Açucena”, Francisco Topa vê como erro a palavra “Branca” e a substitui por “mansa”. No entanto, entendemos que “Branca” não foge ao contexto do soneto, uma vez que, nessa quadra, há referência às cores das flores; está associado à claridade que é um dos lados do quadro barroco. O tom de alegria, por outro lado, é substituído pela tristeza, na segunda estrofe, especificamente nos dois últimos versos: “Si de la pompa el tiempo está acabado,/ Vuestra pompa en retiros minorad”. A persona poética traz, mais uma vez, a sensação de efemeridade da vida. A pompa que está presente nas flores está se acabando. Enxergamos isso por meio de um eufemismo presente nos versos citados. A didascália fala sobre a convalescência da esposa, ou seja, ela está à espera pela morte. Cada flor nominada no poema é a representação

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da esposa do poeta. O soneto, então, vai criando a atmosfera da convalescência porque primeiro exalta as qualidades daquelas quatro flores para, em seguida, traduzir sua característica mais marcante, que vem sendo analisada aqui e que é típica do estilo barroco, a fugacidade da vida. Mesmo que isso não esteja claro (talvez intencionalmente), há uma sensação de perda da vitalidade que estava presente em “Açucena, Clavel, Jasmin, y Rosas”, mas é uma sensação atenuada; a proposta é exaltar, enaltecer, por isso, o vocabulário é alegre. Os sons vocálicos em assonância, tanto do [a] quanto do [o] são fundamentais para a percepção dessa imagem. Parece paradoxal para um poeta que, em muitos poemas, exalta a morte de forma clara e direta. Mas aqui, há a preocupação de não exaltar a tristeza, mas de nela encontrar alegria. O soneto não é carnavalizante, contudo consegue produzir a mesma sensação, não de desregramento, e sim de dualidade. Isso se sustenta na ideia de que o homem barroco consegue conviver com os dois sentimentos antitéticos; consegue passear perfeitamente pelos dois ambientes na mesma medida. Desse modo, isso é perceptível quando descobrimos pela História que o Barroco seiscentista foi um período de grandes contrastes, enquanto uns estavam mergulhados na extrema pobreza, outros se sustentavam pela abundância, pelo luxo. Daí enxergarmos um traço carnavalizante no poema, já que mesmo diante das agruras, na festa (carnaval) tudo se esvaía, dando lugar ao prazer. Por isso, as máscaras. O carnaval era, na verdade, uma vida utópica, fora da realidade. Para Antonio Risério (2004, p. 184), “o homem barroco, estivesse ele vivendo a realidade peninsular europeia ou circulando sob o sol dos trópicos, apresentaria, em alto grau, uma espécie de disponibilidade festiva”. O autor conclui que a festa foi o centro da vida barroca, tanto na Europa quanto na América. Neste soneto, a persona poética traz essa mesma sensação, na iminência da morte, a flor é exaltada, tendo suas características mais positivas destacadas. Como ponto de conclusão, neste artigo, foi possível caminhar por três poemas em espanhol de Gregório de Matos, nos quais a flor é um elemento central. A flor como símbolo máximo do barroco, traduzida pelo caráter efêmero da vida, uma vida que brilha com a juventude e que se esvai com a velhice. Com a flor ocorre o mesmo, brota linda e bela, mas murcha, deixando-se ver suas rugas e sua secura. O homem barroco via na flor o reflexo da condição humana, nascer já caminhando para a morte; por isso, ele se encheu de angústia por

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querer, principalmente, saber se iria, no fim, para o céu ou para o inferno. Espelho da condição barroca.

REFERÊNCIAS AGUILAR, Gonzalo. O Abaporu, de Tarsila do Amaral: saberes do pé. In: ROCHA, João Cezar de Castro; RUFFINELLI, Jorge. (Orgs.) Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: Realizações Editora, 2011. p. 281-287. ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifestos, teses de concursos e ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. (Obras Completas VI). BITARÃES NETTO, Adriano. Antropofagia oswaldiana: um receituário estético e científico. São Paulo: Annablume, 2004. CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010. ESPÍNOLA, Adriano. As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. MATOS, Gregório de. Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Obra poética completa, edição de James Amado. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. 2v. RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Do Barroco ao Modernismo: estudos de poesia brasileira. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979. RISÉRIO, Antonio. Uma história da cidade da Bahia. 2. ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004. SANT’ANA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SARDUY, Severo. Barroco. Trad. Maria de Lurdes e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Vega Universidade, [1988?]. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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A SÁTIRA MODERNISTA COMO PARÓDIA EM CANTO PARALELO DA POESIA DO BARROCO: GREGÓRIO DE MATOS, MÁRIO DE ANDRADE E OSWALD DE ANDRADE

Ciro Soares dos Santos Doutorando - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Visiting Assistant in Research – Yale Graduate School

Quem pôs o nome de crica à crica, que se esparralha, senão nosso Pai Adão quando com Eva brincava? (AMADO, 1968, p. 569)

58 INTRODUÇÃO

As páginas seguintes mostram como o modernismo operou uma resposta criativamente paródica, com comicidade do tratamento do tema da sexualidade dos brasileiros, frente à primeira tentativa intelectual de compreender a identidade do povo formado na América portuguesa a partir da miscigenação de africanos, europeus e ameríndios. As obras de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade canonizadas como ampliação do acervo literário em língua vernácula exibem um modo de tematizar o tópico da experiência sexo-amorosa que fora tratado por Paulo Prado de maneira ensaística. A poesia e a prosa dos intelectuais poetas, ao fazer galhofa do que fora motivo de horror para o ensaio iniciático da busca por sistematizar reflexão identitária nacional, fazem retomada da poesia fundacional da literatura brasileira. A sátira dos costumes do viver baiano seiscentista, atribuída ao poeta do barroco americano Gregório de Matos, está na paródica inventividade dos modernistas paulistas. No modernismo, tanto a satirização das satisfações das pulsões


libidinais do homem dos trópicos é paródica no sentido de fazer retomada do mesmo tratamento já operado pelo barroco; quanto o é em termos de gerar descortinamento risível de hábitos do século XXI similares aos já desvelados da obscenidade no século XVII. Com essas linhas de esquematização dos parágrafos seguintes, estão indicadas a hipótese de trabalho guiada pela orientação teórica de paródia como canto paralelo (CAMPOS, 2005) para atingir o objetivo de apresentar o diálogo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade com Paulo Prado como paródia da poesia de Gregório de Matos. Um traço é fixo no agir das personagens modernistas Miramar, Serafim e Macunaíma: eles querem brincar e mais brincar de crica em crica, como a nomeou o Pai Adão da poesia de Gregório de Matos em epígrafe. A pesquisa da comicidade do aspecto impulsivo dos personagens cujos resultados parciais com inicial reflexão de quem deles de aproxima por primeira vez são apresentados a seguir. O objetivo de mostrar como, nas obras de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade, há uma resposta ao ensaio sócio-histórico de Paulo Prado Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira tem tão somente o interesse de fazer leitores se motivarem a ler ou a reler as sátiras barroca e modernista pelo prazer do riso que elas podem proporcionar. Graça Aranha e Villa Lobos dão credibilidade acadêmica a Oswald e Mário Andrade como líderes a organizar evento para fazer propagar a proposta de necessidade de renovação das artes: a semana de arte moderna de 1922 ocorrida com a estima e estímulo de Paulo Prado. Sem a participação do rico cafeicultor inspirador dos jovens paulistas, o evento propagandístico escandalizador de famílias conservadoras e da plateia extasiada poderia nunca haver ocorrido com a grandiosa respeitabilidade de se organizar no teatro municipal (GONÇALVES, 2012). O jovial senhor sonhador, por isso, é convidado a escrever Prefácio de Pau-Brasil e recebe a dedicatória de Macunaíma por sua influência na busca por conhecer, para interpretar, o Brasil em suas raízes. O Brasil originário está na ordem do dia para os modernistas desde o momento em que ainda não havia Modernismo como movimento organizado de renovação e ruptura. O fato de que, no livro Pau-Brasil (1925), “são apresentados recortes e montagens da linguagem dos nossos cronistas, mas aí com um propósito bem diverso: o de mostrar-lhe o sabor e a espontaneidade, restituídos à sensibilidade moderna em flashes, em tomadas isoladas, não imitativas, mas criativas” (CAMPOS, 1971, p. 9) tem correlação com sua dedicatória a Paulo Prado, por ser ele o primeiro pensador interpretativo da dinâmica

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colonial em busca de entender o Brasil de sua contemporaneidade. O livro de poemas apresenta, sob a forma indicada por Haroldo de Campos, um roteiro poético de Minas Gerais: Sabará, Sete-Lagoas, Ouro-Preto. Pode-se ver na visita ao Brasil de ouro de sinos coloniais um caminho para o despertar da poesia do Brasil de açúcar, da poesia gregoriana. Os poemas coloniais da obra Pau-Brasil são epigramas compostos por segmentos poéticos com imagens de época investigada na busca modernista pelas origens brasileiras para fazer uma poesia de exportação. As épocas de exploração do pau de tinta, de produção de cana de açúcar e de extração do ouro de Minas são tematizadas pela pena oswaldiana de maneira a fazer os objetos artísticos da era colonial da economia brasileira se constituir como manifestação primeira de temas revalorizados pelos modernistas. O retorno para investigação e debate, por isso, relativos à poesia baiana dos seiscentos deixa de ser inovação original após os modernistas de 1920. São obras já integrantes da ampliação do cânone brasileiro as publicadas com o poema sobre a “TRANSAÇÃO” da passagem da família de fazendeiros senhores de escravos para a exploração da mão de obra estrangeira na agricultura monocultura de café do epigrama de correlação de implícitos e explícitos estabelecidos pela justaposição de palavras implicadas com a passagem de uma cultura à outra. Está no texto a marca de abandono da flora de pitangas, jabuticabas, gabirobas dos terreiros para a lavoura “verde do café” após esgotamento do “ouro da carne preta e musculosa”. Os tipos humanos da “FAZENDA ANTIGA” são representados − “narciso marceneiro”; “Casimiro da cozinha”; “Ambrósio que atacou Seu Juca de faca” e “as dezenove pretinhas grávidas” – alguns com nomes próprios e outros sem, na poesia Pau-Brasil de descrição da sociedade da casa grande e da senzala. A realidade de haver “NEGRO FUGIDO” na era colonial é ilustrada pela epigramática apreensão violenta de um “Jerônimo” que “estava numa outra fazenda” quando foi violentamente preso pelo capitão do mato de seu proprietário. As superstições de contar com a possibilidade de retorno de quem morra, com a aparição de fantasmagorias estão em “O RECRUTA”, moço noivo nunca retorna do Paraguai para rever noiva; e em “CASO” de mulatinha que morreu e apareceu para um tal Berrando “no moinho Socando pilão”. Em “O MEDROSO”, assombração apaga candeia e verifica ritmo cardíaco da vítima. A convivência dos trabalhadores escravizados com as condições sociais está em “O GRAMÁTICO”, ironia de negros que discutiam linguagem sobre se o correto seria dizer “o cavalo sipantou” ou “Sipantorrou”. A linguagem mestiça do Brasil

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colonial é registrada em “O CAPOEIRA” (“- Qué apanhá sordado?” / “- O quê?”/ “- Qué apanhá?” / “Pernas e cabeça na calçada”). As relações sociais da realidade de trabalho compulsório estão em “MEDO DA SENHORA”: uma escrava “pegou a filhinha” e se atirou no Paraíba “Para que a criança não fosse judiada”. O dia a dia de trabalhadores escravizados está também em “LEVANTE”, relato do resultado de fato anunciado pelo título: “Contam que houve uma porção de enforcados”/ “E as caveiras espetadas nos postes” / “Da fazenda desabitada” / “Miavam da noite” / “No vento do mato”. Está em “A ROÇA”, “cem negros da fazenda” “comiam feijão, Abóbara chicória e cambuquira” até serem açoitados (“- Chega! Perdoa!”), “Amarrados na escada”, “A chibata preparava os cortes” “Para a salmoura”. Imagens de ruptura com discurso ufanismo busca realismo não por desenvolvimento de tese, mas pelo trabalho com linguagem. A retomada da era colonial torna os leitores já familiarizados com a tematização modernista da vida social de escravos, de experiência religiosa católica coexistente com modos de ser, de sofrer e de viver de africanos nas terras do Brasil. Seria natural consequência na história de recepção poética um esforço para compilar em edição a circular para público os poemas fundacionais de representação das origens escravocratas, católicas, plurirraciais da cultura brasileira após o trabalho dos modernistas instigados pela investigação de Paulo Prado. O primeiro Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, em 1927, faz brincadeira infantil com o fato de que o “português ficou estarrecido” quando deu conta de “achar” um mundo inesperado nas águas”. O olhar infantil do aluno de poesia vê nova terra, vê “barquinha” a vir com “aventureiros”, “bacharéis”, “cruzes de cristo”, “donatários”, “espanhóis”, “flibusteiros”, “governadores”, “holandeses”. Pela justaposição de palavras, o caderno poético estudantil sintetiza a realidade histórica colonial de barquinha em barquinha, atreladas ao rapto de “índio” para Europa, de condução de “degredados” para o Brasil, de exploração de “pau de tinta”, de conflito com “holandeses”. O “litoral do Brasil” tem “raça mistura” na percepção do estudante a registrar lições de evidenciação da colônia em sua dinâmica social nos campos da economia, da demografia, da política, da religião. O tema da realidade socioeconômica do Brasil colonial é constante na obra poética de Oswald de Andrade. A intelectualização da tida como chocante vivência permissiva dos tempos coloniais para um moralista, como fora Paulo Prado (1981) em seu Retrato do Brasil, um seu ensaio sobre a tristeza o brasileiro, gerou efeito reverso na criatividade dos modernistas. Não somente nos

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temas tomados para versos, livres de idealização da pátria e do passado, estão despidas de romantização as obras de Oswald, a prosa de livre galhofa com a sexualidade põe em mira memórias de sentimentos bem menos sentimentais do que seria a sensibilidade romântica se responsável por criar as memórias de Miramar oferecidas para Paulo Prado. A personagem oswaldiana Machado Penumbra, em apresentação às Memórias sentimentais, comenta a linguagem de Miramar como marcada por “alguns lamentáveis abusos”, não obstante a aprove sem “adotá-la nem aconselhá-la”: Será esse o Brasileiro do Século XXI? Foi como ele a justificou, ante minhas reticências críticas. O fato é que o trabalho de plasma de uma língua modernista nascida da mistura do português com as contribuições das outras línguas imigradas entre nós e, contudo, tendendo paradoxalmente para uma construção de simplicidade latina, não deixa de ser interessante e original. Oswald de Andrade elabora metadiscurso de crítica da linguagem de uma personagem realizada por outra. A originalidade de Oswald-Miramar na mistura de gêneros textuais, assim como no piadismo e na epigramática, já ensaiados no livro-caderno dos pertencentes ao grupo de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, é motivo de lamento para OswaldPenumbra: “pena é que os espíritos curtos e provincianos se vejam embaraçados no decifrar do estilo em que está escrito tão atuado quão mordaz ensaio satírico”. Tanto o tom de “mordaz ensaio satírico” quanto os temas da lascívia estão na obra modernista dos anos 1920 como elemento do horizonte de expectativa literária precedente à edição da Academia Brasileia de Letras das obras de Gregório de Matos como um dado para leitores não mais receberem de modo por demais chocante a mordacidade da sátira gregoriana: uma inversão temporal de o passado mais recente de 1920 configurar o horizonte de recepção propício ao passado mais remoto dos anos 1600 de construção poética. Os epigramas enigmático-devoradores de Miramar apresentam adulto com recordação da infância. “PENSIEROSO” trata-se de registro de lembranças de pernas femininas, quando reza o pai nosso com paródia da oração bíblica na simulação de ingenuidade na expressão da erótica infantil. “GARE DO INFINITO” é paródia da religião: o anjo “carregou” o pai e a mãe põe o menino para rezar para o ser sobrenatural. “FRAQUE DE

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ATEU” revela a excomunhão de um Seu Carvalho por ensino de ser Deus a natureza, descoberto após o menino confessar acreditar na lição do “bigode de arame espetado”. “COLÉGIO” faz conhecer o “diretor vermelho” da escola que “saía do solo atrás da barriga e da batina”. O autoritarismo do religioso ruivo foi sentido pelo Miramar menino, assim como a simpatia cínica do principal da escola. “BUTANTÔ é carta transcrita por João Miramar, a qual mostra a relação homoerótica pueril testemunhada por prima segundo o relato enviado para o primo Pantico. Quando de durante viagem de “VELEIRO”, rememora o herói que, velava lembrança, à noite, dos tempos dos noivados em “dormitórios das primas” e lembra que, “uma tarde”, à dançarina Madama Rocambola, confessa, “beijei-a na língua”. Com a memória “A MADÔ DO COMEÇO”, Miramar traz à tona as quedas do escuro da escada a subir até ao sétimo andar da “filha puberdade” do dono do restaurante. Com a lembrança do “VATICANO”, Miramar traz relato de sua experiência de périplo pela Europa, contada pela voz satírica interessada em pesquisar artes plásticas a partir do que satiriza as santas imagens católicas de Rafael e Bernini com suposta inverossimilhança da precisão renascentista. A viagem por München, Milão, Vaticano chega a Sorrento para o Miramar testemunhar não a convicção de o casamento ser sacramento sagrado, “contrato indissolúvel”, conforme mulher de amarelo tem a esperança. Uma antologia gregoriana com poemas satíricos de paródia bíblico-religiosa, editada após uma literatura com a nota de satirização dos ritos e tipos católicos, já assim introduzida por Miramar, é retomada da sátira na literatura brasileira da época barroca e continuísmo do trabalho oswaldiano da era modernista. O rasgar da cortina para por em cena as obscenas quebras de padrões de moralidade das famílias ditas conservadoras ambienta a entrada da sátira baiana com seu desnudar das vivências dos degredados do reino enviados em punição de práticas vividas pelos mesmos condenadores em legitimar-se mútuos em sincronia de discurso sobre ser as mesmas mãos que condenam as que praticam amoralidades imorais, enquanto prosseguem a defender elevada negação moralista do humano tanto nas famílias paulistas quanto no Estado-Igreja colonial. O epigrama “HINTERLAND” é confissão de Miramar: “meus olhos morenos procuraram almoçar os olhos de prima Célia”; com a descrição de que “a laparotomia da adolescência cortara-lhe rentes bochechas com próteses minúsculas de seios e maneiras de caça presa com cachos” e a revelação da sobremesa: “o mato despencava hangars viários e aleguais na linha”. “NAMORO” conta que “Vinham motivos como gafanhotos para eu e Célia

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comermos amoras em moitas de bocas” na aprazível paisagem onde “um matinal arranjo desenvolto de ligas morenava coxas e cachos”. “COMPROMETIMENTO”, sem idealização, apresenta amor como negócio, nota-se a sátira do sacramento pela realidade de trato do tema do matrimônio: “o Forde levou-nos para igreja e notário [...] tendo havido entre nós apenas uma separação precavida de bens”. Os sonhos de romanceamento da vida matrimonial são “IDIOTISMOS” descritos com a memória de que “um crayon de um arquiteto de Paris que tínhamos visto antes do casamento dera-nos a inveja desesperada de uma calma existência a dois”, com a ironia da natureza perfeita, “sairíamos nas férias pelos caminhos sem mataburros nem mamangavas nem taturanas e faríamos caridade e ouviríamos a missa dos bons curas nas catedrais da Média Idade”. A condição de “MELOSOS LUNÁTICOS” rememora Miramar: “eu e Célia fugíamos corpos voluptuosos com catadupa retida de sentimento para a sala de jantar fazendeira”. A DEFINIÇÃO AMOR da poesia de Gregório de Matos como “embaraço de pernas” e “tremor de barrigas”, “confissão de bocas” (AMADO, 1968, p. 1229) em nada é estranha à paródia do casamento das memórias modernistas. “INSTITUTO DE DAMASCO” é sátira do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, constituída quando Miramar relata que “Célia achava que eu devia ter uma vocação nobilitante”, embora se sentisse “apenas um fazendeiro matrimonial”. A prosa epigramática do fragmento de recordação de Miramar registra que a “a barbicha investigadora do Dr. Pilatos veio trazer-nos a visita esquecida de São Paulo”, apresenta que o homem “propôs que deixássemos o Rio aborrecido e paisajal” para revelar o fato de que “Célia fartou-se com anúncios de empresas a cabo levadas pelos seus colegas de team perspicaz no Instituto Histórico e Geográfico”. A ironia de lembrar o lamento do senhor Damasco, “— Pena que seu marido, tão talentoso e jovem, não seja dos nossos, oh! ah!”, após indicação dos presentes recebidos pela esposa, é passagem para o deboche do discurso academicista do Instituto e para o pouco caso da suntuosidade da sede do órgão presentes em “ETNOLOGIA”. Miramar lembra quando “era dono de casa com safras longínquas livros quadros criados e a senhora grávida”, para relatar: “naquela noite fui introduzido no encerramento abobadal e branco do Instituto de cadeiras ouvindo mesa oblonga onde meridianos comemoravam fastos fictícios”, além de “eloqüentes citações diziam sábios lábios trêmulos de moço em nervos”.

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— Mil outros trechos de mil outros escritores convencer-vos-ão, senhores, que o mundo de hoje anda não só pior que o mundo debochado de Péricles e Aspásia, mas pior que o mundo ignaro do Medievo trevoso e pior até que o mundo das utopias científicas e revolucionárias da Revolução Francesa! Nessas intermitências de progresso e regresso, círculos de princípios que formam a base de novas babéis, novas confusões de línguas e novos rebanhos voltando a velhos apriscos, só uma lição nos assoberba, a lição severa da História! O memorando modernista afirma ser mais afeito aos afazeres domésticos do que à pesquisa científica praticada no Instituto antes de citar trecho de discurso, um pastiche caricatural na sátira oswaldiana. A crítica à linguagem purista dos acadêmicos caricaturados por Miramar propicia aos leitores a possibilidade de fruir a arte seiscentista sem amarras à liberdade no uso criativo do verbo na mistura de línguas e de linguagens da era colonial de negros, índios, brancos para livre tematização da vida social. A sátira dos valores românticos promove possibilidade de receber o imenso legado seiscentista a partir de concepções críticas de autor e obra, diversos da busca por vida a partir de poemas ou de interpretação de poesia como resultado de vivências psico-biográficas tal como propugnava a concepção romântica. Epigrama narrativo “FAUSTA” é carta em que há notícia: “tirei o Pantico do colégio porque um padre deu um tapa nele". Imagem de mulher entregue ao desejo é “PROMESSA PELADA”, com descrição de cena habitual de “sala de visita” onde ela “atirava-se contra” “boca sensual e medrosa”, enquanto os dois falavam alto “para disfarçar” e “ela corria os dedos pelo teclado fazendo ressoar uma escala vadia pela casa”. O epigrama vai além: “uma vez olhou-me muito, deixou o tamborete e num gesto esbelto, descobriu-se toda levando até os ombros o ligeiro roupão em que se envolvia”; “e branca e nua dos pequenos seios em relevo às coxas cerradas sobre a floração fulva do sexo, permaneceu numa postura inocente de oferenda”. “MAIS QUE PERFEITO” é recordação de beijo adúltero: “agora quando tínhamos descido a escada longa eu me tinha baixado até os orquestrais cabelos louros”; “e tínhamonos juntado no grande doce e carnoso grude dum grande beijo mudo como um surdo”. A memória de história de um falido adúltero acusado de ser pródigo dilapidador dos bens familiares é o texto “LENGA-LENGA”. Ruptura de um adúltero com uma interesseira que sustenta gigolôs a lembrança “GROGGY”, recordação de que “o falsete empapuçado de Madama Rocambola remexeu uma bolsa suja e apresentou-me um trecho de papel”, acrescida

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da explicação de que “era o amarrotado fora definitivo de Rolah, a cheia de gigolôs” e do discurso direto: “— Ela bem dizia que o Sr. nunca que acabava de dar os cinquenta contos”. Os sentimentos de Miramar dignos de memórias fazem a sátira da dinâmica social com movimento de afastamento da retidão religiosa, educacional e familiar exigidas de famílias tidas como exemplares, tal como se considerava a dele. Uma poesia de escárnio da quebra de ética eclesiástica, da ruptura de padrões sociais para satirização em nada seria novidade em literatura brasileira após os romances oswaldianos consagrados como legado do modernismo de 1920. À descompostura completa beiram os implicados no diálogo memorialístico dos sentimentos de Miramar relatados em “CORRIDA DE GANSO”: — Um tarado o Sr. Conde! Fiz o quadro do amor de prima Gabrielinha, um amor de romance! Sabe? Chamou-a de velha gaiteira! Ousou grosserias, ignomínias, despropósitos. Um tarado! Minha prima, velha gaiteira? Oh! Ah! Veremos! — Mas o Sr. não fez ver que ele pode ir para a cadeia por ter falsificado a firma da mulher? — Olhe, ele chamou-me até de coco da Bahia, e disse que se eu replicasse me atirava o mata-borrão na cara. Eu saí para evitar uma cena de sangue! Oh! Ah! A satirização dos grupos sociais mostra o emprego do baixo calão para agredir como estratégia de expor personalidades ao ridículo de sua postura agressiva feroz, do verbo depreciativo, ao intento homicida, com passagem por referência a excremento. O combate poético-literário na representação criativa da realidade está para além dos grupos familiares e das personagens religiosas no discurso de Miramar. A sátira do recôncavo baiano em nada é estranha ao insulto, ao baixo, ao xingamento, à ridicularização. O fazer modernista, por isso, coaduna-se com a entrega aos leitores de edição antológica com reunião dos poemas seiscentistas nos volumes editados por Afrânio Peixoto como uma consequência passível de ser tida como naturalmente a ser concretizada sem censura, posto ser posterior à obra oswaldiana. O levantamento poético e linguísticos caros a uma edição gregoriana poderia mesmo legitimar como digna de representar fazer artístico do Brasil a obra oswaldiana gente a alguma reserva da crítica.

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Há Sátira do parnasianismo e de Rui Barbosa no “DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTO DA LUZ DURANTE O FOX-TROT PELO DR. MANDARIM PEDROSO”, efetivada por via da exposição de autoelogio para descrédito das referências mencionadas: Porque aqui, meus senhores e senhoras, revelando uma cultura pouco vulgar, em juventudes desta idade, as sócias e sócios não cogitam tão somente dos adornos que eletrizam os do respectivo sexo oposto. Não! Praticam os desportos! Seguindo a lição da Grécia, realizam o eterno anexim Mens sana in corpore sano. Aqui não se lêem romances de baixa palude literária nem versos futuristas! Só se lê Rui Barbosa. Não! Aqui, formam-se dignos filhos e filhas do grande ser que Bilac chamou na sua frase cinzelada e lapidar "Astuta e forte, a grande mãe das raças, Eva!". O descrédito do modo de operar construção discursiva à moda parnasiana e romântica realizado por oswaldiano pode ser tido como preparação do ambiente de recepção para edição composta por poemas de debate sofre o fazer poético, por textos de persuasão para forma de bem pregar sermão; mesmo de ridicularização dos grupos oficiais de detenção de poder político e intelectual. A poesia fundacional na pena gregoriana faz vir à tona polêmica sobre o uso da língua nas práticas discursivas de literatos seiscentistas com a nota de ridicularizar quem se apresenta como antagonista da persona satírica. Com a satírica ironização das personalidades conservadoras de seu passado, o legado de Oswald de Andrade colabora para aceitabilidade de um Gregório de Matos em edição ampla com poemas fesceninos, por definição, alheios a purismos linguísticos. Os romances de invenção construídos por Oswald de Andrade plenamente formam horizonte para a sátira baiana ser editada sem corte da musa praguejadora. Serafim Ponte Grande apresenta provocação risível com o propósito da sátira de fazer sorrir pela escolha de palavra e pelo tema desde o indivisível epigrama recitativo: PRIMEIRO CONTATO DE SERAFIM E A MALÍCIA A—e—i—o—u Ba — Be — Bi — Bo — Bu Ca — Ce — Ci — Co — Cu

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Interessa ao herói Serafim sua “RECORDAÇÃO DO PAÍS INFANTIL” quando contempla, além de memória da alfabetização, o deslumbramento com “o mar cheiinho de siris”, observado em mesmo momento em que “a menina mostra o siri” e, na ida “à praia das Tartarugas”, em que “o menino foi pegado dando, atrás do monte de areia”. Em “PARÁFRASE DE ROSTAND”, a comparação com os efeitos de se olhar o astro rei faz jogo malicioso com sonoridade: “Assim também quando eu deixo” / “Os fogos de que tu m'inundas” / “Meu olhar espantado” / “Pousa as manchas em que tu abundas”. No epigrama “Da Adolescência Ou Seja A IDADE EM QUE A GENTE CARREGA EMBRULHOS”, a satírico-risível passagem da solenidade à galhofa do título tem correspondência na comicidade do modo de registrar episódio: “a loira deixa-se apalpar como uma janela. No escuro. Numa noite de adultério ele penetra na Pensão da Lili”. Ferina paródia bíblico-religiosa é o poemeto cujo tema do oferecimento do corpo como ato voluptuoso ganha conotação satírica pela escolha do título: PROPICIAÇÃO: Eu fui o maior onanista de meu tempo Todas as mulheres Dormiram em minha cama Principalmente cozinheira E cançonetista inglesa Hoje cresci As mulheres fugiram Mas tu vieste Trazendo-me todas no teu corpo. A escolha do título com emprego de mesma palavra empregada para significa a morte de Jesus o Cristo para remir a humanidade para dar nome ao poema de descrição de propiciação de troca de corpos na imaginação para deslocamento dos objetos de desejo para um só corpo possuído na fantasia solitária é tão risível quanto o texto dialogal-dramático de rememoração das consequências imediatas de o herói haver cedido a satisfazer os impulsos de Lalá em “VACINA OBRIGATÓRIA”. Antes de ter aulas de ginástica com o herói, a futura esposa já estive com o Tonico (“Lolá .— Eu acho que foi o Tônico...”) e com o batatinha (“Serafim — Mas andaste duas vezes de forde com o Batatinha!”). A cena na delegacia resulta

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em casamento acertado embora a noiva desconheça quem a iniciou. O desprendimento, “Lalá atirou-se do viaduto do escândalo ao primeiro sofá”, da moça Lalá como ruptura frente ao pundonor elogiado pelo delegado e pelo pai na frente de quem o Serafim é coagido por chantagem e ameaça a acordar consumar matrimônio; assim como os dois passeios de Ford alegados pelo noivo (fazem a jovem confessar: “Por isso que eu estava ficando louca lá em casa!”) são tematização em literatura de deliberada liberdade sexual feminina. Já não seria ousadia inesperada se uma edição gregoriana apresenta-se poemas dessa nota, como voz feminina a quebrar tabu da confissão de práticas libidinais. Frente ao desejo da Lalá de passar férias em viagem, Serafim faz paródia do sacramento matrimonial em “FOLHINHA CONJUGAL OU SEJA SERAFIM NO FRONT”. Com subtítulo Quinta-feira, lança: “seria excelente para mim, homem de sensibilidade que sou. E quem sabe se também mudar de paisagem matrimonial. Sed non pos-su-mus! como se canta no intróito da missa”. A liberdade satírica de tratar de sexualidade está no subtítulo Terça-feira. Serafim opera ridicularização da censura linguística ao dizer não saber se faria o que faz, de pronto, por duas vezes, ao comentar desejo de escrever romance naturalista com emprego da palavra coito: “Nota: Não sei ainda se escreverei a palavra ‘coito’ com todas as letras. O arcebispo e as famílias podem ficar revoltados. Talvez ponha só a sílaba ‘coi’ seguida de três pontinhos discretos. Como Camões fazia com ‘bunda’”. No subtítulo Domingo, há depreciação do Estado e, outra vez, a tematização de inquietações libidinais levadas ao plano do satíricocômico: “Benedito Carlindoga, meu chefe na Escarradeira (vulgo Repartição Federal de Saneamento) partiu para a Europa, a bordo do vapor Magellan. [...]. Continuo a viver uma vida acanalhada. Só vejo um remédio para me moralizar — cortar a incômoda mandioca que Deus me deu!”. A sátira das obras divinas e da relação sexo-moralidade está na imputação a Deus do nexo causal de haver inquietações contrárias à moralidade devidas exatamente ao fazer divino da constituição do homem Serafim. A desbocada sátira baiana a circular em antologia após as lembranças de Serafim haveria de ter seu efeito de chocar atenuado para leitores da literatura brasileira tanto por essa descrição paródica da anatomia e das experiências humanas em simulação de criacionista ponto de vista sobre si; quanto pela menção paródica aos Dez Mandamentos bíblicos seguida por cômico modo de auto-apontar comportamentos amorais em Sexta-feira: “desenvolvimento imprevisto da tragédia íntima que as Doze Tábuas da Lei me obrigaram a fazer”. O mandamento grafado em pedra segundo relato bíblico é o

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responsável, ele mesmo; não quem o quebre, pelos sofrimentos matrimoniais relatados na experiência da personagem, uma inversão paródica de movimento de responsabilização. No poema seiscentista, no qual “Queixa-se a Bahia por seu bastante procurador, confessando que as culpas, que lhe increpam, não são suas, mas sim dos viciosos moradores que em si alberga” (AMADO, 1968, p. 11-28), nota-se que Cada pecado é coisificado em um ou mais atos, dispostos no espaço e no tempo da sua Bahia: os calundus e os feitiços, esperança do povo, pecam por idolatria contra o primeiro mandamento; as falsas juras contra o segundo; os gestos desleixados dos homens durante a missa e os adornos vistosos das mulheres, contra o terceiro; os maus hábitos dos filhos, contra o quarto, as línguas ferinas, contra o quinto, os bailes e toques lascivos, contra o sexto; os furtos dos novos-ricos, contra o sétimo (BOSI, 1992, p. 113).

Alfredo Bosi escreve sobre as dezoito páginas gregorianas, na edição de James Amado, de “intersecção viva de sátira social e código moral contra-reformista”, nas quais há declaração de que “confessar quero os pecados” \ que faço, e que patrocino”. O poema gregoriano aclimata o epigrama oswaldiano como seu contexto pretérito na sátira da literatura brasileira, assim como a paródia bíblica do decálogo dos anos vinte recontextualiza o canto paralelo ao mandamento de Moisés entoado ao tempo da Dialética da colonização. Serafim revela o pedido de divórcio por ele prontamente aceito, mas somente a indissociabilidade matrimonial seria quebrada, sem separação de corpos. A folhinha conjugal revela em Domingo: “nada mais incômodo do que esse negócio de ter filhos sem querer. Para evitarmos os abortos levados a termo e os outros que Lalá vive provocando com risco da própria vida”. Não somente o registro amoral de método anticoncepcional contrário à fé católica, o despudorado Serafim conta das intimidades sobre sua insistência para Lalá aceitar injeção de prevenção à gravidez até o fim do processo de convencimento chegar ao clímax do cômico da sátira da vida sacramentada pelo casamento: “quando acabei de convencê-la já tinha perdido toda a força!”. Relatada as pazes, Serafim, tão sem culpa quanto foi sem moralidade a prática de aborto e recusa pelo anticoncepcional da parte de Lalá, faz a confissão de adultério com comicidade em Segunda-feira: Afinal a criada foi uma desilusão. Compursquei o meu próprio leito conjugai, aproveitando a ausência de Lalá e das crias. No fim, ela gritou!

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— Fiz um peido!! Travessuras de Cu... pido! A paródia da imagem de Cupido na DEFINIÇÃO DE AMOR da poesia seiscentista como quem “anda [...] nestas eras” “com o cu à mostra, jogando” / “com todos a cabra-cega” (AMADO, 1968, p. 1224) é construção risível familiar para o leitor da folhinha conjugal da sátira dos anos 20. A travessura com insinuação de sodomia com a criada antecede registro de sonho homossexual em Quinta-feira: “vem-me à cabeça a toda hora, uma idéia idiota e absurda. Enrabar o Pinto Calçudo. Cheguei a ficar com o pau duro. Preciso consultar um médico!”. Não menção a moralidade ou a pecado, mas possível desordem na saúde está nesse episódio da vida do herói que antecede possível generalizada prática transmissora de doença venérea em Sexta-feira: “O Manso relata-me que um tal Matatias, cunhado de um primo dele, nunca teve nenhuma manifestação de sífilis, nem hereditária nem pegada — mas eis que agora está com a vista e a espinha invadidas. Aconselha-me a fazer exame de sangue em todos da casa”. A sátira à relação do “Marinícolas” com “Marcos”, cuja marca é “que se ao rabo por casa anda dêle, / o traz pelas ruas ao rabo de si” do poema encimado por didascália NOCOLAO DE TAL PROVEDOR DA CASA DA MOEDA EM LISBOA, QUE SENDO BEM VISTO DÁL REY DOM PEDRO II ENCONTRAVA OS REQUERIMENTOS DO POETA: O QUAL ENFADADO DAS SUAS DEMAZIAS LEH SACODIO O CAIXEIRO DEST SÁTIRA (AMADO, 1968, p. 1662-1668) torna as confissões oníricas oswaldianas retomada da satirização de comportamentos homoeróticos dos versos gregorianos. Além da possível epidemia devida a comportamento desregrado coletivamente, a justaposição de proposições leva o relato de Serafim para o plano do risível também em seu tom praguejador de desejar morte. Tratam-se dos casos, explícito em Terça-feira: “Amanhã, missa em Santa Efigênia. Ação de graças pelo aniversário da besta do Carlindoga. Podia ser de 30º dia!”; e tácito em “Sábado”: “Lalá passou mal à noite. Não morreu”. Serafim ressignifica texto bíblico para palavras de legitimação de beijo adúltero em Segunda-feira: “A César o que é de César. Beijei a criada nova”. Na abertura da vida privada, mesmo discreta e metaforicamente, confessa também fraqueza de insegurança ao revelar possível calor da esposa em Domingo: “Lalá fez a surpresa de me preparar um quentão com gengibre e amendoim. Será que não estou com a escrita em dia?”. A insegurança masculina é ainda outra

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vez motivo de riso na sátira da família com as insinuações de Quarta-feira: “Ontem, último dia de Carnaval, fizemos o Corso na Avenida Paulista. Vaca com o Manso para pagar o táxi. Além disso, ele, gentilmente, ofereceu uma bisnaga das grandes à Lalá”. Após Serafim, a musa praguejadora manifesta na poesia da Bahia do século XVII teria atenuado possível escândalo de uma antologia gregoriana com poemas de paródia da Bíblia e de desejo de morte de autoridades, assim como em seu tematizar a sexualidade em vivências masculina e feminina, além das práticas de sodomia e homossexualidade satirizadas, além do tratamento cômico do sacramento matrimonial, do uso de texto bíblico para legitimar comportamento tido como pecaminoso, referência à cópula, ridicularização de clérigo, desqualificação de instituição do Estado. Palavras de baixo calão estão no discurso de Serafim em momento prévio à reunião dos poemas gregorianos por Afrânio Peixoto de onde sairia a seleta elaborada por Segismundo Spina (1946) em uma convergência temático-linguística propiciadora da retirada do isolamento em manuscrito resguardado em biblioteca dos textos fundadores dessa tradição satírica na literatura brasileira. “O TERREMOTO DOROTEU” faz a sátira da família abençoada pelo sacramento viver vários episódios marcantes para o esposo de indiferente postura a regras matrimoniais de investimento parental masculino (“Mando às favas os ciúmes horríveis de Lalá e as eternas tosses compridas das crianças”), e de confessada experiência de ousadia feminina (“Fiz confidências ao Pinto Calçudo. Estou arrependidíssimo. Contei-lhe que ela me mostrou os peitos”). Serafim é profeta de sonhos de ruína em associação interpretativa de vivência onírica de homossexualismo com abandono e desonestidade: “Sonhei que tinha mudado de sexo e era noiva do Pinto Calçudo. Sinal de calamidade! De fato, o Birimba sumiu da Repartição e Dorotéia fugiu da Pensão, sem pagar a conta”. A paródia da instituição família faz inversão dos valores na fidelidade oferecida a concubina, não à esposa: “Ando sinistro, magro e pensando em suicídio. Abstenção sexual absoluta. Continuo fiel à minha perjura”. Dorotea faz filme com repercussão da cena final relatada em linguagem despudorada também em “título infamante em jornal: ‘O pau duro dos trópicos não respeita estrela!’”. A inversão paródica do sacramento matrimonial prossegue com sagrados juramentos da concubina, não da esposa: “Sinto-me tranqüilo. Curvo-me sob a desequilibrada férula do Destino e entrego ao Divino Acaso a minha desarvorada existência. A Dorotéia amorosa e boa que foi, esfriou, mudou de opinião, esqueceu os mais sagrados juramentos, sei lá porque!”. A castidade temporária é

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quebrada com a confissão cômica pela escolha do verbo justaposto ao pronome do tratamento: “Enrabei Dona Lalá”. A satirização da poesia gregoriana dos valores tradicionais defendidos pela Igreja de haver práticas íntimas somente no seio de família monogâmica heterossexual tão apenas para procriação está na epigramática de Serafim de modo a fazer uma antologia pós-1922 ser edição com horizonte de expectativa literária já constituído para receber a sátira baiana seiscentista. A dinâmica familiar faz-se cômica nas confissões de extraconjugais taras secretas de “TESTAMENTO DE UM LEGALISTA DE FRAQUE”: “De noite, às quintas e sábados, fazíamos filhos com a cara enquadrada nas claridades cinematográficas da janela. Pensava no grelo de Pola Negri, ou nas coxas volumosas de Bebê Daniels. Minha esposa pensava em Rodolfo Valentino”. O fragmento da história de Serafim apresenta referência ao tempo colonial de luxuriosa permissividade ( “E os índios onde os missionários inocularam a monogamia, e o pecado original! E os filhos dos desgraçados co'as índias nuas! Vinde! Vinde destroçar as tropas do Governador-Geral! Fogo, indaiada de minha terra tem palmeiras!”); e subversão da instituição familiar consagrada santificadamente pelo sacramento do casamento da tradição católica (“Amei acima de tudo a infiel Dorotéia e a minha cidade natal. Nunca me vem à memória, senão para odiar, a minha família, desaparecida com o Manso da Repartição, numa fordinha preta, na direção da Serra dos Cristais”). Serafim cita doutor da Igreja para elogio de ato sexual extra-matrimonial em “INTERMEZZO”:

Ora, a fornicação é deleitável... São Tomás de Aquino — De Maio — art. 9 — ad 7 — q III. A sátira oswaldiana ambienta poemas seiscentistas como de tematização de suposto dilema amoroso frente à necessidade de optar por uma dentre três irmãs, apresentadas como “Três pessoas em uma só” “Beleza”. Os versos fazem analogia com trindade católica Pai-FilhoEspírito Santo. Encimados pela didascália A TRÊS IRMAS FORMOSAS DAMAS PARDAS, QUE MORAVAM NO AREYAL, partem do idílio dilemático para atingir a admissão de, “se eu hei de me perder” / “tomando uma e outra”, querer “Maricota, e Leonor,”/ “por não errar na eleição”. A subversão do discurso do doutor da igreja da sátira modernista sobre prática

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sexual moralmente condenável tem por predecessora a busca por fornicação para sair de drama amoroso na poesia risível seiscentista de paródia bíblico-católica. O diálogo de Oswald de Andrade com a investigação ensaística de Paulo Prado está muito além da dedicatória puramente por afeição pessoal. Os motivos a que recorre o romancista são caros ao seu mentor, mas o trato de temáticas sob a forma da subversão parodística são sintonizados com o tom sátira gregoriana. A exposição ao ridículo risível, operada por Serafim, faz do nexo temático com Paulo Prado, não conformidade; sim, tensão mais alinhada do lado do barroco do que do historiador. Lista de nomes anotados por José Ramos Góis Pinto Calçudo amigo e subordinado de Serafim na Companhia onde trabalham apresenta Aguiar Nogueira (Dr.), médico que curou serafim “de recaída de gonorreia”; Birimba, vendedor de Cocaína, famoso por desfilar “seminu, mexendo aquele negócio”, e Seu Kuk, alemão que “faziam troça com o seu homônimo corporal”. Título como didascália dos códices gregorianos anuncia tragicomédia de suicídio de capitão decepcionado com a vivência de sua amada: “De como o impávido Capitão Leão após ter produzido um soneto se atira ao pélago verde mar pela vigia do bergantim”. Após receber revelação: — Mas ela é virgem... — Virgem? Só se for no sovaco! Pois eu conheço um alfaiate que passou um mês e meio com ela, em Santos, fazendo todos os números. Após escrever soneto iniciado pelo verso “Nunca pensei que tu não fosses virgem!”, o capitão mata-se, lançando-se ao mar. Com o título didascálico “De como Pinto Calçudo querendo fazer o ‘Olho do Porco’ produz um desenho imoral pelo que é de novo posto a ferros”, Serafim relata: “E tratando-se de desenhar o ‘Olho do Porco’ da cara vendada, Pinto Calçudo não tarda em produzir no soalho do tombadilho uma piroquinha, razão por que o Capitão apita, o RompeNuve estaca e quatro robustos marinheiros o agarram e trancafiam nas masmorras do porão”. Em “Movietone ou Interpelação de Serafim e definitiva quebra de relações com Pinto Calçudo”, conversa no reservado dos homens assim se conclui: “— Diga-me uma coisa. Quem é neste livro o personagem principal? Eu ou você? Pinto Calçudo como única resposta solta com toda a força um traque, pelo que é imediatamente posto para fora do romance”. Se editada, na década de 1940, a poesia de franca apropriação de vocabulário usada para referências às

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intimidades do corpo em seus atos fisiológicos produzida no século XVII, receberia franca sintonia com a satirização risível dos comportamentos praticada na década de 1920 no que há de mais criativo da literatura brasileira de então. No poema de A MESMA VIEGAS SACODE AGORA O POETA ESTRAVAGANTEMENTE, PORQUE SE ESPEIDORRAVA MUYTO, os versos “Dizem, que o vosso cu, Cota,” \ “assopra sem zombaria,”, teriam sua extravagância atenuada frente aos dados cômicos da sátira oswaldiana a moldar sua recepção. Mesmo não sendo assim tão explícito o desbocamento do narrador de Serafim em comparação com a sátira seiscentista, “pararece, que está de aposta” \ “este cu de peidos dar”, o “traque” dos anos 20 é tão risível quanto, na cena em que é disparado no romance de invenção. Em “História Trágico-Marítima”, há elogio da liberdade na fala de Serafim com escolha de verbo despido de pundonor: “— Fornalha e pêssego! Domingo de semi-deusas! Egito dos faraós! Roma de Garibaldi! Dás dobrado o que as outras capitais oferecem! Ao menos, dentro de tuas muralhas, se pode trepar sossegado!”. O mesmo contraste de passagem de tom formal solene para o coloquial jocoso está no poemeto de ressignificação, deixada ao leitor para completar a leitura pelo retorno aos segmentos poéticos, do ditado popular ao término do texto: PERN' INO Saia branca Engomada Das avós brasileiras Repolho de pecados Fábrica de suores Ninho de bebês Onde estás? Em que arca? Saia de dançarina Das senhoras honestas De meu século Rala Pétala Vais subindo E deixando ver Nas ruas, nos bars, nos automóveis Os troncos florestais Onde eu mergulho

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Pernas Pra que te quero! Da insinuação lasciva pela conciliação da imagem de saia com perna com uso erotizado do ditado popular, veja-se também a explicitação das atrações físicas em jogo de corte marcado por trapaça feminina sofrida por Serafim em “DECEPÇÃO D'AMOR”: “Nas 24 horas seguintes, ele tropica numa italiana cinematizada do Hotel Lutetia e combina de jantar e suarem juntos. Mas quando ele foi buscá-la num elegante táxi, ela fugira nos abraços de um gigante para o Alcatrão da Noruega”. Em “ÉPOCA MAQUINISTA”, depois de haver adquirido máquina e testado funcionamento, lê-se: — Volta para o regaço de Joaninha, a insone! Essa te ama com os vinte anos de Mistinguette, anônimos e doloridos. Todas as noites veste o pijaminho que lhe compraste nas Galeries Lafayette e soca uma bronha em tua honra! Serafim entre pundonoroso e encantado pára a imoral. O prazer pelo prazer do fragmento está também na relação amor-sexo segundo Dona Branca Clara a compreende diante de Serafim em “CÚCEGAS”: “— Escuche Dom Serafim. Eu lhe falo com todo o descaramento de que uma católica fogosa é capaz. Um homem só bolina e diz que ama para fazer da protagonista duas coisas — ou sua esposa ou sua sobrancelha...”. Poema oferecido a Dona Branca Clara deixa ao último segmento poético a possibilidade de gerar o riso como é próprio da sátira. Sob título “O AMOR — poesia futurista”, os segmentos poéticos fazem a sátira da associação amor-sexo: O AMOR — poesia futurista A Dona Branca Clara Tome-se duas dúzias de beijocas Acrescente-se uma dose de manteiga do Desejo Adicione-se três gramas de polvilho do Ciúme Deite-se quatro coleres de açúcar da Melancolia

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Coloque-se dois ovos Agite-se com o braço da Fatalidade E dê de duas horas em duas horas marcadas No relógio de um ponteiro só! A receita de amor da poesia futurista é tão persuasiva quanto o poema seiscentista de DEFINIÇAO DE AMOR para o qual “quem diz outra coisa, é besta” (AMADO, 1968, p. 1229) sobre conceber o amor para além do gozo físico de amantes em inocência. A dissonância com a conclusão da poesia seiscentista encaminhada após enumeração de definições de amor é risível também por se concluir como quebra da elaborada segmentação de oxímoro e antítese. A ambiguidade da forma verbal “dê”, combinada com a indicação do tipo de relógio a ser usado para o suposto tratamento, deixa ao leitor o efeito de comicidade da visão de coisas das fatalidades e dos deleites da vida amorosa. Potencialmente cômica também é a confissão de adultério feminino registrada em “MISSIVA A UM CORNO”: Coronel, Enganei-lhe com um cavalheiro ignorado. Foi devido a um coupde-foudre! Subi ao quarto dele, na Rua dos Mártires. Fiz o amor e tive uma grande desilusão. Joana a louca P. S. Creio que estou grávida! O pai deve ser S. Exa. o furacamisas! O contraste da formalidade de “missiva” com a informalidade de “corno” na escolha do nome do texto é potencialmente hilário tanto quanto o fato de ser carta sobre amorrelâmpago em envolvimento carnal confessado por uma “Joana a louca”. Em outro fragmento, “NUIT DE CHINE”, Serafim lança-se à corte de Branca Clara e ouvi declaração da cortejada: “— Sabe de que mais, Dom Serafim, todos os homens que se aproximaram de mim até hoje, brocharam. Todos!”. O herói insiste em atingir seu intento com total isenção de romantismo cavalheiresco, mas com palavras diretas e insinuações risíveis em “SERAFIM MENESTREL”. Depois de insistir no aprazer e na simplicidade de “apenas um après-midi” da vida da desejada sob alegação da singularidade brasileira, Serafim dispara o efeito de ser amada por um legítimo brasileiro: “Guardareis no fundo do vosso coração e do vosso sexo a

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baita lembrança desse après-midi”. O herói vive aventuras outras além da de buscar conquista de mulher sob promessa de dotes físicos de legítimo brasileiro, pois em “CUDELUMES”, “Serafim pisa as escadas subterrâneas da Rue Daunou e encontra no newyorkino zinco do bar que o espera solitário a cabeleira esguia de um jovem artista arquiteto e pintor da Grande República Estrelada da América do Norte, o qual admira os alemães pelos seus dons polissexuais”. Os dois tecem diálogo sobre “uranismo” e “promiscuidade” para, ao término: “— Garçon! um gin seco, um side-car e especiarias! Nosso herói oferece ao jovem moço recondução, hotel e vias urinárias”. Mais sutil do que o relato oswaldiano é a provocação a Marinículas (AMADO, 1968, p. 1665) que “estava com Marcos” \ “Limpando-lhe os mocos de certo nariz” da sátira gregoriana. Ainda que se fizesse mais explícita em escolha de palavra para desenvolver motivo poético, impossível de ser tida como novidade a ser redescoberta em edição de depois dos romances de invenção com seu elenco de referência a práticas permissivas. Tanto as aventuras do herói modernista não são tidas como motivo de tristeza para esse brasileiro, antes, seriam, porém, razão de fruir o legado poético seiscentista; como esse mesmo espólio textual secular permitiria mais experimentar as aventuras dos personagens de Oswald de Andrade. A tematização da intimidade, no epigrama narrativo “TAXIMETRO”, dá-se hilariante pela escolha de palavras de campo semântico da fauna empregadas para significar gestos e desejos lascivos. Depois de “Quando ele lhe deu um ósculo e pegou na coxa de setineta”, “sob a calça, ligeiramente tocou-lhe o mandorová. Mas ela disse”: — Oh! Vós me fazeis corar! A berlinda passa no quilômetro 69. — Morde minha estegomia! Narrador a usar nome de lagarta e personagem a fazer referência a mosquito compõem o quadro de diálogo cortejador isento de idealizações, antes marcado pela tensão de referência fálica como objeto corrosivo, justaposta a metáfora letal no jogo de paralelismos vocabulares risíveis. A sátira dos novecentos formaria horizonte de expectativa para a poesia dos seiscentos como no caso do poema A HUMAS FREYRAS QUE MANDÁRAM PERGUNTAR POR OCIOSIDADE AO POETA A DEFINIÇÃO DO PRIAPO E ELLE LHES MANDOU DIFINIDO, EXPLICANDO versos com metáforas de referência a vegetal, “é pepino de semente”; e

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comparação com animal, “é como cobra enrolada” (AMADO, 1968, p. 1195). Mesmo a comicidade de ser o encontro das intimidades complementares potenciamente dilacerador, como “mandorová” e “estegomia”, está sátira secular: “Está sempre soluçando” \ como triste solitário”, \ “mas se avista seu contrário” \ “fica como o barco afando:” [...] \ “(qual Galgo, que a lebre vê)”. A intimidade feminina está em “DE PAPAGAIO” também com uma referência cômicocriativa a comportamento de mulher embriagada: “E veja que saias. Vê-se-lhe tudo! Até os bigodes, com perdão da palavra!”. Seios atirados ao lago é centro de relações metafóricas e metonímicas do erotismo de “SERAFIM NOS LAGOS”: “Um gramofone sentimentaliza o planeta e a alemãzinha atira os seios como pedradas no lago”. A paródia do método psicanalítico verifica-se em “CONFESSIONÁRIO” com dessacralização do símbolo maior de santidade cristã. O fragmento é relato de suposta carta ao “Prezado e grandessíssimo Sr. Sigismundo” com a natureza dos sonhos de Dona Branca Clara: “Vive sonhando que tem relações sexuais com Jesus-Cristo e outros deuses. Isto é demais! Peço-lhe o socorro da psicanálise”. O texto envia também relato de um pesadelo: “O aviador zangou-se. Começou falando baixo e pouco a pouco levantou a voz e tirou para fora o pênis. Eu fingi que não vi e por isso fui condenada à morte. Jesus-Cristo também”. O texto continua com a visão onírica: “Jesus-Cristo encostou-se todo em meu corpo. Eu desci no meio de escadas. Estava numa capela de colégio cheia de alunas, genuflexórios de alumínio e freiras. Que nojo!”. As visões da noite são de angústia da paródica e satírica construção textual não somente pelo envolvimento em sonho de união corporal; há também o pavor causado por presença de eclesiásticos no mundo sonhado. Insinuação pela relação som-sentido está em “A VIVA MORTA!” com a comicidade de ser construído diálogo com transição de o sentido do viver abordado pela dama: “Ora, uma mulher nova e bela, mais que bela, duma severa beleza, se apresentava agora à sua pornográfica imaginação. Ela existia, estava ali — viva e morta! Viva porque suas pulsações latiam como cães de fila sob a moldura da cútis num ritmo adolescente, tudo, tudo prometendo mas nada dando”. O herói não desperta o interesse da cortejada Dona Solanja, mas seu querer revelado pela combinação cútis-dando faz a cena imaginativa cômica mesmo antes da escolha do adjetivo “meditabunda”: “Houve um divino silêncio apenas turbado pelo barulho poético da ventania. Mas meia hora após vendo-a meditabunda, ele ofereceu-se-lhe

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cavalheirescamente em holocausto”. O emprego de mesma palavra. “holocausto”, para significar o oferecimento à fruição no fragmento, que a empregada para significar o sacrifício messiânicos de Jesus em rememoração neotestamentária dos ritos de queima de cordeiros antigotestamentários da Bíblica faz, da lembrança do herói oswaldiano, uma paródia da escritura. O fragmento de “A MASCARADA FLUTUANTE” apresenta mostra da escolha linguística utilizada para registro cômico da imagem do Serafim percebida em carta da cortejada dona Solanja: “Entretanto dessas páginas jogadas sobre o característico papel de bordo como o ouro generoso de um milionário ao acaso de uma roleta, aprumava-se como um fálus sob uma calça o duro nervo de uma personalidade”. O texto apresenta a insinuação na comparação contrastante: “Ela só tinha uma preocupação: procurar a beleza por fora. Ele, ao contrário, gostava da beleza por dentro”. A avaliação de “A SOMBRA RETROSPECTIVA” constata: “Só uma coisa tinha sido real em sua vida; o amor de fera de Dona Lalá. E o cabaço, aliás complacente, de Dorotéia!”. O processo de inversão paródica dos valores católicos é o cerne da construção cômica de a concubina ser deflorada quando do encontro com o herói; enquanto a esposa fora previamente ao enamoramento pelo esposo. O diálogo de “VENDETTA!!” é construído sem meias palavras ou eufemismo: — Outra dose? — Obrigado. Estou cheia. Só quero lavar as mãos e mijar! — Não vai uma gemada? propôs ele delicadamente. — Tenho medo que me dê gases! A referência aos fluidos corporais fazem a comicidade da paródia dos encontros amorosos. O casal comia macarronada antes de sair à rua outra vez quando descobrem-se os intentos da dama: “Ela esperaria em vão o bandido mascarado para o assalto de suas pérolas ou o estraçalhamento de sua anti-higiênica virgindade”. O trágico fim do passeio para jantar traz linha tragicômica de reencontro com Doroteia pela postura do herói, pela escolha do verbo no mais que perfeito: “Houve três estampidos na direção do feliz casal. Mas eles não tinham sido atingidos. Então, sem que ninguém a visse, a nobre dama passou rapidamente a mão nas calças do atarantado Serafim e tirando-lhe a pistola, sem hesitar, sapecou seis vezes azeitonas no coração da desgraçada Dorotéia que outra não era senão a pandorga que o Barão

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fodera em moça nas almofadas femífloras da Pensão Jaú”. No fragmento “PÓRTICO”, o herói deixa-se passar por outra pessoa quando testemunha a cena de colegial que o confundia com artista: “Eu me chamo João no colégio, Pafuncheta na vida. Eu e Caridad somos muito queridas. Temos três amantes em comum. — É um colégio misto? — Não vê! Não admitimos marmanjos em amor! Sentara-se, deixando ver até os intestinos”. A exibição do corpo e a confissão de lesbianismo imobilizam o herói a se revelar alguém diverso de quem procuravam. O trecho faz parodização bíblico-cristã com insulto ao símbolo de pureza casta: “ — Mande-nos retratos para Jerusalém... Convento de José, padroeiro dos trouxas...”. O insulto indireto à virgem Maria pela piada lançada com a referência a José no tratamento cômico aos símbolos religiosos demonstrados por Serafim harmoniza-se com a dessacralização indireta do símbolo maior de castidade promovido pela busca por valer-se à mãe do Cristo para consecução de serviços sexuais: “Valha-me a Virgem Maria,” \ “que achaque pode ser este?” (AMADO, 1968, p. 1581), pergunta a voz satírica sobre todas as mulheres estarem menstruada ao mesmo tempo. A sátira faz insulto às origens históricas do cristianismo com o dado de que Deus amaldiçoa terra escolhida, conforme Serafim aprende quando viaja em périplo pelas terras das histórias bíblicas: “Um padre bem vestido informava para um bando internacional de Kodaks que Cristo escolhera o país estéril, a fim de não estragar com a maldição de Deus uma Suíça ou uma Itália” (“— Visão econômica, meus caros irmãos!”). A viagem de Serafim prestase à subversão de história da Bíblia quando procura o túmulo do cristo: “Serafim aproximouse. Eram dois soldados curdos. Perguntou-lhes pelo Santo Sepulcro. — Não há nenhum Santo Sepulcro... — Como? — Nunca houve. — E Cristo? — Quem? O outro esclareceu: — Cristo nasceu na Bahia”.

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Ao fim de visita a local do túmulo de cristo, “Serafim viu na sombra, sentado sob a defesa secular de uma parede, os olhos em brasa dum pederasta de barbas e batina”. O herói tenta, mas falta coragem e há pouco atrativo sexual para deflorar sua desejada em “PÓRTICO”: “‘Felizmente ele teve um acesso de remorso e saiu’". Mesmo vítima de própria covardia, o resoluto herói tenta outra vez: “Desceu até lá embaixo”; “Ele procura é lá. Entrego-lhe tudo pela primeira vez. Os seios esféricos e pequeninos, o ventre”. Gradualmente, vai entrando: “Caridad deitara a cabeça no colo dele e cheirava-lhe vo-luptuosamente as virilhas”; "Lambeu minha tatorana. Nunca pensei que fosse tão agradável!". O relato do episódio amoroso é construído em tom romanesco com a comicidade das escolhas de palavras informais: “minha lança se revolta contra a tua virgindade”; “Minha mão em concha apanha a tua bunda quente, viva, musculosa e buliçosa”; “Encosto a língua na tua, mole, babosa, salivosa”. Tanto a parodização de temas bíblicos, quanto a explicitação de cenas eróticas comuns à sátira gregoriana, elaborada para agredir ou para ajustar, estão na construção do Serafim em sua busca pelo coito para se alegrar com relato criativo para agredir a moralidade conservadora. Em “FIM DE SERAFIM”, há poema de referência ao Brasil como terra sexual de atos alheios ao sacramento:

Fatigado Das minhas viagens pela terra De camelo e táxi Te procuro Caminho de casa Nas estrelas Costas atmosféricas do Brasil Costas sexuais Para vos fornicar. As terras do novo mundo em nada geram escândalo ou reprovação quando do relato de Serafim se faz mais explicitamente relacionado com o interesse ensaístico de Paulo Prado. Campo semântico do baixo calão relacionado com sexualidade está no último dos fragmentos de Serafim “MONTOYA. A Conquista Espiritual”:

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Seguiu-se um pega em que todos, mancebos e mulheres, coxudas, greludas, cheirosas, suadas, foram despojadas de qualquer calça, saia, tapacu ou fralda”. Na ponte de comando, incitando a ereção da grumetada, um bardo deformava Camões: E notarás no fim deste sucesso Tra Ia pica e il cul qual muro é messo! Um princípio de infecção moralista, nascido na copa, foi resolvido à passagem da zona equatorial. E instituiu-se em El Durasno, base do humano futuro, uma sociedade anônima de base priápica. O poderoso Jack da piscina pederastou em série, iniciando ante avisada assembléia pálido conde sem plumas. Todos gritavam, batendo palmas: Chegou o dia dos anos do conde! A sátira oswaldiana faz da conciliação do erudito solene com o baixo desbocado uma constante com potencial para gerar o riso tal como percebido nos pares despojadas-greludas; priápica-pica, pederastou-anos. Se, por um lado, a exegese de cada fragmento exigiria algum esforço para levantar repertório lexical e enciclopédico a fim de construir sentido para os diversos textos componentes da história de Serafim; por outro, os episódios de sátira mostram-se sem dificuldade em sua potencialidade de se fazerem hilários por se configurar aspecto claro e recorrente do início ao término das aventuras de Ponte Grande. Também é de facilmente recuperável humor o poema A OUTRA FREIRA, QUE SATYRUZANDO A DELGADA FISIONOMIA DO POETA LHE CHAMOU PICAFLOR: Se Pica-flor me chamais, Pica-flor aceito ser, mas resta agora saber, se no nome, que me dais, meteis a flor, que guardais no passarinho melhor! Se só de mim o Pica, e o mais vosso, claro fica, que fico então Pica-flor. (AMADO, 1968, p. 854)

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As referências fálicas da fala do narrador oswaldiano encontra correspondente na poesia hilária da voz satírica gregoriana; uma no jogo erudito piadista; outra, no jogo linguístico ridicularizador, mas as duas com diálogo para condicionar uma a aceitabilidade da outra como construções criativas para recepção leitora. Pela vinculação dos temas libidinais, corporais, comportamentais ao vocabulário, às ambiguidades e aos jogos sonoros, assim como pelo efeito risível desses aspectos textuais, Oswald de Andrade configura um cenário para a assimilação do discurso satírico seiscentista da literatura brasileira tanto mais quanto seu romance seja aceito na história como ampliação do cânone após os momentos de embate do modernismo de 1920. O retrato do brasileiro que se tece com o largo espectro de ações de Serafim relacionadas com a sexualidade em nada põe a personagem triste ou degenerada. Pode, ainda assim, porém, deixar aberto espaço para alguma leitura moralizante de suas peripécias como crítica à liberdade amoral hipócrita vivida no Brasil dos anos 20. O rol de referência satíricas nas obras de Oswald de Andrade já se apresenta como suficiente para aclimatar uma edição gregoriana mais ampla em seu tratamento satírico de pessoas, instituições e práticas da sociedade colonial seja para moralizar seja liberalizar o mundo sem pecado dos trópicos. As passagens da viagem de Macunaíma tecidas por Mário de Andrade faz ser aberto mais ainda o horizonte de leitura da poesia manuscrita na Bahia no século XVII em sua totalidade de tons. As experiências do herói são narradas como resposta às avessas à tese de Paulo Prado de haver tristeza brasileira provocada por luxúria. O narrador da rapsódia de Mário de Andrade tem entendimento infenso a uma compreensão moralizante para o mundo inocentemente livre do herói do mato virgem. Livros de heróis um tanto não heroicos, não somente Memórias sentimentais e Serafim exigem candeia para clarificar o entendimento, outro ainda exige olhar bem aproximado para captar o valor de aventuras e trapaças narradas para desenvolvimento-modificação do cânone. Os dois romances de invenção põem a sátira na literatura brasileira com trabalho no âmago da funcionalidade desse procedimento criativo, o de fazer sorrir. Miramar precede a radicalidade de parodização de Serafim antes de as peripécias de Macunaíma se fazerem conhecer: três personagens à procura de entendimento. Um é o da satírica representação de brasileiros coadunados com a permissividade identificada por Paulo Prado; mas em pleno fruir do modo de ser. Como tudo em suas histórias, isentas de censura, suas vivências de

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sexualidade são apresentadas como natural dado da experiência dos personagens sem conotação negativa para a natureza brasileira. Se há um traço característico a definir o herói sem nenhum caráter, trata-se do fato de que Macunaíma busca brincar de tempos em tempos e brinca todo tempo seja propício seja difícil. Mesmo Paulo Prado tendo se deixado influenciar pelas Confissões do Santo Ofício para construir interpretação do Brasil sob estigma de reprovar comportamentos tidos como indesejáveis, mesmo tendo influenciado leituras dos jovens modernistas; mesmo Gregório de Matos tendo sido nome legado à poesia de mesmo propósito moralizante conservador dos documentos exarados pela administração colonial como o entende Hansen e Moreira (2013); as sátiras seiscentista e modernista fazem gozação para instaurar percepção outra que não a de castração, mas de liberdade frente ao discurso institucional pelo riso: o centro do elogio das brincadeiras de Miramar, Serafim e Macunaíma. Da época alvo de reflexão para construção identitária do Brasil desenvolvida por Paulo Prado é o poema gregoriano A HUMA DAMA POR NOME VIEGAS, QUE FALAVA FRESCO, E CORRIA POR CONTA DO CAPITÃO BENTO RABELLO SEU AMIGO. O elenco de nomes para regiões genitais apresentados na rapsódia tecida sob episódios de encontros íntimos é motivo poético: Quem pôs o nome de crica à crica, que se esparralha, senão nosso Pai Adão quando com Eva brincava? (AMADO, 1968, p. 569) Já estava, pois, na sátira seiscentista, o verbo escolhido pelo narrador modernista para figurar o encontro de casais para mútua fruição corporal, assim como a paródia bíblica, como a de atribuir a Adão criar palavras de baixo calão, bem ainda o tratamento naturalmente sem culpas no ato de brincar seja no Éden da poesia gregoriana, seja na mata ou na cidade da narrativa andradeana. O herói descrito como sem nenhum caráter apresenta um ponto duro inflexível em seu agir: brinca e quer brincar a toda passagem da sua aventura de saída do Mato Virgem, vivência em São Paulo e retorno à floresta. Somente reunidos por James Amado em 1968, o poemas cotejados com a prosa-poesia modernista têm como predecessores textos de uma tradição satírica fescenina na literatura brasileira desde os anos 1600, enquanto essa

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prosa-poesia dos anos 1900 ambientam uma possível antologia gregoriana de meados do século XX. Já no capítulo de apresentação de MACUNAÍMA, o narrador descreve a sexualidade aflorada do menino de menos de seis anos: “Espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucamba si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava”. A criança, quando deitava, “adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas”. Depois de tomar água de chocalha aos seis anos, a companheira de Jiguê, irmão do curumim, Sofará, e o indiozinho, convertido em príncipe, “andaram por lá muito”. A jovem ficou às ordens da mãe para levá-lo a percorrer a mata, pelo que brincaram no mato até o marido perceber e sovar o irmão. Depois que “Macunaíma virou num pé de urucum”, sua MAIORIDADE, “a linda Iriqui riu, colheu as sementes se faceirou toda pintando a cara”, e os distintivos, “ficou lindíssima”. “Então Macunaíma, de gostoso, virou gente outra feita e morou com a companheira de Jiguê”; “Jiguê conferiu que não pagava a pena brigar com o mano e deixou a linda Iriqui pra ele”. Mário de Andrade apresenta relato contrastante com padrões matrimoniais de honra e de sacramento do direito civil e da religiosidade católica. O menino-homem tenta brincar com Ci, MÃE DO MATO, mas fracassa em seu intento depois de buscar até desistir de lutar sozinho por sofrer espancamento: “foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos”. Em atendimento a mentirosos berros de “Me acudam que sinão eu mato!”: Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias.

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“O herói se atirou por cima dela pra brincar” na construção de cena de copulação à força sob testemunho de Jandaia, mesma espécie fiel à Iracema quando de sua feliz vida, até quando de suas desventuras devidas a abandono após idílio amoroso com Martin. A edição primeira da rapsódia é dedicada a José de Alencar com sua romântica construção romanesca de fundação dos povos do novo mundo pela fusão do branco com o índio. Macunaíma, porém, com suas parceiras, diferente de Matin com Iracema, está longe de quaisquer idealizações, está longe de quaisquer rituais românticos. O herói brincador usa da força, recorre a pagamento, a magia, tudo no intuito de brincar, sem culpa, sem luto, sem melancolia, numa gratuidade hedonista livre de obstáculos antagonistas capazes de impossibilitá-lo de concretizar seu querer. Com a figura feminina em companhia, os três moradores da mata estão em processo de migração. Como, após o coito Macunaíma, é eleito Imperador do Mato-Virgem, nenhum resultado negativo gerou o ritual violento. Como resultado das inversões do significado do coito da romântica fundação da América na personagem da índia Iracema, a narrativa de refundação literária da gente brasileira apresenta consequência de ser obrigada a se submeter ao herói bem diversa da moralidade e da legalidade civilizatórias, ou mesmo da quebra conflituosa das convenções realizada pela índia: “de noite Ci chegava recendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava na rede que ela mesmo tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam rindo um pro outro”. Ci quer mais e mais: “Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza”. O querer se inverte e advém mais dela do que do herói: “a Mãe do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois convidava o companheiro para mais brinquedo. Morto de soneira, infernizado, Macunaíma brincava para não desmentir a fama só porém quando Ci queria rir com ele de satisfação”. Quando o preguiçoso interrompe os jogos: “Então pra animá-lo, Ci empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela. Isso Macunaíma ficava que ficava um leão querendo. Ci também. E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso. Seis meses de brincadeira movida pelo sublime ritual de lesionar as intimidades fizeram nascer um pecurrucho. Seja no mato , seja na cidade, a marca maior da narrativa é o entregar-se ao segundo f do que o diz a poesia gregoriana sem qualquer moralidade

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eufemística nas escolhas das palavras: “são os ff da cidade”\ “um furtar, outro fuder.” (AMADO, 1968, p. 10). A lenda de BOIÚNA LUNA também apresenta relato de defloração forçada nessa história de índia transformada em pedra e índio transformado em planta, após quebra de desejo da entidade de possuir a jovem virgem. Depois de ouvir relato lendário centrado em intentos sexuais (“Depois que brincamos feito doidos entre sangue escorrendo e as florzinhas de ipê, meu vencedor me carregou no ombro me jogou na ipeigara abicada num esconderijo de aturiás e flechou pro largo rio Zangado, fugindo da boiúna”), herói invoca “deuses bons cantando cânticos de longa duração”. Como parte de um deles, com intenções de reencontrar Ci, que lhe dera a Muiraquitan, ouve-se pedido para que “Possa brincar com a marvada”. O herói brincador, ao chegar a São Paulo, paga por serviços femininos, antes de conhecer PIAIMÃ: Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cunhas tão brancas tão alvinhas, tão!... Macunaíma gemia. Roçava nas cunhas murmurejando com doçura: "Mani! Mani! filhinhas da mandioca..." perdido de gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a Paranaguara. O herói incontinente lança-se em aventura coletiva pelo exercício do poder de pagar por serviços íntimos em lugar de ter de lutar ferozmente como fora natural no meio do mato ou de trapacear contra irmão ao usar de magia para se converter em príncipe. Macunaíma quer brincar com máquina em São Paulo para tentar permanecer Imperador: “resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca”. As cunhãs filhas da mandioca de branquinhas, que eram as contratadas pelo Imperador sem poder no novo lugar onde busca se instalar, riem da incompreensão do herói frente às novas contingências com que tem de lidar. A inocência do gesto de representar pelo verbo brincar para significar a satisfação dos quereres amorosos do Macunaíma coexiste com a realidade urbana de haver doença venérea: “Estava com a boca cheia de sapinhos por causa daquela primeira noite de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar”. Ainda assim o coito em nada é motivo de tristeza para fazer-lhe demover-se de suas práticas. A realidade afigurada

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frente ao migrante inquieta o herói a ponto de levá-lo a refletir a relação homem-máquina. Outra vez a solução para inquietações está em prazer (comida e mulheres): “Virou Jiguê na máquina telefone, ligou prós cabarés encomendando lagosta e francesas”. A exaustão insaciável é sempre isenta de julgamento moralizante tanto do narrador quanto das personagens da rapsódia nas vivências deliberadas de busca por fruição nas aventuras da personagem. A luxúria é desvinculada de qualquer resultado deletério capaz de levá-lo a reconsiderar mesmo a forma de se entregar a práticas de experiência íntima. A liberalidade dos impulsos está em A FRANCESA E O GIGANTE, quando da insinuação faceira feita por Macunaíma em se fingir mulher a visitar o gigante com atendimento pronto de aceitação pelo Piaimã após ligação de Macunaíma-francesa: “O outro secundou que sim e que viesse agorinha já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais folgado”. No adornar-se de Macunaíma, “era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio no patriotismo pra evitar quebranto”, o narrador lembra de indicar o detalhe em torno do qual o herói brinca. O herói se disfarça em tudo, até na intimidade, a ponto tal eficaz para o Piaimã que ele quer conceder-lhe o favor de presentear a Muiraquitã tão prontamente quanto a francesa-Macunaíma concorde com retribuir a gentileza: Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa, muito! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar... "Confrome..." O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal de "conforme", ficou muito inquieto. Matutou: "Será que o gigante imagina que sou francesa mesmo!... Cai fora, peruano senvergonha"! E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. Observa-se como é a deliberada irrestrita entrega à brincadeira o que gera nexos de causalidades no encadeamento da narrativa andradeana. O herói adota estratégia despudorada para escapar do Gigante, entregando-lhe parte a parte roupas, sapatos e: Então bem de mansinho o herói pôs o sim-sinhô dele na boca do buraco e falou:

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— Agora me bote fora só mais esta cabaça fedorenta. Piaimã cego de raiva agarrou no sim-sinhô sem ver o que era e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia adiante. E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava os mororós. Episódio a episódio, o brincar e o querer brincar são centro de comicidade da narrativa com o favor sexual a mover a vida das personagens, tema representado sem estigma. Travestimento, genitálias, prostituição, adultério: vai tudo, nos episódios, levado ao risível, não ao moralizante na voz do narrador e na interação das personagens. As referências às intimidades masculinas na comicidade macunaímica têm prévia no mundo risível da poesia gregoriana de dar voz a uma freira para confissão às suas irmãs de ter conhecimento de mais de um tipo de “sim-sinhô”: Manas, depois que sou Freira apoleguei mil caralhos, e acho ter os barbicalhos qualquer de sua maneira: o do Casado é lazeira, com que me canso, e me encalmo, o do Frade é como um salmo o maior do Breviário: mas o caralho ordinário É do tamanho de um palmo. (AMADO, 1968, p. 1234) Sem atenuação das factuais vivências da cidade da Bahia, a poesia gregoriana traz à cena quadro de obscenidades contrastante com a moral religiosa estandardizada pelos padrões da Santa Inquisição. Isenta de quaisquer moralidades cereadoras baseadas em padrão tido como natural, livre de pecado; o herói sem nenhum caráter que não o de brincador vive aventura no Brasil das obscenidades gregorianas. Depois de escapar do Gigante em perseguição para possuir a francesa, uma inversão da condição de perda do poder de Imperador do Mato corresponder à de conquistador de corpo para ser o alvo de tentativa de receber coito, Macunaíma recorre à MACUMBA para agredir o gigante. O herói procura terreiro no Rio de Janeiro para Exu diabo ajudar a dar surra em Piaimã no “Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira”, onde surge “uma fêmea obrigando

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todos a silêncio com o gemido meio choro”, “era Exu!”. A postura da mulher com “as gorduras quasi inteiramente nuas”, “os peitos dela balangavam batendo nos ombros na cara e depois na barriga, juque!”, precede cena de Nudismo coletivo. Iniciativa de Macunaíma consagra-o novo rei: “A feiticeira tirou a roupa ficou nua, só com os colares os braceletes os brincos de contas de prata pingando nos ossos. [...] Macunaíma fremia de esperança querendo o cariapemba pra pedir uma tunda em Venceslau Pietro Pietra. Não se sabe o que deu nele de sopetão, entrou gingando no meio da sala derrubou Exu e caiu por cima brincando com vitória. E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças de todos e todos se urarizaram em honra do filho novo do icá”. O grotesco do ritual e dos corpos precede a cena de o Rei do Mato ser consagrado rei do terreiro como forma a significar abertura para atingir seu desígnio. Os pedidos para Exu por meio da fêmea tem promessa de serem atendidos antes de haver reza paródica da oração bíblica: — ... O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!... Glória pra pátria gêge de Exu! — Glória pro fio de Exu! Macunaíma agradeceu. A tia acabou: — Chico-t-era um príncipe gege que virou nosso padre Exu dos século seculóro pra sempre que assim seja, amém. A inversão paródica segue a naturalidade dos gestos presentes em todos os personagens: de Macunaíma com as francesas filhas da mandioca remuneradas por seus serviços, ao gigante casado praticante de prostituição; à filha de santo tomada a pulso para eleição de novo imperador; assim como fora na mata com Ci. Em São Paulo e no Mato Virgem, tudo é muito natural em se tratando do brincar nas peripécias do herói da gente brasileira. A paródia da oração bíblica é familiar para a sátira baiana: Sal, cal e alho caiam no teu maldito caralho. Amém. O fogo de Sodoma e de Gomorra em cinza te reduzam essa porra. Amém. Tudo em fogo arda,

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Tu, e teus filhos, e o capitão da guarda. (AMADO, 1968, p. 212) A oração praguejadora no poema gregoriano é paródia do rito de dirigir-se a divindade solenemente tal como na prática cristã, tanto quanto é paródica a dessacralização da oração bíblica na rapsódia modernista, reeditado o Pai-Nosso como paródia em ritual de ordem não cristã. Associando-se com a cena de nudismo com coito forçado para público testemunhar, a obra de Mário de Andrade torna a expectativa de leitores de sátira ajustada ao praguejar de Gregório de Matos. Seja assimilada a obra Macunaíma pela comunidade de leitores de dada época, em nada são estranhos os versos baianos em dada reedição antológica de inserção da sátira, tradição iniciada no Brasil com o nome do poeta da era colonial e ampliada pelos modernistas tanto em forma como em tema; tanto na paródia quanto obscenidade, comuns aos dois momentos, barroco e modernista. Duas vezes, VEI, A SOL pede ao herói autocontrole (“você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhas por aí”) para desposar uma sua filha em retribuição pelo heroísmo e à generosidade do potencial noivo. Duas vezes Macunaíma promete respeitar desejo da supostas futura sogra (“Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela memória da mãe dele”). Na primeira oportunidade de ausência da futura nova família, porém: Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo Antônio que era capitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhas por aí. Logo topou com uma que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e inda cheirava no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaíma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Parece impossível ao homem do mato converter-se a algum senso de moralidade-ética diferente do de deixar-se levar pela vontade de prazer no usufruto de liberdade sem culpa para além de bem e mal. A referência ao Santo Antônio relacionado com o sacramento do matrimônio da tradição católica está no fragmento de quebra de condição estabelecida pela religião e indicada por Vei para o matrimônio poder ser consolidado. Também na sátira

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baiana há versos de dessacralização da personagem católica ligada tradicionalmente ao matrimônio: Entrou um bêbado um dia pelo templo sacrossanto do nosso Português Santos, e para o Santo investia : a gente, que ali assistia, cuidando, tinha o demônio, lhe acudiu a tempo idôneo, gritando-lhe todos, tá, tem mão, olha, que acolá, Bêbado está Santo Antônio (AMADO, 1968, p. 78) A dessacralização do lugar religioso, o templo, está na inversão expressa na voz do bêbado com mesmo efeito de paródia do episódio da jornada de Macunaíma a perder a esposa, mas não perder uma noite, pela qual trabalhou, segundo o relato de inversão paródica da tradição do catolicismo e da história dos seus santos. Em sua CARTA PRAS ICAMIABAS, Macunaíma relata o fato de que as heroínas achariam curioso as mulheres se venderem: O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro — o "curriculum vitae" da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. Com a paródia da formalidade dos discursos oficiais, o ritual de posse violenta é natural para as guerreiras e para o herói tanto quanto há de ser a troca de afabilidade por dinheiro típica da civilização: uma caricatura tanto na linguagem paródica do estilo grandiloquente diferente do livre falar quanto dos padrões citadinos de convivência: “Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de lagostas”.

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A descrição de prostituição nada tem de moralizante no discurso do Imperador em sua carta redigida por uma razão de ajuste à nova ordem de coisas com que se depara. As damas da cidade caem ao leito não pelo pulso dos amantes, mas pelo preço dos monstros lagostas tal como o descreve a epístola com hiper-formalismo zombeteiro do purismo linguístico na pena de Mário de Andrade com seu herói faminto dos “encantos e galanteios de tão agradáveis pastoras”. A carte é para pedir dinheiro para pagar pelo brincar a preço de lagosta com mulheres de São Paulo, aprendizes de europeias sobre horário de trabalho e cuidados com aparência. Macunaíma continua em um mundo sem culpas com corresponde ausência de restrição moral em seu olhar sobre si e sobre o outro, consoante o dizer do narrador de suas peripécias, bem assim como o diz o herói em sua carta. Nenhum interesse há em quebrar o intercâmbio cultural Brasil-França no ensino da prostituição, nenhum propósito há de igualar as opostas condições mato-cidade. Macunaíma em nada reprova as filhas da mandioca, pois quer mesmo é adequar-se para fruir o modo de liberdade limitada pela condição de haver troca monetária. O mundo sem rei, lei e fé, constatado por viajantes com julgamento católico das ações indígenas, é construído no relato da aventura de Macunaíma cujo brincar e quer, são nexos coesivos para dar unidade ao relato. Nenhum constrangimento há em buscar serviços sexuais por parte do herói quanto não há também do homem que “QUEIXA-SE FINALMENTE DE ACHAR TODAS AS DAMAS MENSTRUADAS”. O obstáculo do mercado pelo preço da satirização dos costumes modernista tem correspondente temática na dificuldade de oferta da sátira barroca: a falta de lagostas registrada na carta, assim como a presença dos menstros no poema em nada são apresentados com culpa. Quando do relato da lenda de PAUÍ-PÓDOLE, Macunaíma aguarda ocasião de recupera a Muiraquitã: “aproveitava a espera se aperfeiçoando nas duas línguas da terra, o brasileiro falado e o português escrito”. Em uma saída pela cidade, cômicas meditações do herói sobre nomes para lapela – botoeira, buraco ou orifício – levam-no a optar por usar o termo “puído”. Na ironização de Mário de Andrade da existência de um português da oralidade e outro da escrita, as inquietações de Macunaíma são risível pelas insinuações: “Pois então a alemãzinha chorando comovida, se virou e perguntou pra ele si deixava ela afincar aquela margarida no puíto dele. Primeiro o herói ficou muito assarapantado, muito! e quis zangar porém depois ligou os fatos e percebeu que fora muito inteligente. Macunaíma deu uma grande gargalhada”. A pergunta da alemanzinha filha da mandioca faz o herói se surpreender com

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como sua palavra puído fora empregada em lugar de boutonnière. Na brincadeira de Mário de Andrade sobre os entraves da língua, seu personagem chega mesmo a interromper seu fazer constante: “Macunaíma ficou de azeite uma semana, sem comer sem brincar sem dormir só porque desejava saber as línguas da terra”. O embate modernista pela aceitação do português brasileiro como objeto de trabalho literário é tema que está no episódio de Macunaíma em uma hilariante aceitação de “palavra feia” como originária etimológica das fontes do português conforme teria explicado a intelectualidade. Mário de Andrade faz zorra da filologia com simulação ficcional de um levantamento fraudulento de histórico da palavra criada por Macunaíma. A arte poética de conjugação do popular com o erudito, do normativo habitual do fazer poético com o livre cotidiano de usar a língua está na poesia gregoriana com desbocada referências corporais mesma da ironização andradeana. O poema ANATOMIA HORROROSA QUE FAZ DE HUMA DAMA NEGRA CHAMADA MARIA VIEGAS (AMADO, 1968, p. 571-573) exemplifica o desbocamento da sátira ao adotar mesmo referente da rapsódia: “Diz, que achou tal apicu” \ “tão tremendo, e temerário,” \ “que só membro extraordinário” \

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“abalaria esse cu:”. Em A VELHA CEIUCI, Macunaíma volta a viver a gratuidade de seu brincar livremente: “No outro dia lembrou que precisava se vingar dos manos e resolveu passar um pealo neles. Levantou madrugadinha e foi esconder no quarto da patroa. Brincou pra fazer tempo”. Quando a caapora pesca o herói, o narrador conta os momentos de tentativa de preparar o pato-Macunaíma para ser comido com a filha da personagem a alimentar curiosidade suspeitosa de que sai mão não pescara algo de costume. Quanto verifica a tarrafa, encontra o herói: — Me esconde! Então a moça que estava mui bondosa porque vivia desocupada desde tempo, levou Macunaíma pro quarto e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Não somente o rapsodo é movido pelas intenções de brincar nesse episódio de sua aventura, as advinhas da filha bondosa da caapora são ambíguas e cômicas em suas insinuações de subentendidos percebidos pelo herói:


— Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: É comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente? — Ah! isso é indecência sim! — Bobo! é macarrão! — Ahn... é mesmo!... Engraçado, não? — Agora o que é que é: Qual o lugar onde as mulheres têm cabelo mais crespinho? — ôh, que bom! isso eu sei! é aí! — Cachorro! É na África, sabe! — Me mostra, por favor! — Agora é a última vez. Diga o quê que é: Mano, vamos fazer Aquilo que Deus consente: Ajuntar pêlo com pêlo, Deixar o pelado dentro. E Macunaíma: — Ara! Também isso quem não sabe! Mas cá pra nós que ninguém nos ouça, você é bem senvergonha, dona! — Descobriu. Não é dormir ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que você está imaginando? O brincar sobre brincar está tanto no protagonista quanto nos que o cercam como constante do mundo sem culpa de Macunaíma. Mesmo em situações de risco, o herói não se furta de sua típica aventura mais recorrente, assim como situações frustrantes como em TEQUETEQUE, CHUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS, quando vai procurar o gigante em suas casas depois da sova da macubanba: “Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinho contou que Piaimã com toda a família fora na Europa descansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado e voltou macambúzio pra pensão”. No mesmo episódio, “Maanape e Jiguê encontraram o herói na porta da rua” e os irmãos armam forma de Macunaíma receber dinheiro governamental para ir à Europa em busca do gigante. O herói chega à casa: “Os manos inda não tinham voltado da maloca do Governo e a patroa veio no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram”. Em A PIOLHENTA DO JIGUÊ conhecesse a despesa do herói com lagosta como custo da satisfação de seu querer. Macunaíma vai à Europa em busca do gigante e o narrador conta a relação familiar dos habitantes da selva quando em estadia em São Paulo:

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No outro dia Jiguê entrou em casa com uma cunhatã, fez ela engolir três bagos de chumbo pra não ter filhos e os dois dormiram na rede. Jiguê tinha se amulherado. Ele era muito valente. Passava o dia limpando a espingarda e afiando a lamparina. A companheira de Jiguê todas as manhãs ia comprar macaxeira prós quatro comerem e se chamava Suzi. Porém Macunaíma que era o namorado da companheira de Jiguê, todos os dias comprava uma lagosta pra ela, punha no fundo do jamachi e por cima esparramava a macaxeira pra ninguém não maliciar. Suzi era bem feiticeira. Quando chegava em casa deixava a cesta na saleta e ia dormir pra sonhar. Lagosta como paga por brincar com o herói gerava grande despesa, pois os namorados desenvolvem o hábito de ficar na rede, daí que o rapsodo pedir auxílio “pras icamiabas”, pois o marisco era por demais algo dispendioso. Tudo está em torno não do furtar, mas do brincar na vivência do herói cuja característica de marca maior é a de se deixar levar pelo que bem entenda querer fazer em matéria de vazão aos desejos. Em MUIRAQUITÃ, quando o gigante retorna da Europa, o herói vai a casa dele e a encontra vazia: “Macunaíma se lembrou de procurar uma criada pra brincar mas tinha estacionamento das máquinas táxis na esquina e as cunhãs já estavam brincado por aí”. Depois, porém, é bem sucedido: Então Macunaíma pôs reparo numa criadinha com um vestido de linho amarelo pintado com extrato de tatajuba. Ela já ia atravessando o corgo pelo pau. Depois dela passar o herói gritou pra pingela: — Viu alguma coisa, pau? — Vi a graça dela! — Quá! quá! quá quaquá!... Macunaíma deu uma grande gargalhada. Então seguiu atrás do par. Eles já tinham brincado e descansavam na beira da lagoa. Conforme é perceptível, inexistem noções de promiscuidade, de poligamia como abusos, em quaisquer das circunstâncias experienciadas pelas personagens. Mesmo a troca de parceiro em nada gera ruptura imediata dos laços fraternais, embora depois o ocorra, pois é um mundo sem erro pecaminoso do ponto de vista da experiência dos modos e situações de brincar sem quaisquer tristezas decorrentes de seu permanente fruir do corpo em corpos. A

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narrativa da prosa modernista presta-se a servir de contexto para a circulação impressa da poesia barroca, pois a prática de troca consentida de parceiros proibida pela inquisição é alvo de descrição dos costumes da vida privada do poema em que “FINGIDO O POETA QUE ACODE PELAS HONRAS DA CIDADE, ENTRA A FAZER JUSTIÇA EM SEUS MORADORES, SIGNALANDOLHES OS VICIOS, EM QUE ALGUNS DELLES SE DEPRAVAVÃO”. O diabo atiça a serem compostos os versos de satirização da “casada com adorno” cujo “Marido mal vestido”, no cômico poema, “penteia monho de corno” (AMADO, 1968, p. 6). No relato do périplo pelas matas até se deparar com A PACUERA DE OIBÊ, monstro minhocão terrível que Macunaíma enfrenta com revólver comprado em São Paulo, percebese o brincar como o responsável pelo nexo dos diversos momentos de inquietações vividas quando do retorno dos marupiaras para a selva. Quando volta para a mata, o Imperador tem saudade de São Paulo por uma razão bem específica: “quanta sacanagem feliz quanta cunha bonita e quanto cachiri... Então Macunaíma teve saudades do sucedido na taba grande paulistana. Viu todas aquelas donas de pele alvinha com quem brincara de marido e mulher, foi tão bom!... Sussurrou docemente: ‘Mani! Mani! Filhinhas da mandioca!’”. O herói lembrase de sua amada primeira com ciúmes: “E estava lá no campo do céu banzando nuns trinques toda enfeitada passeando brincando quem sabe com quem... Teve ciúmes”. Como não poderia ter a amada dos amores na rede: “Entrou no mato bem, légua e meia. Foi buscar a linda Iriqui, companheira dele que já fora companheira de Jiguê e esperava se enfeitando e cocando mucuim assentada nas raízes da samaúma. Os dois se festejaram, muito brincaram e vieram pra igarité”. O nativo do Mato Virgem vive preripécias em seu perambular pelas terras selvagens: “depois de atravessado um chato quando subia por um espigão cheio de crocas topou com o Monstro Mapinguari macaco-homem que anda no mato fazendo mal pras moças. O monstro agarrou Macunaíma porém o herói tirou o toaquiçu pra fora e mostrou pro Mapinguari”; (“— Não confunde não, parceiro!”). Enquanto foge de Oibê, ouve os lamentos de um caramboleiro: “Todos os passarinhos choraram de pena gemida nos ninhos e o herói gelou de susto. Agarrou no patuá que trazia entre os berloques do pescoço e traçou uma mandinga. O caramboleiro virou numa princesa muito chique. O herói teve um desejo danado de brincar com a princesa porém Oibê já devia de estar estourando por aí”. Finalmente, escapa de perseguição do Oibê minhocão lobisomem: “Macunaíma e a princesa brincando desciam a corrente do rio. Agora estão se rindo um pro outro”. Escapa ao minhocão Oibê: “Quando

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passaram rente da igarité os manos se acordaram com os gritos de Macunaíma e foram atrás. Iriqui ficou logo enciumada porque o herói não queria saber mais dela e só brincava com a princesa”. O fato de Iriqui ter sido abandonada das brincadeiras com Macunaíma foi razão pela qual a índia “subiu com elas pro céu, chorando luz virada numa estrela”. A genitalidade é constante temática de nexo entre os episódios na narrativa de Mário de Andrade, de sorte que uma poesia satírica erótica editada em coexistência com a aceitação do fazer modernista como trabalho artístico-inventivo tem sua integração acomodada à recepção dos leitores de literatura brasileira. Movimento reverso seria também cogitável com o retorno da sátira abaiana em uma tradição secular poder legitimar as peripécias macunaímicas como dado aceitável para a inventividade narrativa. No relato dos episódios mágicos de pesca e caça vividos pela família no rio URARICOERA, o herói apresenta febre: “Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha pra brincarem, o herói até uma vez recusou suspirando”; (— Ara... que preguiça...”). Macunaíma envenena o irmão como magia de fazer sucuri devorar Jiguê devido a fato de conflito familiar: “A princesa teve ódio. É que ela andava ultimamente brincando com Jiguê. Macunaíma bem que percebeu porém imaginou: "Plantei mandioca nasceu maniva, de ladrão de casa ninguém se priva, paciência!”. Antes do episódio final da rapsódia com a ida ao céu do herói, ainda no penúltimo, o rapsodo vive aventuras com quebra de tempo-espaço a ponto de retornar aos tempos coloniais: “índios tatus-brancos e pegar um susto tamanho que passou sem pedir licença entre a sombra de Jorge Velho e a sombra do Zumbi que estavam discutindo, o herói fatigadíssimo, olhou pra trás e viu que a sombra já vinha chegando”. O Modernismo está de olho e chama os alhares dos intelectuais para a era da América portuguesa, mas sem valorar a liberdade macunaímica como o fez Paulo Prado com a vivência dos viajantes embrenhados no mato constituindo filhos com índias do que é exemplo Jorge Velho. No episódio final da rapsódia, quando o herói se converte na URSA MAIOR, o brincar desencadeia todas as ações a partir do momento inicial de monotonia, solidão, enfaro e preguiça; até o clímax do capítulo. Macunaíma conta ao papagaio aruaí a história da estrela Papaceia (Taína-Cã) e seu enamoramento com filha mais velha do morubixaba Zozoiaça da tribo carajá, solteirona chamada Imaerô. A moça rejeita o homem-estrela por sua aparência “coroca”, mas a irmã mais nova o acolhe em casamento:

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Depois que se acabaram os dedos das vossas mãos, papagaio, que são de espera pra noivo, na rede trançada por Denaquê se brincou dança de amor, furrum-fum-fum. Nem bem o dia estava rompendo a barra, Taína-Cã pulou da rede e falou pra companheira: — Vou derrubar mato pra fazer roçado. Agora você fica no mocambo e nunca não vai na roça me espiar. — Sim, ela fez. E ficou na rede, matutando gozada naquele velhinho esquisito que dera pra ela a noite mais gostosa de amor que a gente imagina. Outra vez “Denaquê ficou deitada na rede inda um bocado, matutando nas gostosuras valentes das noites de amor que o bom do coroca dava pra ela”, até quando vai ver o marido trabucando no sol: “Era por causa que ela de sodosa quis ver o companheiro dando gostosuras tão valentes pra ela nas noites de amor”. A todo tempo, é o prazer das brincadeiras que mobiliza as ações das personagens em plena felicidade: “Denaquê deu um grito de alegria” ao descobrir a jovialidade do esposo, motivo de disputa com a irmã, que levou a sair gritando pelo mato e virar na ave araponga. Para término história, Macunaíma relata a causa de rompimento do casal: E tudo o que Carajá carecia, Taína-Cã ia no céu e voltava trazendo. Pois não é que Denaquê, de ambiciosa, deu pra namorar com todas as estrelinhas do céu! Deu sim, e Taína-Cã que é a Papaceia enxergou tudo. Isso, até se orvalhou de tão triste, pegou nos teréns e foi-se embora pro vasto campo do céu. Ficou lá, trouxe mais nada não. Si a Papaceia continuasse trazendo as coisas do outro lado de lá, céu era aqui, nosso todinho. Agora é só do nosso desejo. Tem mais não". O papagaio dormia. Há permissividade generalizada na narrativa de Mário de Andrade na cena anterior ao relato de que, “uma feita janeiro”, o herói não compreende o silêncio de estar sozinho, pois seu aruaí sumira, “fazia um calorão parado tão imenso que se escutava o sininho de vidro dos gafanhotos”: Vei, a Sol, escorregava pelo corpo de Macunaíma, fazendo cosquinhas, virada em mão de moça. Era malvadeza da

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vingarenta só por causa do herói não ter se amulherado com uma das filhas de luz. A mão de moça vinha e escorregava tão de manso no corpo... Que vontade nos músculos pela primeira vez espetados depois de tanto tempo! Macunaíma se lembrou que fazia muito não brincava. Água fria diz que é bom pra espantar as vontades... Para escapar à solidão, “o herói escorregou da rede, tirou a penugem de teia vestindo todo o corpo dele e descendo até o vale de Lágrimas foi tomar banho num sacado perto que os repiquetes do tempo-das-águas tinham virado num lagoão”. Macunaíma depôs com delicadeza os legornes na praia e se chegou pra água. A lagoa estava toda coberta de ouro e prata e descobriu o rosto deixando ver o que tinha no fundo. E: Enxergou lá no fundo uma cunha lindíssima, alvinha e padeceu de mais vontade. E a cunha lindíssima era a Uiara. Vinha chegando assim como quem não quer, com muitas danças, piscava pro herói, parecia que dizia — "Cai fora, seu nhonhô moço!" e fastava com muitas danças assim como quem não quer. Deu uma vontade no herói tão imensa que alargou o corpo dele e a boca umideceu: — Mani!... Outra vez é o brincar que fará o herói sentir-se feliz, por isso: “queria a dona. Botava o dedão n'água e num átimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias de ouro e prata. Macunaíma sentia o frio da água, retirava o dedão”. Mário de Andrade faz a paródia em canto paralelo da referência romântica de criação do povo americano pela fusão de raças branca e indígena. Macunaína está sem sua querida, como Iracema dos cabeços negros ficara sem Martim. Quem visita o herói é, outra vez, a Uiara, nome da espécie fiel à filha de Araquém, que “vinha chegando outra vez com muitas danças”: “Quê boniteza que ela era!... Morena e choradinha que-nem a cara do dia e feito o dia que vive cercado de noite, ela enrolava a cara nos cabelos curtos negros como as asas da graúna”. A referência é explícita a José de Alencar em Iracema na inversão da rapsódia de estar o herói de caráter libidinoso abandonado; não uma de suas parceiras, tal como ficara a virgem em solitária melancolia.

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Mito-lenda criacionista é contado na rapsódia em analogia com a Bíblia pelo emprego da expressão “no princípio” presente tanto no Gêneses, no princípio criou Deus...”; quanto no Evangelho segundo João, “no princípio era o verbo”, como palavras de abertura. — Ah, herói, tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber no meu mosqueiro um descendente de jaboti, raça primeira de todas... No princípio era só o Jaboti Grande que existia na vida... Foi ele que no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua cunha. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribo... Depois, que os outros vieram. Chegaste tarde, herói! Já somos em doze e com você a gente ficava treze na mesa. Sinto muito mas chorar não posso! O silêncio pairante sobre as águas sob trevas do Gênesis capítulo 1 está na narrativa de origem da pena de Mário de Andrade como um dado reiterado de paródia bíblica capaz de tornar aceitável sem choque para a comunidade de leitores de pós-1920 descobrir em textos remotos do século XVII parodização bíblica na tradição satírica. A subversão do relato do surgimento das primeiras almas viventes registrado nas Escrituras faz a poesia gregoriana no poema “A UMA NEGRA CHAMADA EVA RECOLHIDA DE HUM CLERIGO EM MARÉ, QUE ENGANOU AO POETA FAZENDO-O ESPERAR”. Desdém paródico ao juízo de expulsão de Éden sofrido pelo casal Adão e Eva coexiste no poema com a opção por deixar-se enganar para que “como eu da fruta enfim” \ “peque embora quem pecar”, lê-se, antes da disposição paródica de que “da fruta lhe provarei”, a despeito de toda consequência. A parodização do relato bíblico verificado na narrativa modernista de refundação da identidade brasileira elaborada sob misto de pesquisa linguística e mítica com a inventividade de Mário de Andrade torna familiar a paródia da criação do casal adâmico sob desconstrução do pavor provocado pela quebra de obediência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A sátira modernista, criada na década de 1920 com posterior consagração como ampliação das obras canônicas de representação da cultura brasileira, forma cena histórica propícia ao relançamento da sátira gregoriana para leitores. Quem leia as obras modernista experimenta a chance de estar em condições de fruir a poesia barroca quanto a seu aspecto paródico satirizador dos costumes. Somente com James Amado em 1968, a poesia de Gregório de Matos pode ser apreciada pelo público interessado a partir de uma edição impressa ampla dos poemas atribuídos a seu nome. Antes dos seis volumes de poemas editados a partir de manuscritos, Francisco de Varnhagen (1850) e Segismundo Spina (1946) editaram número significativo de poemas, mas um recortou tudo quanto da linguagem passível de ferir a sensibilidade romântica e outro renegou tudo quanto da sátira poderia macular a moralidade católico-cristã. Entre um e outro desses dois leitores antologistas da poesia barroca, os modernistas não somente fizeram as artes barrocas serem redescobertas, como fizeram reapresentação de tópico por ela tematizado; conforme foi possível apreciar pelos pontos registrados no mapa no território da sátira modernista por agora apresentados. Embora não se haja demonstrado detalhadamente pelo cotejo do modernismo com o barroco; é foi possível apreciar inúmeras evidências da presença de Gregório de Matos nas obras de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade. Estudo futuro poderá partir das vertiginosas listas de procedimento satírico modernista para atingir exaustiva aproximação das obras dos artistas do século XX em relação ao poeta do século XVII.

REFERÊNCIAS AMADO, James. Crônica do viver baiano seiscentista. Salvador: 1968, Janaína. 7 volumes. ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: Círculo do Livro, 1991. ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 1990. ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo, 1990.

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ANDRADE, Oswald de. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 1991. ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 1992. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo, companhia das Letras, 1992. 4ª edição. CAMPOS, Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2005. Coleção Signos 9. CAMPOS. Uma poética da radicalidade. In: Obras completas de Oswald de Andrade: poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Coleção Vera Cruz volume 166. 5ª edição. p. 9-62 GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: a semana que não terminou. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza o brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1981. SPINA, Segismundo. Gregório de Matos. São Paulo: Assunção, 1946. Coleção Pequena Biblioteca da Literatura Brasileira. VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Florilegio da poesia brasileira ou collecção das mais notáveis das mais notaveis composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles, tudo precedido de um ensaio historico sobre as letras no brazil. Lisboa: imprensa nacional, 1850. Tomo I.

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HAROLDO DE CAMPOS E O BARROCO: CANTOS PARALELOS Armando Sérgio dos Prazeres Doutorando em Literatura Comparada – PPgEL-UFRN Pesquisador da obra de Haroldo de Campos Orientação: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva

“esse livro que se folha e refolha que se dobra e desdobra nele pele sob pele pli selon pli”

Haroldo de Campos

Há no título desta breve reflexão algo de sutil ambiguidade, que, embora tentemos dirimir de saída, teimará em permanecer, por força irredutível da configuração da própria metáfora, em clima de mistério durante o nosso percurso. Lutar contra a linguagem depois que ela se instaura é tarefa desleal. Mas, tentemos. Deste modo, uma das conotações sugeridas no título estabelece a relação estética e conceitual entre a obra de Haroldo de Campos e o universo do Barroco, compreendendo que tais domínios teóricos constituem ambientes dialogantes entre si, portanto, configuram cantos paralelos, uma vez que operam, grosso modo, através de procedimentos criativos similares. A saber: a exuberância verbal, o gosto pelo ornamento, a inclinação ao enigmático e a tendência à metaforização, entre outras marcas expressivas de generosa lista. A outra conotação embutida no título, interdependente da primeira, atenta para o fato de que, tanto Haroldo de Campos como o Barroco, trazem em seu escopo reflexivo a predileção pela criação paralela, ou seja, a pulsão criativa para estabelecer analogias entre as coisas mais díspares, promovendo um intrincado jogo de relações entre caracteres aparentemente distantes no tempo e no espaço. Serão estas duas premissas, reversíveis e intercambiáveis, as dobras conceituais sobre as quais nos enredaremos, sumariamente, daqui por diante. A mesma chama que acendermos para uma, valerá, em termos de reflexão, para a

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outra, pois o altar em que estamos flexionados é um só: o altar da poesia. Haroldiana ou barroca: poesia. Antes da reza principal, porém, um termo urge iluminar: a paródia. O poeta, crítico, teórico e tradutor paulista, Haroldo de Campos (1929-2003) assim a definia: “vali-me da acepção de paródia no sentido etimológico de ‘canto paralelo’”27. Ainda em sua voz: “paródia (do gr. pará, junto, ao lado de; odé, ode, canto)”28. Deste modo, a paródia, podemos deduzir, constitui para o Haroldo de Campos um procedimento que pressupõe a criação a partir do já criado. Podemos ir mais longe: para Haroldo de Campos, assim como para poetas da dicção de Ezra Pound e de James Joyce, por exemplo, a paródia, sobretudo nesta acepção adotada pelo nosso Poeta, é uma das formas mais vivas e fecundas da criação poética, vide a estrutura de Os cantos, de Pound, e de Ulisses, de Joyce. Claro que a concepção bakhtiniana de paródia, de acento carnavalizante, comparece tanto na obra de Haroldo de Campos quanto nos dois autores citados. Comparece pulsante no Barroco. Mas será a noção de canto paralelo que privilegiaremos aqui, muito embora devamos ter em mente que a carnavalização é, de certa forma, a recriação derrisória de um modelo anterior, portanto, um canto paralelo a uma determinada forma já existente, de tonalidades humorísticas e/ou satíricas. Para Haroldo de Campos, a literatura, assim como as demais artes, e por extensão a própria existência, configura um espaço de trocas e intercâmbios de saberes e conhecimentos, sendo sua vocação a primazia do diálogo intertextual e da intersemiose. Neste espaço haroldiano, transitam não hierarquicamente autores do passado e do presente, a tradição e a modernidade, o clássico e a vanguarda, a poesia e a prosa, a tradução e a criação, a teoria e a produção, o professor e o crítico, a literatura e os diversos sistemas de signos. Longe de uma mistura apressada e inócua, o multiforme caldeirão estético e cultural de Haroldo de Campos ferve e tem sabor. A insuspeitada aproximação que promoveu destes domínios, através de critérios rigorosos de observação poética, a um só tempo pensou os caminhos de nosso atual pensamento literário e cultural e iluminou retroativamente estágios e autores obscurecidos pelo viés estritamente historicista.

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Cf. Haroldo de Campos – Transcriação, org. de Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega, São Paulo, Perspectiva, 2013, p. 208. 28 Cf. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe: marginalia fáustica, 1981, p. 73.

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Ouviu Homero com a mesma atenção com que escutou os gritos de Sousândrade vindos do seu Inferno de Wall Street, jogado, havia muito, no abismo dos degenerados da literatura brasileira. Olhou para Maiakovski, relegado a uma marginalidade involuntária no ambiente totalitarista soviético, com a mesma acuidade com que mirou as qualidades do último Oswald de Andrade, já desacreditado e, por isso mesmo, motivo de chacota dos bancos de universidade da época. Chamou Bashô para as veredas nacionais com a mesma força na voz com que clamou a reintegração de posse de Gregório de Matos, o “primeiro grande poeta brasileiro”29. Acenou para o velho e esquecido Pound com a mesma veemência gestual com que sinalizou positivamente para a poética difícil de Lezama Lima. Portanto, se há quem ainda julgue unívoca e radical a posição do nosso Poeta no âmbito de suas escolhas literárias e culturais, roga-se que vire a página, pois verá em seu verso, o reverso repleto de cantos paralelos tão heterogêneos quanto inesperados. Haroldo de Campos, até onde alcançam nossas pesquisas, viu valor em alguns fenômenos literários quando poucos lhes voltavam os olhos. Apenas para se ter uma ideia, ficou ao lado de Holderlin não só na lucidez, mas sobretudo na loucura, quando “num pequeno quarto com vista para o Neckar, referindo-se a si próprio como o ‘Senhor Bibliotecário’ ou ‘Scardanelli’, compondo poemas fragmentários, dedilhando um piano do qual cortara as cordas e relembrando até o fim, até o ano mesmo de sua morte, aquelas malsinadas traduções do trágico grego”, sobreviveu “ainda por cerca de trinta anos à incompreensão de seus coevos”. Defendeu as soluções tradutórias de Odorico Mendes (17991864) para a Odisseia homérica, quando muitos, como Sílvio Romero, “as considerava ‘monstruosidade, escritas em ‘português macarrônico’: “Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor, para reprovar-lhe o preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compósitos vocabulares. Realmente, fazer um negative approach em relação a suas traduções é empresa fácil, de primeiro impulso, e desde Sílvio Romero (...) quase não se tem feito outra coisa. Mais difícil seria, porém, reconhecer que Odorico Mendes, admirável humanista, soube desenvolver um sistema de tradução coerente e consistente, em que seus vícios (numerosos sem dúvida) são justamente os vícios de suas qualidades, quando não de sua época (CAMPOS, 2013, p. 8-9).

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Cf. Haroldo de Campos – Transcriação, ob. cit., p. 198.

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De modo similar, permaneceu em vigília a Mallarmé quando, ainda hoje, muitos intelectuais, da tradição e dos que se afiguram na linha de vanguarda da literatura brasileira, não conseguiram descer a espinha que o poeta constelador empurrou goela abaixo nos rumos da modernidade. Nesse sentido, foi um dos primeiros a vislumbrar no poeta francês um veio barroco, fazendo côro à assertiva de Jauss: Foi necessário aguardar o lirismo hermético possível de Mallarmé e de seus discípulos para que se tornasse possível um retorno à poesia barroca, longo tempo desdenhada, e pois esquecida, bem como, notadamente, a reinterpretação filológica e a renascença de Gôngora (Hans R. Jauss, apud CAMPOS, 2013, p. 83).

Para Haroldo de Campos, para quem a carranca e a górgona habitam a mesma embarcação30, livro e viagem, embora dimensões distintas, são condutores da mesma aventura: a aventura do conhecimento. Estamos pensando em Galáxias, obra fundamental não apenas na escritura do Poeta como também na história da cultura brasileira, poroso palco das relações intersemióticas. Apenas como breve contextualização histórica do livro, Galáxias não se fez e um dia, assim como nenhuma obra de envergadura se faz do dia para a noite. Fez-se em vários dias e várias noites, ao modo de uma Sherazada uma estória milnoites contada 31, vários meses, vários anos. A obra foi sendo publicada aos fragmentos, entre os anos 1963 e 1981, em revistas e periódicos do Brasil e internacionais, sendo somente em 1984 publicada finalmente enquanto livro, “em condições funcionalmente adequadas”, como afirma o Poeta32. Ironicamente, a cada página que compõe a obra o Autor batizou de fragmento, assim como foram em forma de fragmentos as primeiras aparições públicas do livro, que não apresenta numeração, pontuação, maiúsculas ou títulos. Deste modo, Galáxias pode ser compreendida, sem sisudez cientificista, a metáfora do livro que Deus escreveu certo por linhas tortas, com a ambição de tudo nele dispor e, por isso mesmo, nunca chegar ao fim. É, por assim dizer, uma obra aberta por excelência (não esqueçamos de que este conceito foi por Haroldo de Campos antecipado quase uma década

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Cf. esta analogia no fragmento “açafrão” (“carranca de górgona e cabelos-serpentes...”), Galáxias, São Paulo, Editora 34, 2ª. ed., 2004. A primeira edição de Galáxias data de 1984 e foi publicada pela Ex Libris. Para redigir nosso texto, utilizamos como base para consulta a segunda edição, listada nas Referências. 31 Cf. fragmento “passatempos e matatempos”, Galáxias, ob. cit. 32 Cf. secção “anexos”, Galáxias, ob. cit.

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antes do notável ensaio de Umberto Eco)33. Nesta aventura, onde o fim pode ser o começo e o começo pode ser o fim, a missão do Poeta constitui, barrocamente, acabarcomeçar34 com a escritura, para usar uma expressão cunhada pelo próprio Autor. Note-se neste híbrido verbal, que o Poeta, ao colidir os vocábulos acabar/começar, faz nascer pelo menos duas outras palavras: de modo mais explícito, barco, metáfora da condução para a travessia da palavra e da viagem; e, deste mesmo barco, vemos surgir, mais enigmaticamente, o termo barroco. Ambos os vocábulos brotam, num lance anagramático, podemos assim dizer, do affair entre os dois pontos da viagem/livro: o início (começar) e o fim (acabar), que Haroldo de Campos propõe superá-los no transcorrer da leitura. Se mais quisermos, Barco também nos evoca, anagramaticamente, Cobra, livro do não menos (neo)barroco Severo Sarduy, cujas letras, embora estejamos conscientes da ausência de um r, formam a palavra barroco. Não esqueçamos: o emblema barroco que simboliza a eternidade e o ciclo interminável da linguagem e da poesia, não é outro senão a serpente engolindo a própria cauda, figura conhecida na linguagem barroca como ouroboros. Haroldo de Campos sabia, Severo Sarduy sabia, a linguagem é sábia. São dobras da criação. E não há ferro que desvinque, nem tesoura que desvincule. As relações, uma vez (bem) estabelecidas, atualizam o nosso pensamento sobre o mundo. Faz-nos melhores para o mundo. Em Galáxias, as analogias e, portanto, os cantos paralelos, não cessam de brotar aos olhos do leitor. Deslizando pelas páginas, metaforizam-se como flores abertas para o deleite da leitura. Em certas passagens, açúcares são açucenas; o povo é o melhor artífice no seu martelo galopado; uma lata velha num fim de feira soa como um shamisen35. Em outro passo, os zimbórios de ouro de uma ortodoxa igreja russobizantina evocam uma igreja barroca de João Pessoa36. Em uma metáfora sobre o tempo, o hojeamanhãontem o anteontem o anteamanhã o trasantontem o trasanteamanhã, tudo é hoje; os diafragmas fragmam; o livro 33

De Haroldo de Campos, cf. o ensaio A obra de arte aberta, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1975, p. 30-33. Do autor italiano, cf. a introdução à edição brasileira, A obra aberta, Umberto Eco, São Paulo, Perspectiva, 2000, p. 17. Nesta introdução, Eco reconhece a ação antecipatória de Haroldo de Campos, “como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda não tinha escrito, e que iria escrever sem ter lido seu artigo”. 34 Expressão extraída do fragmento inicial de Galáxias, ob. cit. Alessandra Ferreira Ignez, em sua tese de doutorado sobre as Galáxias, intitulada “A expressividade das criações lexicais em Galáxias, de Haroldo de Campos”, USP, FFLCH, 2012, também localiza a palavra “barco” na referida expressão. Cf. p. 41. 35 36

Excertos do fragmento “circulado de fulô”, Galáxias, ob. cit. Excertos do fragmento “isto não é um livro”, Galáxias, ob. cit.

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é poro, mas ao mesmo tempo o livro é puro37. Já em uma analogia do livro com o mar, a polpa violeta do oceano se abre como uma vulva violeta; o mar polifluente se ensafira; o mar é um livro rigoroso e gratuito, se desdobrando pele sob pele, pli selon pli38. E o leitor, estimulado pelo exercício das aproximações metafóricas, que nos impele ao êxtase, prossegue o jogo dos cantos paralelos, criando ao lado do criador, que, por seu turno, criou ao lado de outras criações. E isto não implica, nem de longe, sombra sequer de cópia ou de plágio, a não ser naquele sentido de plágio que o Poeta acolhe ao pensar o conceito de tradução: A literatura é um imenso “canto paralelo”, desenvolvendo-se no espaço e no tempo por um movimento “plagiotrópico” de derivação não linear, mas oblíqua e muitas vezes eversiva. É esse movimento incessante e sempre outro que explica como uma tradição é reproposta e reformulada via tradução (CAMPOS, 2003, p. 135).

Quanto ao Barroco, qual o lugar dos cantos paralelos? Mais uma vez, ouçamos o Haroldo de Campos nos tem a dizer: O barroco significa, paradoxalmente, a não-infância. A ideia de “origem”, aqui, só pode caber se não implicar a de “gênese”. Se for entendida no sentido de “salto” e “transformação” (...) Assim também a literatura brasileira não teve origem, no sentido genético, embrionário-evolutivo do termo, pois não teve infância. A palavra infans (criança) quer dizer: “aquele que não fala”. O barroco, portanto, é uma nãoorigem. Uma não infância (CAMPOS, 2013, p. 197-8).

E acrescenta: Nossas literaturas, emergindo com o barroco, nunca foram afásicas, nunca evoluíram de um limbo afásico-infantil para a plenitude do discurso. Já nasceram adultas (como certos heróis mitológicos) e falando com desenvoltura um código universal extremamente elaborado: o código retórico barroco (no caso brasileiro, influenciado já pelo maneirismo de Camões, um poeta que, por seu turno, havia exercido influência sobre Gôngora e Quevedo, os dois grandes nomes do barroco espanhol) (CAMPOS, 2013, p. 198).

Isto posto, podemos pensar que o Barroco, seja circunscrito aos séculos dezessete e dezoito, seja ampliado meta-historicamente, seja numa compreensão universal, seja numa perspectiva local, presta-se como poucos estilos à proliferação dos cantos paralelos. Isso

37 38

Excertos do fragmento “no jornalário”, Galáxias, ob. cit. Excertos do fragmento “multitudinous seas”, Galáxias, ob. cit.

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ocorre porque o Barroco privilegia sobremaneira as figuras de retórica, em especial a metáfora. Ora, o que seria a metáfora senão a justaposição de elementos díspares harmonizados pelo pensamento e sensibilidade engenhosos do homem barroco? A metáfora, nunca esqueçamos, é a menina-dos-olhos do Barroco. Galáxias, então, olha o tempo inteiro pelos olhos dessa menina. Sobre a constituição e as possibilidades expressivas da metáfora, Francisco Leitão Ferreira, um dos principais teóricos do barroco seiscentista e setecentista em Portugal, em sua obra Nova arte de conceitos nos ilumina: [a metáfora] He aquella, em que a palavra, que he própria, & recebida para denotar determinadamente hua cousa, se transfere, & applica para por ella se entender impropriamente outra: & assim qualquer vocabulo pòde ter mais significações, & respeytar mais objectos (...) Ora este modo de significar improprio, regulado porèm pela proporção da analogia he a que se chama metafora (...) Esta significação metaforica, he a todas as línguas commua; porque assim na Grecia, & Latina, como na Portugueza, & todas as mais vulgares, se pòde v. c. chamar ao Sol, Olho do mundo, Rosa do Ceo, Alampada dos orbes; porque todas tem seus vocábulos próprios para significar Sol, Olho, Rosa, & Alampada, com a mesma analogia, que proporciona as metáforas. E daqui vem a univocidade engenhosa dos conceytos, universal a todas as línguas, em que se funda a theorica das agudezas vocaes, & arte de engenho, que tratamos (FERREIRA, 1718, p. 24-5).

E quanto ao proveito das relações estabelecidas, por parte do poeta ou do leitor, o Autor é enfático: Quem pois descubrir mayor número de noções, mais propriedades, mais circunstãncias, mais analogias, & metáforas nos objectos de seu assumpto, será mais prompto, efficaz, & feliz na especulação dos conceytos, no verossimel das imagens, & provável das conclusões (FERREIRA, 1718, p. 75).

Baltasar Gracián, por sua vez, em sua Agudeza e arte de ingenio, tão fundamental para a compreensão do barroco histórico quanto a citada obra de Francisco Leitão Ferreira e, na opinião de Omar Calabrese, “um dos textos mais fascinantes da cultura barroca”39, traz-nos uma construção elucidativa no tocante à correspondência, harmonia e conexão dos elementos, não apenas na poesia, mas na arte barroca de um modo geral: Toda potencia intencional del alma, digo las que perciben objectos, gozan de algun artifício em ellos; la proporción entre las partes del visible, es la hermosura; entre los sonidos, la consonância, que hasta el vulgar gusto halla combinación entre lo 39

Cf. A idade neobarroca, Trad. de Carmen de Carvalho e Artur Morão, Lisboa, Edições 70, p. 146.

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picante y suave, entre lo dulce y ló agrio. El entendimiento, pues, como primera y principal potencia, álzase com la prima del artificio con lo extremado del primor, en todas sus diferencias de objectos (Gracián, 1642, Tomo I, p. 53).

Adiante, define o jesuíta catalão: Destínanse las Artes a estos artificios, que para su composición fueron inventadas, adelantando siempre y facilitando su perfección. Atiende la dialéctica a la conexión de términos, para formar bien un argumento, un silogismo, y la retórica al ornato de palabras, para componer una flor elocuente, que lo es um tropo, uma figura (Gracián, 1642, Tomo I, p. 53-4).

Isto posto, o que mais dizer de dois espaços em que a metáfora e a paródia são as vedetes do espetáculo? Muito pouco. Eis, ainda que sob visada panorâmica, os espaços constitutivos da poética de Haroldo de Campos e de um dos pressupostos fundamentais do Barroco. Visada parcelar, diga-se, mas se levar o possível leitor a experimentar o universo dos cantos paralelos, de um e/ou de outro de nossos temas aqui arrolados, valerá uma tese. Diríamos, para encerrar, apenas que se trata de espaços dados a dilatação das sensações e do pensamento. Espaços, portanto, de conformidade elástica e convergente, cujas dobras literárias, filosóficas, culturais e estéticas se multiplicam e se espraiam umas nas outras em nome da liberdade da ação humana, desenhando no ar uma elipse sem fronteiras de contenção da fantasia e do engenho. Uma ação intelectual, mas, sobretudo, política, pois com ela se realiza plenamente o prazer e a transformação pelo conhecimento, através da compreensão irrestrita de proximidade e de parentesco entre as imagens mais díspares. Utopia? Ouçamos, pois, o que nos legou nosso Poeta: Será essa a perspectiva a imprimir aos estudos da literatura comparada, como um imenso e móvel tabuleiro combinatório, intertextual, onde os aportes de Gôngora, Quevedo, Marino e [John] Donne, por exemplo, não rasurem nem tornem prescindíveis as “diferenças” chamadas Gregório de Matos (Brasil), Sor Juana Inés de la Cruz (México), Juan del Valle Caviedes (Peru), Hernando Domínguez Camargo (Colômbia), Edward Taylor (Estados Unidos); onde, numa latitude comparativa, a poesia tardia da dinastia T’ang (Li-Shangyin, 813-858) possa ser articulada com o Seiscentos europeu e americano, e com Mallarmé, Rubén Darío e Sousândrade, num contexto de divergências e convergências não hierarquizadas (para dar apenas esse exemplo) (CAMPOS, 2013, p. 210).

Haverá cantos paralelos dentro de nós à espera de tal epifania?! REFERÊNCIAS

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CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Trad. de Carmen de Carvalho e Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1987. CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio, CAMPOS, Haroldo de. Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos – 1959-1960. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975. CAMPOS, Haroldo de. Haroldo de Campos – Transcriação. Org. de Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2013. ________. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2004. ________. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe: marginália fáustica. São Paulo: Perspectiva, 1981. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2000. FERREIRA, Francisco Leitão. Nova arte de conceitos. Lisboa Occidental: Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1718, Primeira Parte. GRACIÁN, Baltasar. Agudeza e arte de ingenio, Tomo I. Madrid: Edición de Evaristo Correa Calderón, Clásicos Castalia, s/d. IGNEZ, Alessandra Ferreira. A expressividade das criações lexicais em Galáxias, de Haroldo de Campos, tese de doutorado, USP, FFLCH, 2012.

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A VARANDA DO FRANGIPANI: ELEMENTOS NEOBARROCOS NA ESCRITA DE MIA COUTO40 Ylana Karla de França Lopes (CEEL - UERN) 41 Orientador: Prof. Me. OLIVEIRA, Aluísio Barros de (FALA – UERN).

A Europa presenciou, no início do século XVI, um processo culminante de renovação cultural. O período das grandes descobertas expandia o mundo conhecido para além dos horizontes geográficos, concomitantemente com o deslocamento do teocentrismo para uma visão antropocêntrica. Esse movimento de reassimilação de valores culturais se iniciou nas cidades da Itália e foi difundindo-se por toda a Europa, sendo reconhecido como Humanismo, no qual o “Homem” assume um papel de grande importância, dada a sua racionalidade. Rompendo com a hegemonia religiosa de Roma, Lutero desencadeia um movimento chamado de Reforma Protestante que divide a cristandade europeia entre católicos e protestantes. A reação da igreja romana fica conhecida como Contrarreforma. O Concílio de Trento42 reuniu figuras importantes da Igreja para definir e corrigir a organização da Igreja Católica que estava sendo denunciada pelos reformistas. Nesse período, a Companhia de Jesus passa a regulamentar o ensino, fortalecendo os ideários católicos. Em meio a um panorama de mutações sociais, o Barroco surge expressando atitudes contraditórias, sendo bastante criticado por seus exageros e extravagâncias. O estilo barroco, também chamado de barroco-jesuítico na Europa neolatina, se fortificou através da nobreza e do clero espanhol, português, romano e seus novos estados mercantis, sobretudo de maneira ideológica. Os escritores barrocos “brincam” com as palavras e com as ideias por 40

Ensaio realizado durante o curso da disciplina da especialização em Estudos Literários: Discurso Literário, ministrada pela professora Drª Leila Maria de Araújo Tabosa, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN – FALA), durante o semestre letivo 2014.2. 41

Graduada em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; estudante do Curso de Especialização em Estudos Literários (CEEL), na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. 42

Concílio de Trento é o nome de uma reunião de cunho religioso convocada pelo papa Paulo III em 1546 na cidade de Trento, na Itália. O Concílio tinha como objetivo estreitar a união da Igreja e reprimir os abusos. Durou 18 anos, tendo sido concluído somente em 1562, após a realização de 25 sessões plenárias em três períodos diferentes: de 1545 a 1547; de 1551 a 1552; e, finalmente, de 1562 a 1563.

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meio de procedimentos discursivos, respectivamente, denominados de cultismo e conceptismo; usam de figuras de linguagem, de raciocínio lógico, de persuasão, de trocadilhos e enigmas para convencer o leitor. Além da literatura, segundo o historiador da arte suíço Heinrich Wölfflin em sua obra Renascença e barroco, a arte barroca estende-se à música, pintura, escultura e arquitetura. São nomes consagrados do Barroco Luis de Gôngora y Argote (1561 – 1627), Francisco Gómez de Quevedo Villegas y Santibáñez Cevallos, conhecido como Francisco de Quevedo (1580 – 1645), Miguel de Cervantes Saavedra (1547 – 1616), Antonio Lucio Vivaldi (1678 – 1741), Diego Rodrigues da Silva y Velázquez (1599 – 1660). Diretamente influenciado pelo barroco europeu, o Brasil vivencia um momento genuíno de manifestações literárias através da escrita de Gregório de Matos Guerra (1636 – 1696), de Manuel Botelho de Oliveira (1636 – 1711), de Frei Itaparica ou Frei Manuel de Santa Maria (1704 – 1768), da prosa de Padre Antônio Vieira (Portugal, 1608 – Brasil, 1697), das esculturas de Antônio Francisco de Lisboa, o Aleijadinho (1738 – 1814). O Barroco não se constituiu apenas como um estilo de época ou como escola literária com período fixado, mas como uma estética constante, afirma o escritor e crítico de artes espanhol Eugenio D’Ors, em sua obra O barroco (1990). Firmando-se contemporaneamente como estética artística e literária, o Neobarroco distancia-se da concepção religiosa empreendida pelo europeu que impôs sua cultura aos que colonizou. O Neobarroco se caracteriza pela visão que depreende do “Outro”, sobretudo daqueles que foram colonizados, encaixando-se nessa vertente autores latino-americanos e africanos. Antônio Emílio Leite Couto (1955 - ) – que adotou o nome Mia Couto por sua paixão por gatos e por seu irmão não saber pronunciar bem seu nome –, é consagrado escritor da Literatura Africana de Língua Portuguesa. Mia nasceu em Moçambique em 1955, sendo filho de imigrantes portugueses. Ele teve sua infância cercada por livros e poesia. É professor, jornalista, biólogo e escritor. Estudou medicina por um tempo e atualmente trabalha na área ambiental. O escritor surge numa fase literária posterior à independência moçambicana, juntamente com outros nomes de destaque da literatura africana de língua portuguesa, como os angolanos Pepetela (1941- ), José Eduardo Agualusa (1960 -), o moçambicano Luís Bernardo Honwana (1942 -), o bissauense Helder Proença (1956 – 2009), dentre outros. Mia Couto é o sexto ocupante da cadeira 5, na Academia Brasileira de Letras (ABL), como sócio correspondente. O autor lutou pela independência do seu país e também ajudou a compor o

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hino nacional. Dentre suas premiações, está o Prêmio Camões43 em 2013. Sua obra literária é vasta: entre romances, contos, crônicas e poemas, publicou mais de vinte livros e já foi traduzido em várias línguas. Como destaque, podemos citar Terra sonâmbula (1992), Cada homem é uma raça (1998), O último vôo do flamingo (2000), O fio das missangas (2003), A varanda do frangipani (1996), E se Obama fosse Africano? e Outras Intervenções (2009). O escritor moçambicano aborda diversos temas em suas narrativas, sobretudo, questões sociais, (re)memorações, e participa literariamente e criticamente das tentativas de (re)construção da sociedade do seu povo, buscando aproximar tradições locais e modernidade. Mia Couto é um autor que busca dar autonomia à literatura africana, tentando desvinculá-la dos paradigmas implantados pelos portugueses. Dominador de uma linguagem notadamente poética, cheia de neologismos, o autor empreende uma escrita que se constitui de denúncia, crítica social e do confronto entre a tradição e a modernidade. Nesse ensaio, dada a questão de extensão do gênero, pretendemos apresentar alguns traços neobarrocos que se alimentam da tensão entre a tradição e a modernidade, na obra A varanda do frangipani. Para tanto, utilizaremos as teorias de Sarduy (1979; 1989), assim como faremos referências aos estudos do barroco e do neobarroco desenvolvidos por Santos (2012), Secco (2002), Tabosa (2012). *** Segundo a professora tradutora e estudiosa da arte barroca Leila Maria de Araújo Tabosa, em seu ensaio intitulado Onírico Desengano: Primero Sueño e Muerte Sin Fin (2012), amparada pelos estudos de Severo Sarduy (1979), o neobarroco propõe uma nova ordem, embora retome a arte dos seiscentos e rompa os preceitos dos clássicos, surgindo, assim, como marca do século XX ao refletir a “desarmonia e a ruptura da homogeneidade” (TABOSA, 2012, p. 227). Em consonância com seu estudo, Ciro Soares dos Santos, no artigo Do barroco ao neobarroco: Gregório de Matos e Haroldo de Campos (2012), nos fala que a literatura chamada

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O Prêmio Camões é considerado o mais importante prêmio literário destinado a premiar um autor de língua portuguesa pelo conjunto de sua obra e que tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário da língua portuguesa. O prêmio é atribuído anualmente de forma alternada no território de cada um dos dois países. A premiação consiste numa quantia pecuniária, resultante das contribuições dos dois países, fixada anualmente em comum acordo. Ver site: http://www.dglb.pt

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neobarroca deve ser ligada aos séculos XX e XXI, na qual os artistas, sem repetir mecanicamente os de mil e seiscentos, fazem o novo sobre o antigo, sendo, então, a “retomada para representar o século XXI sobre as ruínas dos artistas daquela época” (SANTOS, 2012, p, 46). O poeta, romancista, jornalista e crítico de arte e literatura cubano Severo Sarduy, em sua obra O barroco e o neobarroco (1979), distingue três artifícios literários, sendo eles: a substituição, a proliferação e a condensação. A substituição é a troca de um significante por outro, assim o artista consegue desviar a atenção do público, gerando dificuldade de apreensão do significado; a proliferação é a multiplicação das figuras de linguagem, de metáforas, sobretudo, de metonímias, que façam referência ao objeto; e a condensação é “fusão de dois dos termos de uma cadeia de significantes, choque e condensação dos quais um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros” (SARDUY, 1979, p. 167). O neobarroco dá continuidade ao barroco através das construções fragmentadas, da organização em meio a desordem no labirinto de expressão, dos jogos de palavras e de ideias, das repetições, dos exageros linguísticos, é o que nos diz Santos (2012). A obra neobarroca reflete “a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico” (SARDUY, 1979, p. 178), ou seja, o homem contemporâneo já não se depara mais com as referências do momento histórico da Contrarreforma, mas, sim, com o contexto atual que lhe dirá quais tensões irá enfrentar. O artista do neobarroco discute temas atuais, na maioria, reflexos de problemas gerados pelas hipocrisias ou mazelas sociais, em relação às quais o neobarroco expressa uma busca por utopia, aborda Santos (2012). Segundo a pesquisadora e professora de literatura africana de língua portuguesa Carmem Lúcia Tindó Ribeiro Secco (2002), o neobarroco surge como uma “razão do Outro”, ou seja, uma razão ao que fora colonizado. Ele emerge como uma crítica ao racionalismo empregado aos povos colonizados e às suas culturas por parte do colonizador europeu. A vertente neobarroca torna-se forte em continentes periféricos como América Latina e África, pois encontrou nesses ambientes o espaço favorável para sua manifestação. Sobre a Literatura Africana e sua vertente neobarroca, a pesquisadora comenta: Conforme Virgílio de Lemos afirma em um ensaio seu, esse novo viés barroco, “como o de toda a literatura moçambicana pós-50, é puramente estético e ideológico”, pois consiste na sedução do abismo e da irreverência de imagens e linguagens, adotando

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do barroquismo europeu, apenas, a vertigem, o labirinto, os espelhamentos, recursos usados como estratégias de subversão dos cânones literários impostos pela colonização (SECCO, 2002, p. 43).

A Literatura Africana, em destaque a moçambicana, em meados das décadas de 40 e 50, já buscava seu espaço de representação de uma identidade pura, lutando para se desligar da visão literária empreendida por seu colonizador europeu. Os escritores que surgem numa fase literária posterior à independência usufruíram de técnicas barrocas em suas obras. Mia Couto consegue nos aproximar bastante desse universo que está aos poucos sendo desvendado. Moçambique se torna palco das suas histórias, esperanças e contradições compartilhadas pelo povo de um país “novo” que permanece cheio de simbologias, herança de tradições ancestrais. O real e a ficção se fundem na sua narrativa. O romancista não busca a construção de uma identidade nacional, porque para ele essa identidade já existe, a sua busca consiste no reconhecimento dessa identidade. Os escritores adotam o viés estético devido à crítica que se fazia ao momento histórico, e, sobretudo, o viés ideológico pelos contrastes de sair de uma guerra e as incertezas do futuro, os conflitos de identidade ou falta dela, um sublime labirinto que surgia, tentando ligar Moçambique das tradições e da modernidade. Publicada em 1996, A varanda do frangipani empreende uma escrita que se constitui de denúncia e crítica social, além do confronto entre a tradição e a modernidade. A obra de ficção mescla elementos do fantástico com dados da realidade, à qual Moçambique presenciou durante a guerra. O romance, que se passa vinte anos após a independência de Moçambique, apresenta um narrador “morto” que se transformou em “xipoco”, em fantasma, o ferreiro Ermelindo Mucanga. O homem fora sepultado sem os rituais da tradição, sob a sombra de uma árvore típica da região, chamada “frangipani”, em uma antiga fortaleza colonial. Impossibilitado, então, de ascender à condição de “xicuembo”, decide “remorrer” quando descobre que o Governo pretende forjar uma mentira usando seu nome. A fortaleza colonial transformou-se num asilo de idosos e se torna cena do crime do diretor, Vasto Excelêncio. Mucanga reencarna no corpo de Izidine Naíta que conduzirá a investigação. A trama traz depoimentos que são construídos a partir da visão de alguns velhos, com base nas antigas tradições africanas e nas marcas da história de guerra do país, cada qual com sua verdade. A fortaleza já nos sugere a substituição como artifício literário empreendido

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teoricamente por Sarduy (1979), pois nos remete à própria sobrevivência das personagens, vez que a tradição continua guardada lá no interior do asilo, na memória e nas histórias oralmente contadas pelos de antigamente. Os métodos utilizados pelo inspetor para desvendar o crime se caracterizam como um retorno às tradições, pois vão sendo desveladas ao longo da narrativa por meio das personagens com suas histórias juntamente com as evidências do crime. Pode-se perceber o uso da oralidade como marca da tradição no fragmento proferido pelo asilado Navaia Caetano em entrevista ao inspetor: “Não escreva, deixe esse caderno no chão [...]. Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente” (AVF, p. 26). O escritor moçambicano, de maneira perspicaz, articula-se em torno de paradoxos − figura de linguagem presente nos textos barrocos e neobarrocos − suscitados na discussão entre o rural e o urbano, o progresso e o atraso, entre a tradição e a modernidade para tratar na obra em questão da busca da memória. A varanda é um espaço distante das cidades modernas, assim torna-se reduto das tradições que estão guardadas em cada morador. De certa forma, é um ambiente de clausura e isolamento, não existindo saída: de um lado, o mar; do outro, as minas que foram depositadas em decorrência da guerra, ou seja, os velhos são prisioneiros em sua própria terra. Na narrativa, a fortaleza aparece como representação alegórica do Moçambique pós-guerra, demonstrando o isolamento dado aos velhos africanos – a tradição –, agora impossibilitados de se reintegrarem à sociedade. De certo modo, é como se eles e suas tradições estivessem excluídos da nova sociedade. Conhecem a modernidade através de relatos da enfermeira Marta Gimo, que entre paradoxos, permanece resistente e apoia as tradições. Em sua confissão ao inspetor, ela revelou: “Houve tempo que a cidade ainda me tentou. E ainda ensaiei me instalar por aquelas bandas. Mas eu adoeci de um mal que não tem nome” (AVF, p. 122). O inspetor de polícia Izidine Naíta chega ao asilo para investigar o assassinato do diretor, Vasto Excelêncio. O inspetor de polícia, moçambicano esteve fora do país durante algum tempo, sobretudo do espaço campestre, isto é, permaneceu distante da cultura e das tradições do seu povo. Entre relatos falsos e verdadeiros dos velhos, Izidine tem o papel de resgatar lembranças dos asilados para encontrar o assassino. Trata-se, então, de uma personagem que está no limiar entre a tradição e a modernidade, pois necessita dos

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elementos exteriores de sua função de polícia para desvendar o crime e, ao mesmo tempo, dos relatos dos de antigamente. O enfoque se dá nas personagens idosas que estão asiladas na fortaleza colonial de São Nicolau que foi transformada em asilo. É recorrente o termo “velho” na narrativa, estes guardiões das tradições africanas, esquecidos em decorrência da guerra. As personagens velhas são as responsáveis por fazer rememorações para que se desvende o crime, tantas vezes citados para que os mais jovens lembrem qual o papel desses velhos na sociedade africana. Se eles estão morrendo ali, desrespeitados, morrem também suas histórias, seu passado, suas memórias e as tradições de seu povo. A tensão dos discursos se dá entre os velhos do asilo e o inspetor de polícia Izidine Naíta, entre a tradição da oralidade e o que é compartilhado através dos escritos que lê. Mia Couto busca mostrar o encontro de culturas. A enfermeira Marta Gimo e o inspetor de polícia Izidine Naíta foram escolarizados. A enfermeira, por cuidar dos idosos, ouve as histórias e as tradições que estavam guardadas no asilo, na lembrança dos velhos. Estes, por sua vez, têm seus conhecimentos oriundos da cultura tradicionalmente oral dos povos africanos, não sabem ler nem escrever. A dependência do novo ao velho permeia toda a narrativa, nos depoimentos proferidos para que o inspetor desvende o crime. O escritor moçambicano Mia Couto tenta nos mostrar que é necessário ter tradições para se construir (ou reconstruir) algo novo. *** Ao tentar (re)criar uma literatura autenticamente moçambicana, Mia Couto propõe a ruptura da estética que fora imposta pelo colonizador, fazendo surgir um sentimento de busca de identidade em seu país. A modernidade se apropria do barroco, gerando uma arte descentrada que, ao mesmo tempo, estabelece uma ordem (SARDUY, 1979). Assim, a África, que está fora do centro, sendo periférica, consegue estabelecer uma ordem nesse descentramento com uma arte genuína, a partir dos seus artistas pós-50. De forma bem humorada, A varanda do frangipani é uma prosa-poética que vai mesclando o real e o irreal, usa figuras de linguagem como artifício estético e empreende uma narrativa contemporânea que necessita do passado através da lembrança dos velhos. As tensões dos discursos residem entre

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os mais velhos que habitam o asilo e os mais jovens que lá chegaram posteriormente. “Se há impossibilidade de recriar o mundo utópico, o lugar de fazê-lo é o poema com a poesia como utopia, como representação de outra realidade” (SANTOS, 2012, p. 66). A busca da utopia neobarroca se dá na forma como o autor aborda em seu texto a importância da memória dos mais velhos como forma de se (re)construir a identidade da sociedade moçambicana.

REFERÊNCIAS

COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia da Letras, 2007. D'ORS, Eugenio. O barroco. Lisboa: Vega, 1990. SARDUY, Severo. Barroco. Trad. Maria de Ludes Júdice e José Manuel de Vasconcelos Lisboa: Vega, 1989. _______. O Barroco e o Neobarroco. América latina em sua literatura. MORENO, C.F (Coord. E int.). São Paulo: Perspectiva, 1979. SANTOS, Ciro Soares dos. Do barroco ao neobarroco: Gregório de Matos e Haroldo de Campos. In: IVAN, Francisco; LIMA, Samuel [Org.]. Colóquio barroco III. Natal: Editora da UFRN, 2012. p. 39-72. SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. A Apoteose da Palavra e do canto: a dimensão “neobarroca” da poética de José Craveirinha. Revista Via Atlântica – n.° 5, out. de 2002. Disponível em: <www.fflch.usp.br> Acesso em 08 dez. 2014. TABOSA, Leila Maria de Araújo. Onírico Desengano: Primero Sueño e Muerte Sin Fin. In: IVAN, Francisco; LIMA, Samuel [Org.]. Colóquio barroco III. Natal: Editora da UFRN, 2012. p. 225241. WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e a sua origem na Itália. (Trad.: Mary Amazonas Leite de Barros e Antonio Steffen). São Paulo: Perspectiva, 2005.

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O SERMÃO DO MANDATO DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O AMOR DE JESUS CRISTO PELA HUMANIDADE: UM AMOR A SER ENTENDIDO Aurenísia Almeida de Mesquita Pós-graduanda – CELL/UERN Daniele Ramalho Pereira Pós-graduanda – CELL/UERN Orientadora: profª. Drª Leila Maria de Araújo Tabosa

Assim em barroco permanecem a imagem nodosa da grande pérola irregular – do português barroco – o áspero aglomerado rouco – do espanhol berrueco, depois berrocal. Mais tarde, renegando as características do objecto em bruto, da matéria rudimentar não trabalhada, barroco aparece no vocabulário dos joalheiros: invertendo sua conotação inicial a palavra já não designa o imediato, natural, pedra ou pérola, mas o que é elaborado minucioso: o objecto cinzelado, a aplicação do ouvires. Severo Sarduy

O Barroco se iniciou na Europa, com auge durante o século XVII, e perdurou, segundo a historiografia, até meados do século XVIII. Foi no período da Contrarreforma, com abandono do Classicismo, que a arte, principalmente, a arquitetura, passou a destacar excesso de ornamentação, com elementos contorcidos e em espirais. O conjunto resultante, principalmente, em igrejas ornadas com esculturas e com detalhes em dobras e curvas chamou-se barroco. A criação de objetos artísticos retratando faces humanas, marcadas pela emoção, tornou essa arte passível de interpretação. As artes plásticas chamadas barrocas foram elaboradas por grandes pintores e escultores, como Diego Rodrigues Silva y Velásquez (1599-1660), Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), Aleijadinho (1738-1814) e Mestre Ataíde (1760-1830). Suas obras exigem uma observação aguçada para que sejam

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entendidas, uma vez que a arte barroca é a arte da expressão, do novo, devido às suas curvas e dobras, por não obedecer um padrão retilíneo de construção. Na literatura brasileira, em sintonia com o século XVII, destacaram-se o Padre Antônio Vieira, devido a seus sermões e a suas cartas; e Gregório de Matos (1633-1696) por sua poesia. No Brasil, o Barroco começou com a obra Prosopopéia (1601) de Bento Teixeira (15611600), sendo que os primeiros a divulgar a arte barroca foram Botelho de Oliveira (1636-1711) e Frei Itapiraca (1704 - ?), mas seu apogeu se deu com Gregório de Matos com suas poesias líricas, satíricas e religiosas. Na segunda metade do século XVIII, quando o Brasil viveu seu ciclo do ouro, a arte barroca se destacou, principalmente, em Minas Gerias, com Aleijadinho e, na Bahia, com a arquitetura das igrejas. Em Portugal, o Barroco atingiu seu esplendor na primeira metade do século XVIII no período do reinado de D. João V, na escultura com Joaquim Machado de Castro (1731-1822), na arquitetura com Mateus Vicente de Oliveira (1706-1786) com a projeção do Palácio Real de Queluz, em Lisboa. Na literatura, além do padre Antônio Vieira, se destacaram D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) e Pe. Manuel Bernardes (1644-1710). O jesuíta padre Antônio Vieira44 (1608 - 1697), em seus discursos, faz uso de imagens sensoriais, fazendo analogias com textos bíblicos e com biografias dos santos. Sua obra é composta por cartas, nas quais tratam de assuntos voltados para a inquisição, fala dos novos cristãos e da relação de Portugal com a Holanda. Também integra sua obra sermões, em sua maioria, de cunho religioso. Trata-se da contabilização de 200 sermões e de 500 cartas. Em sua viagem à Itália, em missão oficial no ano de 1669, Vieira aproveita para lutar pela revisão do seu processo inquisitorial. De acordo com Exposição P. Antônio Vieira, da biblioteca nacional de Portugal (1997), a primeira vez que Vieira prega o Sermão do Mandato é no ano de 1643 no Hospital Real, em Lisboa. Nesta pregação, ele fala que o amor de Cristo é puro e perfeito, que não é como amor dos homens, um amor enfermo e

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O jesuíta padre Antônio Vieira44 (1608 - 1697), de origem portuguesa, veio para o Brasil em 1614 com 6 anos de idade. Morou em São Salvador da Bahia, capital da colônia brasileira. Foi no Brasil que se tornou sacerdote em 1634 (BOSI, 2006). Com 33 anos, retorna Portugal, tornando-se embaixador D. João IV, na França, Holanda e Roma, chegando a exercer o papel de conselheiro, porém com a morte de D. João IV e a ascensão de Afonso VI ao poder, Vieira foi expulso da corte de Lisboa e sujeitado ao um processo de inquisição. Foi fundador da Companhia de Comércio para o Brasil em 1649, o seu maior feito político. Já no ano de 1653, retorna ao Brasil, mas, desta vez, para o Maranhão. Lá, exerceu o seu sacerdócio como missionário, aprendeu a língua dos índios e os evangelizou. Foi seu defensor, o que lhe causou uma expulsão por parte dos colonos. Falece no ano 1697 no Colégio da Bahia, em Salvador. O fato de ser adepto do estilo de Quevedo, conhecido por conceptismo, que é marcado pelo uso da retórica, faz com ele se destaque com seus sermões.

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circunstancial. A segunda vez em que Sermão do Mandato é proferido em Lisboa é na Capela Real no ano de 1650. Nessa ocasião, Vieira fala das finezas e sutilezas do amor de Cristo 45 e revela uma forma de entendê-lo, o que é o contrário da posição de três doutores da igreja: Santo Agostinho, Santo Tomás e São Crisóstomo. E em 21 de abril de 1670, Vieira prega o Sermão do Mandato pela terceira vez na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, em Roma. Muito se tem falado sobre Antônio Vieira e suas obras, já que são inúmeras. Margarida Vieira Mendes, em sua obra Oratória Barroca de Vieira (1989), procura mostrar o momento em que os sermões são proferidos, para então fazer uma análise pragmática. A autora também discorre sobre a relação existente entre a política e a liturgia da igreja daquela época. Já Márcia Sipavicius Seide (2002) faz uma relação entre o Sermão do Mandato e a Bíblia, dois discursos sacro-religiosos. Enquanto o padre Antônio Vieira fala do amor de Cristo em seu Sermão, Seide (2002) fala do calendário religioso e da sua relação com a obra de Vieira. Em seu livro Mensagem (1934), Fernando Pessoa diz que Vieira é o “imperador da língua portuguesa”. Jessé Gabriel da Silva, em seu ensaio Os paradoxos, mostra o jogo de linguagem existente no Sermão do Mandato, um paradoxo entre o amor de Cristo e o amor do homem. O texto de Vieira parte do texto bíblico e a leitura dos sermões revela a interpretação do evangelho de São João. O ouvires é um profissional que trabalha na confecção de joias. É ele quem lapida metais e pedras preciosas para que esses materiais se transformem em lindas joias. O processo de lapidação necessita de atenção, silêncio, concentração, pois este profissional busca atingir a perfeição através das formas irregulares e deformadas do material. Para o ouro atingir a perfeição desejada pelo profissional, exige a passagem por vários processos. O ouvires colocar o ouro no fogo para derreter, fica do lado acompanhando o processo e só tira do fogo depois que consegue visualizar a sua imagem refletida nele. Se ele não acompanhar o processo de condensação, o ouro pode se perder. O barroco com as dobras, formas circulares e irregulares; almeja reproduzir a realidade. Com isso, provoca espanto, estranhamento e a não aceitação quando as pessoas se chocam com a abordagem barroca. O trabalho do ouvires também nos ajuda a compreender as finezas do amor de Cristo pelo homem no Sermão do Mandato. Cristo

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De acordo com Leila Maria de Araújo Tabosa (2009, p, 28), segundo Vieira, a maior fineza oferecida à humanidade não teria sido a sagrada Eucaristia nem sua crucificação, mas o amor de Cristo pela humanidade, sem o desejo de ser correspondido.

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provou de várias maneiras seu amor pela humanidade e deixou para o homem um novo mandamento, amar uns aos outros como Ele o fez. Mas, por vários motivos, o homem não consegue cumprir esse mandamento e, durante a vida, ele passa por vários sofrimentos que podem distanciá-lo de Deus e dos outros homens. O sofrimento e as dificuldades da vida constituem um processo necessário à lapidação do homem. O homem também é provado no fogo, assim como o ouro. Jesus, na função de ouvires, fica do lado do homem, mesmo na ausência, esperando ver o Seu reflexo no homem, portanto vendo o amor que Ele instituiu como mandamento para o homem atingir a perfeição, depois de tantas irregularidades e sofrimento. Este ensaio se propõe a estudar o amor de Jesus pelos homens na obra O Sermão do Mandato do padre Antônio Vieira e como Jesus foi capaz de se sacrificar pela humanidade. Também trata da opinião descentralizada existente entre o autor e os doutores da igreja, já que ambos falam do amor de Jesus pelo homem de formas diferentes, assim como a elipse que existe na obra através da cosmologia barroca. A obra de Vieira é dividida em treze partes, e, em cada uma delas, o tema é o amor de Cristo pelo homem, mas por visões diferentes. Para uma aproximação teórica, trabalharemos com Jacques-Marie Lacan46 e Severo Sarduy47, visto que ambos eram estudiosos do Barroco. E Lacan, em seu Seminário Do Barroco (1985), expõe seu pensamento em relação ao amor de Deus: Esses efeitos, bem vemos no que isto agita, comove, atormenta os seres falantes. Certo que, para que isto chegue a alguma coisa, tem mesmo que servir, e que servir, meu Deus, para que eles se arranjem, para que eles se acomodem, para que, mancos mancando, eles cheguem, mesmo assim, a dar uma sombra de vidinha a esse sentimento dito de amor (LACAN, 1985, p. 63).

A citação acima revela que Lacan (1985) trata do amor como um sentimento que atormenta o homem, mas, mesmo diante das dificuldades, o homem não deve deixar esse

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Nasceu em Paris, em 13 de abril de 1901, filho de família burguesa e católica, o que fez com que ele respeitasse os dogmas do catolicismo. Formou-se em medicina e se especializou em psiquiatria. Era um estudioso da obra de Freud (1856-1939) e em 1964 fundou a Escola Freudiana de Paris. Já em 1980, ele a dissolveu e fundou a Escola da Causa Freudiana. Veio a falecer no ano seguinte, em 1981, no dia 9 de setembro. 47 Severo Sarduy nasceu em Camaguey, em Cuba, em 1937. Em 1958, vai para Havana e lá publica seus primeiros trabalhos na revista “Ciclón”. Estudou História da Arte no Louvre e, em 1962, fixou-se em Paris. Seu primeiro romance, Gestos, é publicado em 1963, em espanhol, francês e italiano. Faleceu em Paria no ano de 1993.

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amor morrer, assim como o amor do homem para com Cristo, uma vez que este o amou tanto que foi capaz de morrer crucificado para salvá-lo da morte. A partir da leitura de Lacan, faremos uma releitura do amor de Jesus pelo homem, desse amor pelo outro que é capaz de tudo, até de dar a própria vida para salvar o homem, a fim de que este não sofra e que não seja castigado, já que Deus enviou Jesus para libertar e salvar os homens do pecado. E Deus, por amar o homem, enviou seu Filho para salvá-lo, daí Jesus haver sofrido as dores do mundo e haver anunciado o amor de Deus. Deste ponto vista, podemos identificar a simbologia que existe na palavra amor: imensa simbologia para todos. Simbologia esta que Sarduy (1989) trata através da linguagem barroca, como uma omissão que se obtém pelo delírio da linguagem. Leia-se: A qualidade duma superfície metálica, resplandecente, sem reverso aparente, sobre a qual os significantes – uma vez recalcada a sua economia semântica – parecem reflectir-se a si próprio, referir-se apenas a si, degradar-se em “signos vazios”; as metáforas, precisamente porque jogam aqui no seu espaço próprio, o espaço do deslizamento simbólico – igualmente mola do sintoma - , perdem a sua dimensão metafórica: o sentido não precede a sua produção, é o seu produto emergente. Sentido do significante que apenas conota a relação do sujeito ao significante. Assim funcionam as linguagens barrocas bem como a do delírio (SARDUY, 1989, p. 72).

A linguagem barroca é carregada de sentidos, pois está relacionada ao campo simbólico e ao seu significado, porém esses símbolos rompem o sentido dado através da metáfora. Ao se tratar da linguagem barroca, ela perde a sua dimensão, pois rompe esse sentido metafórico, pois, para ela, o sentido das palavras é apenas uma ligação entre sujeito e significante. Através de Sarduy (1989), faremos uma releitura da simbologia do amor de Cristo e de como esse amor superou a morte. Também podemos analisar o sentido metafórico das passagens bíblicas que contêm o sermão em relação a esse amor. *** O Sermão do Mandato está dividido em treze partes, das quais serão contempladas para análise a segunda, a terceira, a décima segunda e a décima terceira partes. Na primeira parte, Vieira nos apresenta a origem do amor de Cristo, que Deus, na criação do mundo, deixou o último dia para o seu maior poder, enquanto Jesus, no seu último dia, que seria o dia da

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redenção, foi que mostrou o seu amor maior, “que como amasse os seus, no fim os mais, senão, como amasse, amou” (VIEIRA, 2001, p. 189). Assim, podemos ver que o amor de Cristo foi maior pelo homem quando Ele estava no fim, fazendo com que ocorra um “deslizamento simbólico” (SARDUY, 1989, p. 72), que existe entre o amor de Jesus e a criação de Deus. Nesta primeira parte, Vieira esclarece que primeiro vai abordar as opiniões dos santos e, depois das deles, porém, o que ele tem para falar do amor de Jesus é diferente da opinião dos santos. Na segunda parte, Vieira nos apresenta a primeira opinião dos doutores da Igreja, a de Santo Agostinho, que diz “que a maior fineza do amor de Cristo para com os homens foi morrer por eles” (VIEIRA, 2001, p.191), enquanto Antônio Vieira tem outra visão: Com licença, porém, Santo Agostinho, e de todos os Santos Doutores que o seguem, que são muitos, eu digo que o morrer Cristo pelos homens, não foi a maior fineza de seu amor: maior fineza foi em Cristo o ausentar-se, que o morrer: logo a fineza de morrer não foi a maior das maiores. [...]. Que seja maior dor a da ausência, que a da morte, não o podem dizer os que se vão, porque morrem, só o podem dizer os que ficam, porque vivem, e assim nesta controvérsia da morte e ausência de Cristo havemos de buscar alguma testemunha viva. Seja a Madalena, como quem tão bem o soube sentir. É muito de reparar que chorasse mais a Madalena na madrugada da ressurreição às portas do Sepulcro, que no dia da paixão ao pé da Cruz (VIEIRA, 2001, p. 191-192).

No trecho, podemos ver as diferentes opiniões entre Santo Agostinho (354-430) e Padre Antônio Vieira, já que este diz que a maior prova de amor de Cristo pelo homem foi o ausentar-se, não a morte. A referência à Maria Madalena como exemplo do sofrer por ausência, pois ela chora mais ao não ver o corpo de Cristo no Sepulcro do que diante Dele na cruz. Vê-lo morrer não era difícil como perder seu corpo, uma vez que o corpo estando ali poderia visitá-lo. A dor da morte é suportável, mas a ausência do corpo daquele que morre não. Enfim, há uma necessidade de presença ou de proximidade do outro que a morte desfaz. Quando aquele que fica consegue ver ou tocar aquele que morreu, a dor se torna suportável, mas, depois que o corpo daquele que morreu se ausenta por algum motivo e não é possível ver ou tocá-lo, as lembranças e a saudade sufocam aquele que fica e a dor adquire uma proporção incalculável. Na terceira parte do sermão, Vieira rebate os evangelistas, porque dizem que Jesus sofreu mais no Horto ao se despedir dos seus discípulos, que no Calvário. Como poderia isso acontecer, se os homens da idade de Jesus morriam de forma violenta, agonizando e sofrendo?

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Jesus não morreu dessa forma e sim de forma serena e tranquila. Aqui, Vieira fala dessa disparidade dos evangelistas quanto à morte e ao sofrimento de Cristo: Cristo, no Horto apartou-se de seus discípulos; e como o Senhor sentia mais o ausentar-se que o morrer. [...] Cristo foi o que se arrancou, quando se apartou dos Discípulos [...] e sendo que o agonizar havia de ser no Calvário, quando morreu, não agonizou o Senhor, senão no Horto, porque lá se apartou. Morreu Cristo com a facilidade com os homens se costumam ausentar, e ausentou-se com todos os acidentes com que os homens costumam morrer. [...]. Da maneira que pela morte deixou de ser Cristo, pela ausência deixou de estar com os homens: e sentia mais o amoroso Senhor deixar de estar com quem amava, que deixar de ser quem era. A morte privou-o de ser, a ausência privou-o de estar: e mais sentiu Cristo o deixar de estar, que o deixar de ser: mais sentiu a perda da companhia, que a destruição da essência (VIEIRA, 2001, p. 193).

O homem não consegue ver nem tocar Jesus, assim como Jesus não consegue estar próximo ao homem como gostaria, mas Ele precisou fazer essa escolha para salvar o homem da morte eterna. Estaria esse fragmento explicando a metáfora da morte de Jesus, do seu sofrimento, já que as leituras dos evangelhos são interpretativas e esta foi a interpretação de Vieira. Sobre a metáfora, Sarduy (1989, p. 117) fala que ela “é um ponto onde a textura da linguagem se espessa, onde ela toma um relevo que reenvia o resta da frase para a sua lhaneza, para a sua inocência”, ou seja, seria uma visão do amor puro que Jesus sentia pelos seus discípulos. O autor na, quarta parte, fala que “a ressurreição era remédio da morte, o Sacramento era remédio da ausência” (VIEIRA, 2001, p. 194). Com a ressurreição, Cristo estaria presente mais uma vez com os seus; mas, com o Sacramento, estaria presente em todos os lugares e em todas as horas, portanto o Sacramento O faria presente para os homens, o que seria essa uma fineza do seu amor. Na quinta parte aparece a segunda opinião dos doutores da igreja, São Tomás (1223-1274). Vieira deixa claro que é um venerador da doutrina deste santo. Para São Tomás, a maior fineza do amor de Cristo “foi deixar-se conosco, quando se ausentava de nós [...] a fineza de se deixar conosco desfaz a fineza de se ausentar de nós” (VIEIRA, 2001, p. 195), porém Vieira continua com a mesma opinião. Já na sexta parte, Vieira fala do Cristo através do Sacramento e da Paixão de Cristo. Neste, só houve sofrimento que até seus olhos foram cobertos, não podendo ver os homens. No outro, Jesus podia ver aqueles a quem Ele tanto amava.

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Na sétima parte do Sermão, Vieira apresenta o momento em que Jesus é perfurado pela lança, que Ele a sentiu duas vezes, uma vez que a sentiu ainda vivo e a outra morto, também fala do sacramento, que mesmo estando Jesus ali, Ele sofre porque os homens não o veem, e esta seria a “fineza cruel e terrível do amor” (VIEIRA, 2001, p. 201). Eis que na oitava parte aparece um terceiro doutor da igreja, São João Crisóstomo (347-407) e, para ele, “a maior fineza do amor de Cristo hoje, foi o lavar os pés a seus Discípulos” (VIEIRA, 2001, p. 201), aqueles a quem tanto amava, porém, para Vieira, lavar os pés dos seus discípulos não foi a maior fineza do seu amor, e sim lavar os pés daquele que O trairia, os de Judas. Assim, podemos perceber que aqui existe um jogo de palavras de símbolos que não dá para dissociar um do outro (LACAN, p. 111), pois este momento de lavar os pés dos discípulos é carregado de símbolos para os homens, uma vez que Jesus, seu Mestre, se dispõe a um gesto tão humilde diante daqueles que o seguia e enquanto lavava seus pés também lhes falava dizendo que eles deveriam estar sempre juntos e sempre ajudando um ao outro e que também poderia repetir aquele mesmo gesto de amor com o próximo. A nona parte é um complemento da oitava, pois fala do amor de Jesus para com seus discípulos e do momento em que estão reunidos e Jesus lava os pés deles, porém, antes de Jesus começar a lavar os pés dos discípulos, Ele avisa que um deles irá lhe trair, mas só um deles sabia quem era o traidor, São João, aquele discípulo a quem Jesus tanto amava. No entanto, Jesus não faz distinção do seu amor, pois, para mostrar a fineza do seu amor, Ele morre pelos justos e injustos, e não deixa de lavar os pés de Judas. Jesus usou de misericórdia para com aquele que lhe seria injusto, sendo justo com quem é injusto. Jesus o tratou como justo, como alguém merecedor de amor, para constranger o ódio, o mau que essa pessoa carrega em si. Na décima parte, há uma continuidade da nona. Vieira (2001) explica que, ao lavar os pés de todos os discípulos sem excluir o traidor, Jesus só conseguiu benefícios com seu gesto em relação aos onze. Para Judas, o gesto pareceu ter sido em vão, mas Jesus sabia que estava lavando os pés daquele que iria lhe trair e não o deixou fora de seu penúltimo gesto, por isso a maior fineza de Jesus foi acolher com igual amor Judas, o traidor. São Bernardo (1090-1153), citado por Vieira (2001, p. 207), define que “o amor fino é aquele que não busca causa, nem fruto: ama porque ama e ama por amar”. Jesus amou e ama mesmo aquele que o traiu. Ele não deixou de amar Judas, porque este agiu de má fé, antes mesmo do ato dele, Jesus retribuiu

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com misericórdia e não se esqueceu dele e muito menos lhe desejou o mal. Com o gesto de lavar os pés, provou que seu amor beneficiava bons e maus, que os amava igualmente e sem distinção. O próprio Jesus mencionou em suas pregações que veio a esse mundo para aqueles que estão doentes e precisando dele e não para os bons ou não somente para estes. Nas três últimas partes, Vieira apresenta sua opinião divergente um pouco das ditas anteriormente. Na décima primeira parte, Vieira revela sua posição ao dizer que “a maior fineza de Cristo hoje, foi querer que o amor com que nos amou, fosse dívida de nos amarmos” (VIEIRA, 2001, p. 208), pois Jesus deixou um mandamento para que os homens se amassem como Ele os havia amado. Vieira argumenta que os homens possuem uma dívida com Jesus, pois eles devem pagar de alguma maneira esse amor de Cristo. A dívida do homem para com Cristo deve ser paga não a Ele, mas entre homens. Vieira (2001, p. 208) esclarece: “vós me haveis de pagar a mim o amor de Cristo, eu vos hei de pagar a vós amor de Cristo, e todos hão de pagar a cada um o mesmo amor, e cada um o há de pagar a todos”. Ao final dessa parte, Vieira (2001) comunica que as três finezas de amor defendidas pelos Doutores da Igreja foram direcionadas ao homem, “foram por nós, e para nós [...] a quem se hão de pagar, não a mim, que vos amei (diz Cristo), senão a vós, amando-vos uns aos outros” (VIEIRA, 2001, p. 209). Só amando verdadeiramente aqueles a quem Cristo pediu, poderemos quitar a dívida. Vieira também explica que esta foi a maior fineza do amor de Jesus, diante do céu e da terra, e esse amor que liga o céu e a terra seria “um ponto de referência novo, em relação ao qual se vai situar, explicitamente ou não, toda a atividade simbólica” (SARDUY, 1989, p. 57). Este, pois, é um símbolo para a humanidade, uma vez que tudo que Cristo fez foi voltado para os homens, como “dar a vida por eles, deixar-se no Sacramento e lavar os pés” (VIEIRA, 2001, p. 209), e que o homem só uma única dívida com Cristo, cumprir seu mandamento do amor. Na décima segunda parte, Vieira fundamenta sua opinião usando as palavras do próprio Cristo. Para ele, Jesus instituiu um novo mandamento e uma nova forma de amar. O novo mandamento sugere que, para os homens pagarem todo o sacrifício que Jesus Cristo fez por eles, eles precisam se amar entre si. Dou-vos um mandamento novo, o qual é, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei a vós, para que vós vos ameis a vós. De sorte que a novidade do mandamento e do amor, não está em os homens se amarem uns aos outros: está em que o amor com que se amarem, seja a paga do amor com que Cristo os amou (VIEIRA, 2001, p. 210).

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Jesus Cristo nos amou a fim de que fizéssemos o mesmo com Ele e uns com os outros. Amando aqueles que se assemelham a nós e aqueles que se (des)semelham também, amamos o próprio Cristo, pois Ele está presente em cada ser humano. Ele preferiu contar com a nossa forma de amar. Esse novo mandamento pede que amemos amigos e inimigos da mesma forma e com a mesma intensidade. Amar parece simples, mas amar até aquele que nos faz mal dificulta o homem pagar a dívida eterna que tem com Jesus, pois a humanidade do homem em alguns casos não consegue estender seu amor para aqueles que não consideram merecedor dela. A décima terceira parte, Vieira (2001) começa dizendo que esse novo mandamento é uma dívida que o “amoroso Jesus” nos obriga a pagar. Há uma dívida, mas Jesus não usa de persuasão para nos obrigar a pagar. Ele deixa o homem livre e à vontade para pagar a dívida. Ao homem é dado o poder de escolher amar voluntariamente e pagar o amor que Jesus lhe conferiu de graça, ou deixar que a dívida se acumule sem nunca oferecer aquilo que tem de melhor para os outros e para Jesus: sua forma de amar. Segundo Vieira,

131 Se nós houvéramos de pagar aos homens o amor que lhe devemos, muito fácil era a paga; porque eles nunca se empenham muito. Mas como havemos de pagar aos homens o amor que devemos a Cristo por tantos modos infinito, por mais e mais que paguemos, sempre é força ficar devendo (VIEIRA, 2001, p. 211).

A nossa dívida com Cristo é imensa e não temos condições de quitá-la de qualquer maneira. Precisamos caprichar, sermos generosos e misericordiosos assim como Ele foi. E, mesmo assim agindo, percebam que Vieira diz que o homem pagar a outro homem com amor é fácil; mas que nunca conseguirá pagar com esse amor a Cristo que amou infinitamente ao homem. E por que nunca conseguiremos pagar tanto amor? Porque Jesus não precisa do homem. Ele quis precisar, mas continuou sendo Deus mesmo quando se fez homem e habitou o mundo, porém, com ou sem Jesus, o homem continuou sendo homem e precisa sempre do amor de Cristo para viver esta vida e para viver a vida eterna. *** A análise apresentada a respeito do Sermão do Mandato teve como finalidade falar da relação do amor de Cristo com os homens e das suas várias formas de amar. Assim, deduzimos


que este amor é insaciável, pois Jesus foi capaz de dar sua própria vida para salvar, principalmente, aqueles que o rejeitaram. Morreu, mas permaneceu presente na ausência através do Sacramento Eucarístico. Jesus também foi capaz de beneficiar aquele que o traiu, expressando assim a sua infinita misericórdia ao lavar seus pés para que tivesse parte com Ele. O amor dEle não era só para amigos, era também para os inimigos, pois o que importava era dar o seu amor e estar presente na vida do homem. Para sentir que o homem pode lhe amar de igual maneira, Jesus instituiu um novo mandamento de amor, amar uns aos outros como Ele assim o fez. Os teóricos trabalhados ajudaram a compreender a simbologia desse amor e de como Vieira usou essa simbologia para pregar o seu sermão, uma vez que a linguagem barroca é repleta de símbolos e passível de interpretações.

REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. Exposição: P. Antônio Vieira. Da Companhia de IESV Prégador de Sua Alteza. Em Lisboa, Biblioteca Nacional. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=stqkwDGGRG4C&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 12 de dezembro de 2014. SILVA, Jessé Gabriel de. Os paradoxos no Sermão do Mandato. Mafuá- Revista de Literatura em meio digital. Disponível em: <http://www.mafua.ufsc.br/jessegabriel.html>. Acesso em: 14 de dezembro de 2014. SEIDE, Márcia Sipavicius. O Sermão do Mandato: análise literária e adequação histórica. Polifonia Nº 5. Cuiabá: EdUFMT, 2002. MENDES, Margarida Vieira. Oratória Barroca de Vieira. Lisboa: Caminho, 1989. LACAN, Jacques. O seminário: Livro 20: mais, ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Iahar Editor, 1985. SARDUY, Severo. Barroco. Tradução de Maria de Lurdes Júdite e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Veja, 1989.

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TABOSA, Leila Maria de Araújo. O barroco hispano-americano: Primero sueño ou sor Juana Inés de la Cruz. Natal, 2009. VIEIRA, Antônio. Sermões: Padre Antônio Vieira. Tomo II. Org. e introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001.

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TRÊS OLHARES VOLTADOS PARA AS CONCEPÇÕES BARROCAS EM SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ Jackeline Tôrres Maia (Pós-graduanda/CEEL/UERN) Orientadora: Profª. Drª. Leila Maria de Araújo Tabosa

Yo no estimo tesoros ni riquezas; y así, siempre me causa más contento poner riquezas en mi pensamiento que no mi pensamiento en las riquezas. Sor Juana

O Barroco, como estética literária, é uma etapa que está sempre se repetindo na história (DORS, 1990). Cabe-nos, aqui, explicitar algumas disposições temáticas que se aplicam propriamente à sua estrutura: pictórico, fusionismo, contraste, desproporção, deformação, acúmulo, excesso, exuberância, dinamismo, incongruência, dualidade, sentido dilemático, gosto pelas oposições, angústia, jogo de palavras, horror do vácuo (WÖLFLLIN, 2005). A epígrafe acima é trecho da obra de uma poeta do século XVII, versada nas letras, que sofreu algumas afrontas por elaborar escritos profanos. No poema de onde provêm os versos, Sor Juana de Asbaje expressa sua inconformidade ante às injustiças que se apresentavam diante de sua obra. Apesar de ser um ícone da literatura e de manter boas relações com a alta aristocracia da Nova Espanha, seu trabalho foi sempre criticado pelos escritores de sua época. Por isso, no fragmento de soneto, ela diz que o único prazer é expressar-se da maneira mais bela possível, sem valorizar as riquezas ou o status social. Para ela, a riqueza deve estar no entendimento, na sabedoria: nessas virtudes, ela encontra o maior contentamento. Dentre os principais temas da literatura barroca, um dos mais comuns é o do desengano. Um dos tópicos que representa de forma especialmente clara o dualismo relacionado com desengano é o próprio campo da religião. Muitos poemas religiosos do

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Barroco parecem querer mesclar o erotismo pagão com a pureza divina. Visto que se trata de uma tentativa que jamais obtém sucesso, surge como uma espécie de consequência inevitável, de acordo com o qual, a vida passa a ser definida como um delírio, um sonho, uma ilusão. A partir do que se afirmou, podemos acrescentar que, no Barroco, existe uma oposição ideológica. A arte barroca é caracterizada por uma tendência contraditória, no plano estético e no plano das ideias, que se resolve na fusão dos elementos, de acordo com o preceito aristotélico de unificação dos detalhes numa tentativa de conciliar a razão e a fé, até então consideradas irreconciliáveis. O Barroco nasce, assim, do confronto de ideias contraditórias, em tensão estrutural, submetidas a uma síntese dinâmica (JOSEF, 1989, p. 37). Essa tentativa de reconciliar aquilo que é irreconciliável pode ser vista como o motivo de vários temas da literatura barroca, principalmente no teatro, e também em outras artes. De um lado, a promessa de prazeres ilimitados aqui na terra; de outro, a necessidade de renúncia em prol da salvação da alma. Assim, o homem barroco é dividido, o que o torna um desenganado e um melancólico. Na literatura hispano-americana, o Barroco manifestou-se no século XVII e na metade do século XVIII. Esse movimento teve como fonte de inspiração o Barroco espanhol através de dois grandes representantes dessa época: Francisco Gómez de Quevedo y Santibáñez Villegas (1580-1645) e Luis de Góngora y Argote (1561-1627). No mundo ocidental, sobretudo na América hispânica, essa foi uma época na qual a sociedade passava por grandes conflitos espirituais e ideológicos. Isto devido à transição do Renascimento, com as concepções antropocêntricas para o Teocentrismo, sob a direção do clero numa tentativa de reencontrar a tradição cristã, causando na população uma inquietude espiritual, uma profunda melancolia. Alguns eruditos americanos da época merecem destaque, como o mexicano Carlos de Siguenza y Góngora (1645-1700), os peruanos Pedro de Peralta Barnuevo (16641743) e Juan de Espinosa y Medrano (1632-1688). A reação satírica hispânica e popular encontra-se em Juan Del Valle Caviedes (1652-1697), que nasceu na Andaluzia e cujas diferentes facetas compreendem temas religiosos e amorosos. A esta época pertence também Luís de Tejeda y Guzmán (1604-1680), o primeiro poeta argentino. Já Hernando Domínguez de Camargo é o principal representante do barroco na Colômbia.

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Segundo Paz (1998), há duas características do barroco novo-hispânico: além de ser o período mais longo, pois se estende até meados do século XVIII, foi o período mais abundante em figuras literárias. Abundante e longo, esse período é também poderosamente original. Com efeito, a poesia da Nova Espanha, “como toda arte imitativa, tratou de ir mais além de seus modelos e, assim, foi extremamente barroca: foi o cúmulo da estranheza” (PAZ, 1998, p. 92). O poeta barroco respirava com naturalidade no mundo da estranheza porque ele próprio era e se sabia ser estranho. Sóror Juana Inés de la Cruz foi a poeta mais representativa do Barroco, sua culminação mais visível. Por mais que grande parte da crítica do século XVII não soubesse apreender o barroco em sua grandiosidade, seus poetas o sabiam. A décima musa equipara o barroco, “associado não só a sua obra de arte poética, mas a uma expressão artística de ciência, em diversos matizes, num luxuoso monumento único, com fractais de toda ordem, do querer saber todas as coisas universais” (TABOSA, 2009, p. 54-55). Sor Juana é uma individualidade poderosa e sua obra possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a monja e a intelectual, se inserem em uma sociedade: Nova Espanha no final do século XVII, e a sua escritura foi indubitavelmente pressionada a ser limitada por estar vivendo neste período. Naturalmente, a poesia é o gênero literário preferido da monja. Nela se encontra toda a experiência política do Século de Ouro, não só do Barroco, mas também do Humanismo. Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695) foi uma monja mexicana que retratou em seus escritos a temática mítica, o culto ao conhecimento, o amor à sabedoria. A autora foi uma das poucas mulheres versadas nas letras hispanoamericanas do século XVII. Neste período, uma forma de cultura que se manifestou no mundo Ocidental e na América hispânica foi o Barroco. Para Josef (1989), esse foi o primeiro estilo da cultura ocidental moderna. Também “constituiu-se no primeiro pronunciamento de autenticidade espiritual registrado na trajetória cultural do homem americano. No grande teatro do mundo, instala-se o postulado do conflito e da transitoriedade” (JOSEF, 1989, p. 38). De acordo com a concepção barroca, no mundo, tudo é fugidio e instável. As pessoas, as coisas mudam, tudo muda. Por isso, a incerteza da vida e o temor da morte fazem da arte barroca uma arte pessimista e conflituosa. Dentre os temas que a freira aborda em sua obra, o que interessa para esta leitura é o dos seus poemas filosóficos, tomados como objetos para possibilidades analíticas com base em teorias barrocas de D’Ors (1990), Lacan (1985) e Deleuze (1991). A correlação das três

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abordagens ao barroco com a visão da fênix da América nos direciona para uma leitura complexa, pois, por meio desses poemas, é possível recompilar as convicções de uma freira do século XVII. Dessa forma, poderemos depreender o que ela expressou para os leitores de sua época e como essa aproximação aos conceitos barrocos pode influenciar os leitores contemporâneos. Em Obras completas Tomo I Lírica Personal (1951), Sor Juana contempla seus leitores com oito poemas filosófico-morais. Sua lírica pessoal é apresentada com uma maestria singular. Se há uma preocupação fundamental na obra de Sóror Juana, ela é a sede de conhecimento; o desejo de ser sujeito do conhecimento (ao invés de mero objeto). Desta feita, acreditamos que, se aproximarmos tais poemas das concepções barrocas de D’Ors (1990), Lacan (1985) e Deleuze (1991), poderemos compreender as ideias filosóficas de uma freira que escolheu o claustro de um convento para alcançar o conhecimento, que era restrito aos homens. O barroco é uma estética de alto brilho dos seiscentos que continua a perdurar em nossos dias. Isso ocorre porque a estética barroca revela os contraditórios e eternos anseios do homem de qualquer sociedade, em qualquer tempo e em todas as suas esferas: social, religiosa, política e amorosa. Há uma necessidade de se evidenciar essas questões em nosso tempo, através da escritora mexicana. Este ensaio se propõe a estudar alguns poemas de Sor Juana, à luz de concepções teóricas dos três autores citados anteriormente, para abordar tais temáticas. *** Eugênio D’Ors (1990) utiliza o vocábulo grego “eon” para designar a arte barroca. Esse termo foi bastante usado pela Escola de Alexandria. Para os estudiosos dessa Escola, “eon” “significava uma categoria que, apesar do seu carácter metafísico tinha um devir inscrito no tempo, tinha uma espécie de história” (D’ORS, 1990, p. 65). Então, o Barroco enquadra-se nesse conceito, visto que trata de ideias que perpetuam desde o surgimento do homem: todos os seus anseios, seu caráter dúbio a todo instante, a instabilidade interior, enfim, os traços barrocos fizeram parte do passado e continuarão a perpassar grande parte dos contingentes humanos. É algo que aparece e reaparece no interior do homem. “O que hoje se tenha relegado para o sótão, voltará a ocupar o trono: por baixo das cinzas respira o fogo e qualquer

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vento favorável reanimará as chamas” (D’ORS, 1990, p. 62). As inquietações vindas de uma consciência individual que se revolve desde uma perspectiva exterior e/ou interior, supostamente representam o pensamento do homem barroco. O espírito barroco escolhe a vida ao invés da eternidade; escolhe o movimento ao invés da razão. “Ou a juventude ou a imortalidade. Ou a terra tépida ou o céu frio. Ou a intensidade da hora presente, da qual se goza com paixão, ou a esperança da impassível existência futura” (D’ORS, 1990, p. 90). Quer seja na música, na pintura, na escultura, na arquitetura, na escrita, toda a sensibilidade dos caracteres barrocos são acentuados nas artes em geral e no próprio espírito barroco que firma o pacto da voluptuosidade. Esse “eon” tem atravessado os estados de alma individuais, mas também tem se aventurado no espírito coletivo. Veremos a seguir como o “eon” se desdobra nesta arte barroca: Estamos na presença de uma grade, num templo de Salamanca. Um anjo, de concepção barroca, coroa o trabalho delicadíssimo desta grade de ferro forjado. O braço do anjo está representado numa atitude singular: enquanto o antebraço se eleva como para levantar um objecto para o arvorar, a mão, contrariamente, baixa para o depositar por terra. Há aqui um paradoxo muscular, a coexistência de duas finalidades opostas num mesmo membro, de duas direcções adversas num mesmo esquema. Mas se o braço da figura obedece a uma dualidade de intenções, é porque o espírito que o dirige é um espírito num estado de ruptura interior, um espírito partido, que encerra em si uma oposição (D’ORS, 1990, p. 94-95).

Vimos que o barroquismo esteve presente desde os primórdios da humanidade e que ainda ecoa na contemporaneidade, mas como o será posteriormente? “No que se refere ao futuro longínquo, [...] já fica pré-julgada a sua imortalidade, paralela à do seu antagonista, o Classicismo; e adivinha-se o seu jogo alternativo na cultura vindoura...” (D’ORS, 1990, p. 113). Sendo assim, esse espírito de dispersão, que é o Barroco, revela claramente essa invocação de um precedente e de um porvir, traduzindo-se sempre em formas distintas, não necessitando copiar ou aderir a correntes anteriores, mas renovando-se paulatinamente na vida interior dos indivíduos, em todas as épocas. No poema 145 de Obras completas de Sor Juana Inés de la Cruz I Lírica Personal (1951), podemos notar esse desengano do homem barroco: Este que ves, engaño colorido, que del arte ostentando los primores, con falsos silogismos de colores, es cauteloso engaño del sentido;

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éste en quien la lisonja ha pretendido excusar de los años los horrores, y, venciendo del tiempo los rigores triunfar de la vejez y del olvido, es un vano artificio del cuidado, es una flor al viento delicada, es un resguardo inútil para el hado: es una necia diligencia errada, es un afán caduco y, bien mirado, es cadáver, es polvo, es sombra, es nada. No geral, todo o poema pretende transmitir a ideia de que não devemos atentar para os sentidos, que a realidade pode ser outra, mas disfarçada. Este engano, que, com habilidade se inscreve no soneto, com razões falsas cintilantes, realmente é um discreto engano dos nossos sentidos. Com disfarce, se pretende ocultar ou fazer com que se esqueça o que o tempo provocou (como a velhice). A imagem que se quer passar é de uma falsa imortalidade, insistente em esconder todos os traços que o tempo se encarregou de desgastar. Este é o desengano tão pregado pelas ideias barrocas, é o “eon” do ser humano. Ao fim da vida, o homem percebe tudo como pó, reduz-se ao nada, por isso é ilustrado como um desengano colorido, “maquiado”. Podemos inferir que este engano colorido pode se tratar da arte, do retrato em si, de como as imagens artísticas podem ser artificiais. A realidade é díspar das aparências, do exterior. Isso representa o homem barroco, que procura ocultar suas intenções a todo instante. Querendo fazer algo de bom ou ruim e pensando o oposto. Quem pode notar o disfarce? Assim como numa pintura, onde o espectador percebe apenas a superficialidade da imagem, assim é o homem transtornado do barroco: permite enganar a si para não enfrentar a difícil realidade. De fato, as ações contraditórias revelam claramente as ideias dúbias que o barroco manifesta. No soneto, é retratada uma flor ao vento. Pode-se acrescentar aqui a fragilidade e fugacidade da vida, às quais todo ser humano está “predestinado”. A lisonja que põe em movimento o quadro é um artifício, isto é, um resguardo que pretende ser “eterno” e termina sendo um engano. A arte é uma “ostentação”, vocábulo reforçado por “este” e pelo verbo “vês”, e que conferem ao soneto uma natureza elíptica: a

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palavra retrato nunca se menciona em todo o poema. A voz poética passa do “mostrar” o retrato até a constatação de sua existência: o “é” do quadro que versos depois será cadáver, pó, sombra e nada. Esplêndida gradação que conduz ao início do soneto. Frente à fugacidade das coisas do mundo e de sua enganosa aparência, o único ser vivo (passageiro, frágil), no meio de tantos conceitos do poema, é a flor. *** O corpo, com seus movimentos, basta a si só. O corpo é tomado pelo que representa ser. “Quem não vê que a alma não é outra coisa senão a identidade suposta a esse corpo, com tudo o que se pensa para explicá-lo? Em suma, a alma é o que se pensa a propósito do corpo [...]” (LACAN, 1985, p. 150). Para Lacan (1985), um exemplo disso é o cristianismo. Cristo afirmou ser o Filho do homem. Que importância teria para os cristãos o fato de Cristo ter uma alma? Mesmo tendo ressuscitado, o seu corpo representa muito bem a importância da comunicação para com a sua noiva, a igreja. E nisso não consiste a necessidade de copulação, quando se busca o gozo branco. Isso não se refere à relação sexual em si. Sobre isso, o autor expressa: De tudo que se desenrolou dos efeitos do cristianismo, principalmente na arte – é nisto que encontro o barroquismo com o qual aceito ser vestido – tudo é exibição de corpo evocando o gozo – creiam no testemunho de alguém que retorna de uma orgia de igrejas na Itália. Quase chegando à cópula. Se ela não se apresenta não é para inglês ver. Ela está tão por fora quanto na realidade humana, a qual entretanto ela sustenta com as fantasias de que é constituída (LACAN, 1985, p. 154).

Esse gozo branco trata-se do ínfimo prazer que se tem ao contemplar as voluptuosidades barrocas, estas demonstradas pelas marcas de estranhamento e ao mesmo tempo de grandiosidade, na qual o indivíduo consegue transcender a um estado de alma oposto ao que sua consciência possa abstrair. Então, é aqui onde é manifesto o gozo do inconsciente. Aquele estado de espírito em que o próprio corpo desconhece por estar vestido da racionalidade presente naquilo que lhe é palpável. Para esse autor, “o barroco é a regulação da alma pela escopia corporal” (LACAN, 1985, p. 158). O poema 148 de Obras completas de Sor

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Juana Inés de la Cruz I Lírica Personal (1951) revela esse gozo que o ser humano busca por meio de sua própria consciência: Miró Celia una rosa que en el prado ostentaba feliz la pompa vana y con afeites de carmín y grana bañaba alegre el rostro delicado; y dijo: - Goza, sin temor del Hado, el curso breve de tu edad lozana, pues no podrá la muerte de mañana quitarte lo que hubieres hoy gozado; y aunque llega la muerte pressurosa y tu fragante vida se te aleja, no sientas el morir tan bella y moza: mira que la experiencia te aconseja que es fortuna morirte siendo hermosa y no ver el ultraje de ser vieja. A rosa é símbolo por excelência da beleza, mas também simboliza a brevidade da vida. A rosa causa um sentimento de desengano que arrasta paradoxalmente ao carpe-diem tão difundido em nossos dias e, juntamente com isso, surge o desejo de renúncia aos prazeres. Com o arrependimento e a contrição de espírito, o homem (Celia) volta para Deus, para os valores espirituais. As atitudes correlacionadas a esse sentimento exprimem a transitoriedade de certos valores de natureza física, como a beleza e a formosura. Também leva em consideração a fugacidade enganosa da vida, a ambição humana, em que entram frequentemente certos motivos, símbolos ou termos de comparação como flores, ruínas, dentre outros. Celia vê uma rosa e escolhe o mesmo destino da fina flor: o gozo do presente, para ela é mais importante morrer jovem e feliz do que alcançar a velhice cheia de sofrimento. Essa transcendência do estado de alma é o que Lacan destaca em seus conceitos. É preciso transcender a consciência para alcançar o gozo tão esperado. A rosa de Celia tinha uma cor primaveril, símbolo da beleza da juventude. O gozo é necessário para que esses anos da tenra idade se passem de forma mais aprazível possível. Poderíamos deduzir que Célia é Juana de

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Asbaje. Seria ousado dizer que essa jovem desfrutasse de sua juventude, pois aos 16 anos de idade já estava no convento, então não podia desfrutar de sua beleza dentro de um claustro. Este soneto representa duas vozes poéticas, uma que é sujeito da enunciação em primeiro grau, e outra (a de Celia) que é o sujeito da enunciação em segunda instância. A novidade no soneto é que a primeira voz situa ao leitor frente ao mesmo instante (sincronia) em que se produz o discurso. A rosa como símbolo da fragilidade, que é favorecida pelo vento, acaba dialogando com o tormentoso destino a que todos chegam: a vaidade. Sendo assim, a rosa é favorecida pela mocidade como se se tratasse de aproveitar os bons tempos e ventos. Contrapondo-se, está a ligeireza desse tempo que passa causando uma instabilidade interior e exterior, visto se tratar de algo criado pela natureza e que tem o seu fim inevitável. *** Inúmeras concepções equivocadas pintaram o Barroco de forma errônea. Muitas escolas e tendências procuraram explicar, mas o Barroco é o movimento que logrou representar o universo interior que acolhe e, ao mesmo tempo, subjuga o ser humano. O soberano prazer, o prazer Barroco está em subscrever delgadamente os contrários, em degustar o dilemático. Por conseguinte, a afeição de Juana de Asbaje pela antítese, recurso estilístico dominante em seus escritos, aponta para a grande maestria da freira intelectual. Dito de outra forma, as ideias contidas em sua escrita mostram claramente que esse jogo bivalente se apresenta para ser lido e decifrado. Dessa forma, cabe aqui mencionar que o indivíduo/leitor tem dobras distintas dos outros. Deleuze explica isso: Duas almas não têm a mesma ordem, mas tampouco têm a mesma sequência, a mesma região clara ou iluminada. Dir-se-á mesmo que, uma vez que a alma está repleta de dobras ao infinito, ela pode, todavia, desdobrar um pequeno número delas no interior dela própria, aquelas que constituem seu departamento ou seu bairro. Não é ainda o caso de ver nisso uma definição da individuação: se só existem indivíduos, não é porque eles incluem a série em certa ordem e de acordo com tal região. É o inverso disso. [...] basta mostrar que há necessariamente uma infinidade de almas e uma infinidade de pontos de vista, embora cada alma inclua e cada ponto de vista apreenda a série infinitamente infinda (DELEUZE, 1991, p. 44).

Deleuze (1991) ainda acrescenta que o Barroco se interessa, então, pelo que está dentro – penetrando pela fachada-exterior: cela, claustro, igreja, para disso poder extrair toda a

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glória. Visto que todas as ações são internas. O que está dentro é o que move as curvas, dobras ou desdobras e onde se pode adquirir maior esplendor, o esplendor da descoberta do conhecimento. Isso pode ser atribuído às diversas artes, em especial à arquitetura, que abarca essa ideia do exagerado por fora e do calmo e simples por dentro. Deleuze (1991) subscreve que embora um compartimento seja metafísico (alma) e o outro seja físico (corpo), isso não impede que sejam parte de uma mesma casa. O que é propriamente barroco é a diferença dos dois andares. Se observarmos os conflitos que o indivíduo passa constantemente, é notável também essa distinção entre o querer fazer e o pensar. Diversas vezes, somos tendenciosos a querer separá-los, porém, são indissolúveis. O poema 146 de Obras completas de Sor Juana Inés de la Cruz I Lírica Personal (1951) dialoga com esses conflitos enfrentados pelo ser humano, de como esse desejo do homem de querer ser liberto da superficialidade da sociedade o oprime internamente: EN PERSEGUIRME , Mundo, que interesas? En que te ofendo, cuando sólo intento poner bellezas en mi entendimento y no mi entendimiento en las bellezas? Yo no estimo tesoros ni riquezas; y así, siempre me causa más contento poner riquezas en mi pensamento que no mi pensamiento en las riquezas. Y no estimo hermosura que, vencida, es despojo civil de las edades ni riqueza me agrada fementida, teniendo por mejor, en mis verdades consumir vanidades de la vida que consumir la vida en vanidades. Todas as ações são internas, assim como a casa que Deleuze descreve. Neste poema a freira expressa como é difícil ser mulher neste espaço, então ela se queixa da falta de compreensão e defende sua paixão pelo conhecimento e seu entusiasmo pelos estudos. Para ela, a maior riqueza é o próprio conhecimento, e que o resto é vaidade. Não convém direcionar os esforços em coisas, mas naquilo que perdura, isto é, na sabedoria. A busca pelas vãs

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conquistas materiais não trazem satisfação para essa intelectual. Os ornamentos femininos, as roupas distintas, as joias que embelezam as donzelas, nada disso têm valor para alguém que busca o primor e a delicadeza da beleza interior. O tempo, precioso, é ocupado com a nobreza do conhecimento que sobrepõe qualquer artifício físico. Em suma, o conhecimento aformoseia mais do que a beleza física. Nestes versos, vemos certo orgulho, uma profunda ironia e certo sarcasmo. Mas é importante destacar que em um século de poetas uma excelente poetisa se vê obrigada a escrever soneto tão medíocre para declarar publicamente que nada em seu mundo interior difere de um conceito da realidade firmemente estabelecida. Ela é perseguida por ser mulher e por ser monja, por isso não podemos temer que esta mulher do século XVII nos revele um mundo poético que seja diferente no substancial dos autores peninsulares que conhece muito bem. O poema 147 de Obras completas de Sor Juana Inés de la Cruz I Lírica Personal (1951) expressa poeticamente a dubiedade que é inerente à alma humana: a eterna contradição daquilo que surge para logo em seguida morrer. Eis o retrato da futilidade da aparência: Rosa divina que em gentil cultura eres, con tu fragante sutileza, magisterio purpúreo en la beleza, enseñanza nevada a la hermosura. Amago de la humana arquitectura, ejemplo de la vana gentileza, en cuyo sér unió naturaliza la cuna alegre y triste sepultura. ¡Cuán altiva en tu pompa, presumida, soberbia, el riesgo de morir desdeñas, y luego desmayada y encogida de tu caduco sér das mustias señas, con que con docta muerte y necia vida, viviendo engañas y muriendo enseñas! As rosas possuem uma beleza incontestável, mas que se depaupera com puco passar de tempo. O poema é como uma repreensão à rosa, e, por meio disto, às pessoas que a rosa

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representa. Trata-se de um símbolo para os humanos, os quais são fúteis e orgulhosos de sua formosura. Mas, semelhantemente, como a rosa se finda e morre, os humanos também têm seu período limite nesse mundo. Nesse caso, a rosa pode ensinar às pessoas que a vida e a beleza não duram para sempre. Nestes versos, a artista se dirigem aos que se agarram fortemente ao passageiro, sendo ela uma mulher de mente aberta, apesar de ser monja. Passa a escrever sem se importar com o tema, visto que as freiras, nesse tempo, eram proibidas de escrever poemas relacionados ao amor e ao sarcasmo. Talvez, neste soneto, a Décima musa dá a conhecer suas alegrias ou, de repente, suas tristezas, por meio do grandioso encanto das rosas, nas quais se encerra um mistério, já que a rosa, apesar de seu encanto, pode ser traída pelas armadilhas de seus muitos espinhos. Ao analisar este fato, podemos inserir que este é um poema que também evidencia a beleza feminina. Através de uma rosa, ressalta a divindade da mulher. O último terceto expõe as correspondências entre as dicotomias vida/morte e engano/ensino: “vivendo enganas e morrendo ensinas”. A beleza da rosa é sofisma: uma aparência. E a aparência é a origem de uma reflexão em dois sentidos: em tanto reflexo ou ilusão, isto é, na medida em que supõe uma imagem que “reflete” e “imita” imperfeitamente a essência divina. E no quanto inspira na voz poética uma série de reflexões em torno da fugacidade da beleza. Em outras palavras, o soneto nasce a partir da verbalização da ilusão e das inserções filosóficas do eu-lírico. A reflexão se bifurca: “o berço alegre e triste sepultura”. Esta assimetria conceitual (o binômio morte/vida) torna os versos análogos à vida, berço e sepulcro são leitos onde os homens repousam o nascer e o morrer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio de uma breve constatação das diferentes correntes e/ou temas presentes na escrita da Décima Musa, é possível justificar o crescente interesse crítico e artístico por esta brilhante poeta e pensadora. Novos espaços para o aprofundamento do conhecimento de sua obra e de seu mundo assim como para sua consagração como ícone cultural têm sido abertos.

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Depois de haver logrado interesse e admiração de um amplo público ao longo do século XVII, as obras da freira caem no esquecimento. Durante grande parte dos dois séculos posteriores à sua morte houve a caricaturização de seus escritos, sem outra razão a não ser o desconhecimento de seus textos. A visão negativa da monja mexicana é produto da aversão generalizada ao barroco, que predomina nestes séculos, a qual é um legado iluminista. Sor Juana Inés de la Cruz foi menosprezada por sua valentia diante dos problemas da sua época, mas foi reconhecida merecidamente no século passado, e hoje é considerada uma das mentes mais brilhantes que o continente produziu. Os três poemas analisados neste ensaio denotam a maestria de suas palavras, que são demasiadamente contemporâneas. Em consonância com os três teóricos, fica evidenciado que os conceitos barrocos exprimem a vala que existe no ser humano, é um “eon” para as gerações subsequentes. A inconstância do espírito, a amplidão do desengano, o contraste, a incongruência, o sentido dilemático, estes temas ainda perpassarão por muitos estudiosos, visto que se trata das dobras que a vida dá.

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REFERÊNCIAS CRUZ, Sor Juana Inés de la. Obras completas. I. Lírica personal. ed. pról. y notas de Alfonso Méndez Plancarte. México: FCE, IMC, 1951. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. São Paulo: Papirus, 1991. DOR’S, Eugênio. O barroco. Tradução Luiz Alves da Costa. Lisboa: Veja, 1990. JOSEF, Bella Karacuchansky. Barroco. In: ____. História da literatura hispano-americana. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989. Cap. 2. LACAN, Jacques. O seminário: Livro 20: mais ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. PAZ, Octavio. Sóror Juana Inés de la Cruz: As armadilhas da fé. São Paulo: Mandarim, 1998. TABOSA, Leila Maria de Araújo. Barroco: Volutas conceituais. In: ____. O barroco hispanoamericano: Primero sueño ou Sor Juana Inés de La Cruz. Natal: UFRN, 2009, p. 53-59.


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APONTAMENTOS SOBRE A ESTÉTICA BARROCA EM FRANKENSTEIN: O SAGRADO E O PROFANO; A CIÊNCIA E A FÉ.48 Jônatas Andrade de Oliveira (CEEL – UERN) Orientadora: Profᵃ. Drᵃ Leila Maria de Araújo Tabosa (FALA – UERN)

Este trabalho é resultado de exercício de leitura propiciado pela disciplina Discurso Literário: especificidades e análises, ministrada durante o terceiro semestre do curso de Especialização em Estudos Literários oferecido pela Faculdade de Letras e Artes - FALA/UERN. Ao término das aulas, faltava um objeto que fizesse jus aos direcionamentos requeridos para a elaboração do trabalho final exigido pela cadeira acadêmica. Desse modo, além dos estudos sobre a estética barroca, possibilitados pela disciplina de discurso literário, surgiu, no contexto de outra disciplina, ainda em curso e do mesmo semestre, Tópicos de Literatura Ocidental, uma tríade composta por leitura, interpretação e apresentação da obra literária Frankenstein – ou o moderno prometeu49, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft Shelley. O livro escrito quando Wollstonecraft mal tinha escapado de seu período mais jovial, é um romance gótico gestado em uma conversa informal entre três pessoas; duas delas, amantes. Mary, com seus dezoito anos, Percy Bysshe Shelley, marido de Mary e poeta, e

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Ensaio realizado durante o curso da disciplina de especialização em Estudos Literários: Discurso Literário, ministrada pela professora Drᵃ Leila Maria de Araújo Tabosa, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN – FALA), durante o semestre letivo 2014.2. 49 O Titã Prometeu roubou dos deuses o segredo do fogo e o revelou aos homens. Zeus castigou-o, mandando Hefaístos acorrentá-lo a uma montanha no Cáucaso, onde uma águia devorava continuamente seu fígado. Como castigo aos homens, os deuses criaram a mulher: Pandora – presente de todos os deuses –, com uma caixa que, aberta, espalhou entre os homens todos os sofrimentos. Prometeu foi depois libertado por Hércules. Desse modo, o jovem médico Frankenstein fora amaldiçoado com a latente angústia que sempre o revisitará de tempos em tempos tal qual a águia (a criatura) que devorará o fígado do titã Prometeu, em punição aos seus feitos para com os homens. A criatura, portanto, estará sempre presente promovendo-lhe novos revezes. Tira-lhe a esperança de concluir de maneira efetiva o experimento de sua vida; depois, assassina uma mulher que há anos era próxima da família Frankenstein; então, assassina o irmão mais jovem do jovem médico; e, por fim, tira-lhe seu grande amor: Elizabeth. Os sofrimentos trazidos pela criatura estão sempre voltando, sempre a punir o seu criador/pai. O filho “pródigo” sempre retornaria. Todavia, diferente do titã libertado por Hefaístos, Frankenstein não tornou-se detentor de tamanha sorte. Cada retorno do filho lhe deixava mais próximo de sua própria sepultura. Por isso, Frankenstein é o moderno Prometeu, ele representa os novos direcionamentos impostos pela reintrodução do mito.

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George Gordon Noel Byron50, o Lord Byron, até então, figura mais conhecida dos três. Certo dia, e a própria Mary narra tal fato na introdução da terceira edição de Frankenstein (1831), os três sentaram-se perante uma lareira de uma casa de campo dos Shelleys e resolveram contar historietas de horror alemãs. Em determinado momento, uma aposta surgiu entre os três: que a partir de elementos similares captados na essência dessas histórias ouvidas e contadas pelos três, cada um criasse uma obra que pudesse se encaixar em um padrão similar ao que foi apresentado naquela noite. Dos três, apenas Mary terminaria sua história, dando origem ao romance que aqui está se tratando e tratado ainda será. Percy e Byron resolveram sair para escalar as gélidas montanhas e alpes suíços que lhes avizinhavam. Lord Byron, mesmo não tendo terminado sua historieta, daria origem aos primeiros escritos sobre o que, posteriormente, viria a se tornar a figura mitológica do vampiro, que apenas com outro inglês, Bram Stoker, veio a se popularizar de verdade a partir da ficcionalização da história de vida do Conde Vlad Tepes, também universalmente conhecido pela brutal nomenclatura que adquiriu em tempos de guerra: Vlad, o Empalador – referência ao ato que o romeno possuía de empalar os corpos dos seus inimigos mortos em lanças e objetos pontudos espalhados pelos campos de batalha. Desse modo, será que é possível (ou ligeiramente cabível), então, dizer que nenhuma obra é original? Que nos deparamos apenas com as cópias das cópias dos originais já criados e estabelecidos? E se nenhuma obra for original, nenhum escrito tenderá a ser? Não necessariamente. Em todo caso, haverá sempre a linha do tempo da história para separar as cópias, os pioneirismos, as homenagens, os plágios etc. E em se tratando do pioneirismo literário e criativo, atestamos sempre, mesmo que nos deparando com arroubos de originalidade, com representações, analogias, simbolismos e metáforas do que já existe préprodução dos escritos. Os enredos, todavia, podem, estes sim, possuírem traços de originalidade, talvez até na forma como se conta o enredo. Mas, mesmo assim, há sempre alguém ou algo que veio antes. Há referências e referenciais que já percorreram aquele

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Lord Byron nasceu em 22 de janeiro de 1788, em Londres. Foi um dos principais poetas ultra-românticos. Sua obra, que passeava entre poesia, sátiras e folhetins, e sempre com muito cinismo e pessimismo, criou, juntamente com sua mirabolante vida, uma legião de jovens poetas byronianos por todo o mundo. Tendo influenciado, inclusive, escritores brasileiros, como Álvares de Azevedo. Fonte: Spectrum, Spectrum Gothic, www.spectrumgothic.com.br/literatura/autores/byron.htm (acesso em 17 de janeiro de 2015).

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caminho que o(a) autor(a) está desejando percorrer. Existem escolas, vertentes, estéticas, períodos e contadores(as) que já serviram e servem como obras, casos e motes inspiracionais para os(as) que pretendem copiar estilo (prestando ou não homenagens), emular as ideias ou melhorar o que já foi feito incluindo-se aí, todo um novo referencial literário. Portanto, independente do que intencionava Mary Wollstonecraft Shelley quando da produção de seu mais conhecido romance, Frankenstein – ou o moderno prometeu (que, por uma licença gramatical com fins a tornar este artigo mais elegante e menos repetitivo, a partir deste momento, passará a ser alcunhado apenas por Frankenstein, tal como fora feito com o próprio romance nos tempos subsequentes ao seu lançamento e a exibição nos cinemas da obra cinematográfica dos anos trinta do século vinte), é perceptível que a obra está imbuída de elementos que nos permitem dizer que os mesmos compõem temas que são oriundos da estética barroca. Tais temas, no entendimento dos escritos até então produzidos, podem ser materializados nas formas como se constituem as personagens do romance. Temos uma batalha não necessariamente declarada (mas intensa e que vai às vias de fato) entre a fé e a ciência, a humanidade e a pós-humanidade, o bem e o mal – e este último binômio, por exemplo, é ainda cíclico, visto que as personagens principais, a criatura e seu criador, não estão ligados unicamente apenas ao bem ou o mal. E mais: o belo e o grotesco, o fim e o início. A própria criatura, que não ousarei alcunhá-la de monstro, já que não a considero como tal, em sua remendada face, possui colagens que lembram fractais, elementos visuais do barroco. E, para este artigo, há de se ir além: neobarroco. Com ele, que “reflete estruturalmente uma discordância: a ruptura da homogeneidade” (SARDUY, 1989, p. 96), será possível entender as contradições trazidas e advindas pela fuga dessa homogeneidade representada pela figura da criatura “produzida” por Victor Frankenstein. Oposto aos padrões não apenas exigidos, mas minimamente esperados pela sociedade europeia retratada no romance, a criatura já nasce conhecendo os sofrimentos de ser um não-ser aos olhos de qualquer um que lhe passe os olhos. Até seu fim corpóreo e o derradeiro encerramento do romance, a Criação carregará seu devir-sombrio.

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PROFANANDO O SAGRADO, SANTIFICANDO O PROFANO.

O espaçotempo onde ocorre a trama do livro e os conflitos que permeiam os arcos das personagens principais, que aqui, mediante a necessidade de afunilar esta pesquisa, serão trabalhados apenas as personagens centrais da trama – o estudante e aspirante ao título de medicina Victor Frankenstein (ele que, em suas desventuras, torna-se o profanador dos ritos e costumes sagrados) e sua Criação (embora detentor do asco alheio, acaba por santificar o que é tido como profano) –, as aproximam de considerações e entendimentos barrocos sobre o que tal estilo define como pressupostos elementares de sua própria constituição. Ou seja, a provocação entre os extremos das coisas. No caso deste ponto, os extremos serão entre o sagrado e o profano a partir de Frankenstein: Frankenstein é uma metáfora das contradições de seu tempo, em especial do conflito romântico com o racionalismo iluminista. Um conflito que pode ser lido como uma versão moderna do antagonismo entre Dioniso e Apolo, respectivamente. O cientista personifica o anseio iluminista de substituir Deus alcançando a condição de imortal senhor da natureza pelo saber científico, predominantemente apolíneo. Já a criatura, seu duplo antagônico, encarna a beleza bizarra e o descomedimento dionisíaco, tão caro ao Romantismo, além de representar o bon sauvage corrompido pela sociedade – uma figura idealizada e recorrente na literatura romântica, desde Rousseau (MATTOS, 2010, p. 20).

Como bem foi observado no excerto acima, essas contradições entre os pontos alternantes da obra – o jovem médico e sua criação, entre o sagrado e o profano e o ir além do ciclo da vida, fazendo-a estender-se mais um pouco, trapaceando sobre a morte – são presentes em todo contexto da obra do moderno Prometeu. As personagens, seus dramas e suas tramas estão sempre em desacordo e, na medida em que a história vai avançando, as personagens vão entrando em combates filosóficos, de cunhos espirituais, estéticos e físicos. Ora temos os conflitos homem versus homem (Victor Frankenstein e suas crises ou desavenças com a família e amigos com fins de realizar seu grande sonho científico), ora temos os conflitos homem versus sociedade (a criatura sendo constantemente banida da sociedade que não a aceita devido ao rosto cicatrizado, sua força descomunal e sua incapacidade de se comunicar em seu período pós-gestatório); ora homem versus o pós-

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humanismo (o embate físico, emocional, psicológico e emocional entre o médico e o “monstro”). O ser criado e o ser criador, a ciência e a fé, o belo e o grotesco, o natural e o orgânico, a humanidade e a “monstruosidade”, o fim e o início... Não à toa e por respeito à fidelidade construtiva do romance, não seria justo denominar a Criação (ou criatura) como monstro. As aspas se fazem necessárias sempre quando da utilização do termo monstro para designar a figura que, ao lado de Victor, protagoniza a obra. Ora, o próprio Victor, a tomar por seus atos e pensamentos, também não seria uma figura monstruosa? Ou, ao menos, alguém capaz de agir, sim, quando bem lhe entende, monstruosamente? E a Criação – e não à toa trazemos Rousseau (1995, p. 67), para lembrar que “a sociedade fez o homem mais fraco, não somente lhe tirando o direito sobre suas forças, como também as tornando insuficientes. Eis porque seus desejos se multiplicam com sua fraqueza” –, possui seus desdobramentos mais humanos. Ou menos animalescos, em contradição ao que a própria sociedade presente no tempoespaço do livro esperava ao se defrontar com o ser criado.

152 É num cenário isolado que Victor Frankenstein, o cientista, começa a criação do monstro, e, portanto, inicia sua via-crúcis, que só irá terminar com a destruição do criador e da criatura. No entanto, a força trágica que move o romance não se liga mais ao mundo espiritual, mas sim à psique do protagonista e à sociedade que o cerca. O móvel do romance é, então, a incomensurável ansiedade de conhecimento de Victor. Além disso, há a ligação óbvia entre a rejeição de sua própria criação — o monstro não pode deixar de ser considerado seu filho — e as maldades cometidas pela criatura. Mas não é só Victor que a rejeita, mas também a sociedade, já que todos fogem diante da sua feiura, e, mesmo ela lhes sendo absolutamente inofensiva, tentam atacá-la (ROCQUE; TEIXEIRA, 2001, p. 13-14).

A criatura, ao nascer, ainda não é o arauto que virá a ser no andamento da obra. No romance, em determinado momento, já imbuído de sua curiosidade pela ciência e seu instinto desbravador pelo alcance do “elixir da vida” e a “pedra filosofal”, percebe e se dá conta, através das experiências que pretende fazer, que pode transpor a ordem natural da vida: nascimento, desenvolvimento e morte. Não poderá evitar a morte, mas dar ao morto, uma sobrevida. Assim, Victor, um outrora estudante, apaixonado por sua meia-irmã, bom filho e amigo, resolve profanar túmulos, depósitos sacros fechados onde despedidas religiosas antecederam o ato profanar do estudante.


Victor Frankenstein, um egocêntrico e ambicioso estudante de alquimia e medicina, consegue, através do galvanismo, dar vida a um ser gigantesco (2,40m de altura), formado por membros de diferentes cadáveres. Ao se defrontar com sua bem sucedida experiência, o cientista foge apavorado, abandonando a sua criatura, que passa, então, a vagar a esmo. O pobre ser, apesar da medonha aparência, só possui bons sentimentos, mas, à medida que se aproxima dos seres humanos com o intuito de ajudá-los, é violentamente rechaçado. Isso o leva a declarar guerra a toda espécie humana e, em especial, ao seu criador, que o lançara naquela “insuportável desgraça” nas palavras do monstro (MATTOS, 2010, p. 16-17).

Tendo trazido à vida (ou gerado vida a partir do post-mortem de outros), Frankenstein acaba por gestar um filho inculto, não detentor do amor paterno já de antemão; relegado ao abandono, ao escracho e não mais desejado mesmo após tamanho esforço. A criatura, ou criação, apenas vaga sem saber orientar-se sobre quem é, de onde veio, onde estaria seu(sua) protetor(a). É um escanteado. É um outsider de primeira estirpe. O resultado de suas primeiras andanças nos guetos e vielas nos quais acaba por aportar pode ser reinterpretado a partir do pensamento de rousseauniano: Embora errando pela sociedade, ignora-lhe absolutamente as maneiras; não é por isso nem tímido nem temeroso; se se afasta não é por embaraço, é porque, para bem ver, cumpre não ser visto. O que pensam dele não o inquieta e o ridículo não lhe causa medo. Estando sempre tranquilo e de sangue frio, não se perturba com falsa vergonha. Que o observem ou não, faz sempre, como mais bem pode, tudo o que faz; e, sempre compenetrado em observar os outros, aprende as maneiras deles com uma desenvoltura que não podem ter os escravos da opinião. Pode-se dizer que ele tanto mais se ajeita aos usos da sociedade quanto menos caso faz deles (ROUSSEAU, 1995, p. 399).

Ora, o próprio inventor faz questão não apenas de abandonar e não cobrir o “filho” com os esperados e normais gestos afetivos, como ainda possui as certezas que seu feito foi em vão, que tudo aquilo para o qual tanto estudou foi desfeito no momento seguinte ao nascimento da Criação, como será possível atentar neste trecho: Foi numa terrível noite de novembro que vi meu árduo trabalho chegar ao fim. Com uma ansiedade que beira a agonia, reuni ao meu redor os instrumentos necessários, de modo a poder infundir uma centelha de vida ao ser inanimado que jazia a meus pés. Já era uma hora da manhã; a chuva tamborilava lúgubre nas vidraças e minha vela já quase se havia extinguido quando à luz bruxuleante já meio consumida, vi os olhos amarelos e opacos da criatura se abrirem; inspirou com força, e um movimento convulsivo agitou-lhe os membros. Como posso exprimir minhas emoções diante dessa catástrofe, ou descrever o ser miserável que eu lograra forma através de sofrimentos e cuidados infinitos? Seus membros eram proporcionais, e eu escolhera belos traços para seu rosto. Belos! Meu

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Deus! Sua pele amarela mal cobria a trama de músculos e artérias; seus cabelos, de um negro lustroso, eram abundantes; seus dentes, de uma brancura perolada. Esses caprichos só faziam criar um contraste ainda mais horrendo com seus olhos úmidos – que pareciam ter quase a mesma cor das órbitas, de um branco sombrio, em que se encaixavam –, com sua compleição murcha e com seus lábios retilíneos e negros (SHELLEY, 1818, p. 70).

Victor, então, dedica-se inteiramente ao projeto. Família, amigos e Elizabeth, sua meia-irmã por quem nutre uma paixão, todos, ficam em segundo plano. A possibilidade cada vez mais tangente de vê-lo acontecer, o leva até uma fronteira por ele mesmo desconhecida, onde Shelley pontua sempre sobre as dúvidas e incertezas que Frankenstein possui sobre tudo aquilo que está prestes a realizar, hora confiante do seu sucesso devido ao tempo dedicado e aos estudos feitos, hora temeroso por um fracasso mediado pela força da sua realização: “Quando me dei conta de que tinha nas mãos um poder tão assombroso, hesitei durante muito tempo acerca da forma como deveria utilizá-lo” (1818, p. 66). Assim, em um astuto lance de páginas, a autora conduz Victor do sublime51 ao grotesco a partir dos momentos anteriores e os conseguintes ao tempo onde sua iniciativa obtém (in)sucesso: Os diversos incidentes da vida não são instáveis quantos os sentimentos humanos. Eu trabalhara arduamente durante quase dois anos, com o único objetivo de dar vida a um corpo inanimado. [...] agora, porém, que havia terminado, a beleza do sonho desapareceu: meu coração se encheu de desgosto e senti um horror de tirar o fôlego (SHELLEY, 1818, p. 70-71).

Como criador e criatura assemelham-se nos seus incultos desesperos sobre o rumo a ser tomado pós o choque do parto/invenção, de tal forma que a narrativa divida-se entre ambos, cada qual narrando sua jornada pós o fatídico acontecimento, é preciso que se contextualize não apenas o grotesco vivido por Frankenstein, mas o grotesco na epiderme da Criação, cujos traços a fazem ser banida e julgada no momento inicial de sua saída às ruas. Baseado no que até então foi apresentado, agora, observemos um excerto da obra que narra o momento em que a criatura percebe-se viva, mas sem direcionamentos sobre o que é, o que fazer, aonde ir e etc:

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O sublime é “aquilo que desafia a compreensão racional invocando uma mistura de prazer e terror no espectador” (BURKE apud DERY, 1999, p. 160).

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É com dificuldade considerável que lembro da época em que comecei a existir; todos os eventos do período estão confusos e indistintos. Uma estranha multiplicidade de sentimentos apoderara-se de mim, e eu via, sentia, ouvia, distinguia aromas ao mesmo tempo; de fato, só depois de muito tempo aprendi a distinguir entre as operações de meus vários sentidos. Gradativamente, recordo-me, uma luz mais forte pressionava meus nervos, e eu era obrigado a fechar os olhos. A escuridão descia então sobre mim e me perturbava, mas eu mal a assimilara quando, ao abrir os olhos, como agora suponho, a luz mais uma vez se derramava sobre mim. Creio que caminhava num declive, mas logo senti uma grande alteração em minhas sensações. Antes, corpos escuros e opacos me cercavam, inacessíveis a meu tato e a minha visão; agora, porém, eu descobria que podia andar livremente, sem obstáculos que não pudesse ultrapassar ou evitar. A luz tornava-se mais e mais opressiva a meus olhos, e, como o calor me deixava esgotado enquanto eu caminhava, procurei um lugar onde pudesse encontrar sombra. Tratava-se da floresta perto Ingolstadt; lá, deitei-me junto a um córrego e descansei, até que me senti afligido pela fome e pela sede (SHELLEY, 1818, p. 112).

Sua constituição corporal, repleta de partes de outros corpos sem vida, é remendada e costurada por Victor no intuito da criação de um novo ser, pós-humano. Essa criatura, fractalizada, cicatrizada e costurada, remonta à estética barroca. Há muitas curvas em suas colagens faciais e corporais, a vida encontrou a morte e, depois, a morte encontrou a sobrevida. Victor perpassa e profana o caminho natural (ou sagrado, a depender da religião que se segue e acredita) do ser para o seu bel-prazer. Ele se satisfaz, entretanto, e como visto mais acima, apenas até o momento em que percebe ao que deu (sobre)vida. Após perceber até onde foi com seus experimentos, resolve abandonar e deixar tudo de lado, voltando para a vida que havia deixado para trás. Nada mais barroco poderia existir que não fossem os embates intrínsecos e que chegam às vias de fato entre a criatura, quase um anti-herói romântico: passional e de reações passionais; opostas ao racionalismo científico representado pelo seu criador, Frankenstein. Mary Wollstonecraft Shelley criou, na altura de seus poucos anos, um romance multifacetado: o moderno Prometeu é um romance gótico, considerado uma das primeiras ficções científicas e uma história de horror sobrenatural, pós-humana e repleta de alegorias. Percebeu-se que há elementos na figura da Criação, o “filho” de Frankenstein, assim como em Victor Frankenstein, o médico, que são alegorias à questão barroca. As personagens possuem traços psicológicos (Victor) e físicos (a criatura) que denotam essa presença barroca na constituição e formatação de suas personas.

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REFERÊNCIAS

DERY, Mark. The pyrothenic insanitarium. American culture on the brink. NY: Groove Press, 1999. MATTOS, Marília. Humanóides pós-naturais: atualizações de Frankenstein na cultura ocidental. ROCQUE, L. de L. e TEIXEIRA, L. A. Frankenstein, de Mary Shelley e Drácula, de Bram Stoker: gênero e ciência na literatura. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(1), 10-34, mar.-jun. 2001. ROUSSEAU, Jean-Jacques, 1772-1778. Emílio; ou, Da educação. Tradução de Sérgio Milliet. – 3.ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. 592p. SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. Vega, 1989. ______. Barroco. Éditions du Seuil, 1975. SHELLEY, Mary Wollstonecraft. Frankenstein. Tradução: Adriana Lisboa – Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

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A ELIPSE BARROCA NA LÍRICA RELIGIOSA DE GREGÓRIO DE MATOS Rayane Kely de Lima Fernandes Pós-graduanda - CEEL/UERN Orientadora: Profª Drª Leila Maria de Araújo Tabosa

Foram necessários pelo menos três séculos para que o “barroco” deixasse a marginalidade de sua recepção para assumir um lugar significativo no acervo das especulações artísticas da humanidade. Augusto de Campos

De acordo com Severo Sarduy (1988), a designação do barroco oriunda da Língua Portuguesa é pérola irregular valiosa e do espanhol berrueco e depois berrocal. Posteriormente, no vocabulário dos joalheiros, o termo ganha outra conotação e passa a designar algo minuciosamente elaborado, uma oposição ao preconceito arragaido em sua designação anterior como rudimentar, não elaborado, imperfeito. A epígrafe ressalta que foi necessário bastante tempo para que o “barroco” deixasse sua designação pejorativa e alcançasse um merecido lugar significativo no cenário das manifestações artísticas humanas. Somente a partir do século XX, o Barroco, com suas especificidades, foi reconhecido como arte, o que outrora era visto como “grotesco”, marginal, por ser desviante da arte do padrão clássico vigente. O Barroco é um movimento de suma importância no panorama literário. Surgiu na Itália e na Espanha nos séculos XVI e XVII e foi espalhando-se por vários outros países da Europa. O Barroco emergiu em meio à efervescência das Grandes reformas Religiosas da época, fato que lhe imprimiu, dentre outras implicações, a religiosidade. No Brasil, o surgimento do Barroco é apontado como tendo como principais autores Bento Texeira (15611601), Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) e Gregório de Matos (1636-1696).

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Embora Cláudio Manuel da Costa seja enquadrado como escritor pertencente ao Arcadismo, alguns estudiosos, dentre eles Francisco Ivan da Silva, apontará que “os sonetos de Cláudio Manuel da Costa brotam, na verdade, da atmosfera do Arcadismo, mas seu panteísmo tem raízes firmadas na terra, raízes barrocas” (SILVA, 2012, p.95). O poeta da “Idade do Ouro” traz em sua obra postulada como árcade, a essência barroca, “laivos barrocos”. Por sua vez, nas artes plásticas, Aleijadinho (1730-1814) foi um nome de destaque desse barroco mais tardio. A arte barroca se caracteriza por trazer tendências de inovação e de ruptura, o contraste, o jogo entre o claro e o escuro, a luz e a sombra, entre o misticismo e o erotismo, a razão e a fé, o sagrado e o profano, a vida e a morte; a estética barroca oscila em suas dualidades conflitantes e paradoxais. O século XVII apenas introduziu esse movimento estético literário, haja vista que o Barroco continua constante ao longo dos séculos, transgredindo a temporalidade. Gregório de Matos, sobre o qual trataremos neste ensaio, é um dos poetas barrocos brasileiros que conseguiu imprimir, em sua poesia antropofágica, o caráter moderno (não modernista) e se fazer contemporâneo, conforme aponta Santos (2011). *** Gregório de Matos e Guerra (1623-1696), conhecido como “Boca do Inferno”, autor baiano seiscentista, do período colonial, é um dos grandes poetas Barrocos do século XVII. Filho de uma família abastada socialmente, teve sua formação acadêmica em Lisboa, estudou direito e depois voltou para o Brasil como Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia. O poeta não concordava com as imposições sociais que lhe foram feitas. Como resposta, inicia seus escritos que trazem críticas e ironias, descortinando a sociedade baiana e seus costumes assim como a Igreja, o que o levou a ser conhecido como “Boca do Inferno”. Sua prática poética rendeu-lhe vários desafetos “da alta sociedade”, o que contribuiu com a sua deportação para Angola, voltando para o Brasil, somente um ano antes de sua morte. Podemos perceber, nas sua escritura, as várias faces e fases do escritor seiscentista: a “em suma sua Poesia servirá para talhar, detalhar e moderar o Poeta Barroco/apaixonado que foi” (IVAN DA SILVA, 2013, p. 273). Sua obra traduz as contradições e dualidades do homem barroco. O escritor transitou entre a lírica amorosa, satírica e a religiosa. Vale ressaltar que a

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obra do referido escritor é apócrifa. Sua poesia foi recitada, transcrita de memória, reunida por terceiros e a ele atribuída, fato que contribuiu ainda mais para a discussão acerca da sua existência e importância no nosso cenário literário. Em sua vasta obra, abordou, desde o lirismo amoroso, a contribuição religiosa à sátira irreverente, sobretudo com as críticas e denúncias à hipocrisia da sociedade baiana, que, ao mesmo tempo em que pregava a renúncia aos bens materiais, se deleitava nestes. O poeta investia, principalmente contra os portugueses que exploravam as riquezas da Colônia, mas também não poupava os nativos, dentre outros assuntos que assolavam a moral vigente, além da Igreja. *** A religião fora assunto constante em sua obra, de sorte que a lírica religiosa, da qual trataremos a partir de agora com maior enfoque, se encarregará de trazer à tona sentimentos e dualidades do homem barroco. De acordo com Segismundo Spina (1986), é na lírica religiosa que Gregório de Matos se encontra face a face com os problemas da vida interior. Nessa vertente da sua poesia, o escritor traz a polarização entre o sagrado e o profano, entre o divino e o mundano, consciência do pecado e o desejo da salvação, da dimensão carnal em contrapartida à espiritual, deixando transparecer a crítica que tece à Igreja. O “Boca

do Inferno”

abordará

constantemente o

Cristianismo,

o que

indiscutivelmente torna a sua poesia barroca, principalmente se considerarmos a definição que Lacan (1985, p.145) delineia acerca do barroco, “é, no começo, a historieta, a historinha do Cristo. Quero dizer o que conta a história de um homem”. A religião cristã possui uma estreita relação com a estética barroca, o sentimento religioso foi comum aos autores Barrocos, sendo eles, crentes ou céticos. Ciro Soares dos Santos, em sua dissertação Deus e o diabo na poesia de Gregório de Matos, suscitará uma face do escritor, a de leitor da Bíblia. Para ele, o poeta baiano “fez com a Bíblia a construção de uma forma particular de leitura. Sua devoração das escrituras se deu de forma artística, gerou um legado poético-criativo fundamental para as letras luso-brasileiras” (SANTOS, 2011, p. 192). Francisco Ivan da Silva (2013, p. 83) reafirma essa assertiva ao ampliar

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o repertório religioso verificado na obra gregoriana: “Sem sombras de dúvida; Gregório de Matos parodiou desde a Bíblia sagrada ao Breviário Católico”. O escritor encontra nas escrituras sagradas o seu subsídio para criar sua poética religiosa, parodiando e criando versões de trechos da Bíblia. Ele irá usar várias passagens bíblicas para construir muito de sua lírica religiosa, como por exemplo, a parábola da Ovelha Perdida, no poema “A Jesus Cristo nosso senhor”, um dos poemas que integrará o corpus de nossa leitura neste trabalho. Sua religiosidade poética traz sempre simbolicamente, em forma de confissão, o ato de arrependimento do pecador, que busca a remissão dos seus pecados. Gregório de Matos constrói seus poemas pautado também na ambiguidade e no contraste. Além disso, há ironias que permeiam os textos, mostrando o lado do homem pecador, com carência do perdão para se sentir redimido, e o lado de Deus, com dever perdoar para continuar a ser divino. O poeta barroco não esconde as fraquezas do ser terreno, suas controvérsias e seus dramas, características típicas do homem barroco; um ser dualista e complexo em sua essência, que se divide entre a salvação e os prazeres carnais.

160 *** A relação entre o Barroco e a ciência se deu em uma época de grandes descobertas científicas. Dentre os grandes estudiosos da era barroca, podemos destacar Blaise Pascal e Isaac Newton com contribuições à Matemática e à Física; por sua vez Galileu Galilei e Johannes Kepler contribuíram com a Astronomia, apresentando seus estudos e suas descobertas sobre a teoria dos planetas, órbita, princípios/leis da gravidade e movimento. No período de transição do Renascimento para o Barroco ou como Sant’anna postula “do quadrado à elipse”, a ciência foi fundamental na arte barroca, mais especificamente a Matemática: Primeiro é bom lembrar que, desde os gregos (veja os neopitagóricos), a matemática estava em tudo. E quando o Renascimento aflorou, o que se viu foi Miguelangelo, Da Vinci, Brunelleschi e Ghiberti e tantos outros fazendo uso das ciências em suas obras. E com o Barroco não foi muito diferente. O uso da câmera escura, os efeitos da anamorfose e mesmo os cálculos cabalísticos de [Francesco] Borromini para fazer a Igreja das Quatro Fontes, em Roma, mostram isto. [...] O século barroco, para escândalo de muitos, coincide com a busca do ‘universo da precisão’, não é apenas o século do nebuloso e ininteligível. Tem-se feito uma leitura equivocada do Barroco. A leitura da ciência na época é importante para esclarecer esta duplicidade. Pois foi


nesse período que as lentes e espelhos tiveram um desenvolvimento tecnológico muito grande (SANT’ANNA, 2006, p. 220-221).

A matemática existe desde a antiguidade e fazia-se presente em tudo, desde o Renascimento, anterior, ao Barroco. Os artistas utilizaram a ciência em suas obras. Com a arte barroca, não foi diferente Esta também usufrui da ciência e seus recursos na sua criação artística, Sant’anna (2006) cita como exemplo o uso da matemática na obra do padre Athanasius Kircher, e a designa como “matemágica”, afirmando assim ser uma ciência nesse viés, mágica. Severo Sarduy (1988) nos levará a penetrar nessa acepção de que a arte se “serviu” da ciência, contudo enveredando pelos caminhos da cosmologia, da geometria, mas precisamente tratará da elipse barroca, levando-a também para a retórica. Em suma, Sarduy(1988) trará o aspecto esférico (círculo) do universo, defendido por Galileu; em contraposição ao elíptico, defendido por Kepler. Sarduy, metaforicamente, aponta para uma transição do Renascimento para o Barroco, alude às cosmologias para nos fazer a crer que, na estética barroca, a forma perfeita e centralizada do círculo transforma-se em elipse e se descentraliza em dois prováveis núcleos, modificando, invertendo a ordem das coisas. Assim sendo, quebra a estabilidade que encontrávamos nos padrões clássicos e que assim passam a serem rompidos. Isso coloca o homem oscilante nessa nova conjectura universal, dilemático diante do descentramento e da instabilidade que a elipse proporciona, o que refletirá nas produções artísticas. Por sua vez, Sant’anna (2000, p. 152) ressalta que “num mundo que cultiva a elipse, cultiva-se o descentramento e a dissonância”. Haja vista ser a elipse indiscutivelmente um elemento barroco, esta repassa a ideia de que a arte barroca afasta-se da tradição, dos paradigmas clássicos. E ainda, pressupõe as noções de supressão e de defeito, a primeira concernente à retórica, já a segunda à geométrica. A elipse é a perturbação, a deformação do círculo. De acordo com Severo Sarduy: A elipse não é apenas figura representável, e não temos que nos limitar ao seu espaço originário – o da geometria e da figuração – transportá-la-emos para outro espaço – o retórico – mostrando através desse deslocamento, a coerência do Logos que gera, na sua diferença, as duas versões de uma mesma figura. Uma projecção das cônicas em geral neste outro registro – da retórica – poria em evidência a mesma coerência em toda a extensão da gramática do barroco: a elipse, a palavra e a hipérbole pertencem aos dois espaços: geométrico e retórico (SARDUY, 1988, p. 59).

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A elipse se identifica na retórica barroca com o hermetismo, através da exclusão de um significante expulso da distribuição simbólica. A elipse barroca oculta o significado, mas também lhe revela. Muitas vezes, os referentes não estão explícitos na superfície dos versos; requerem um olhar mais atento para conseguir fazer as interligações entre as estruturas semânticas nos poemas. Na poética barroca de Gregório de Matos temos um jogo de relações que transita o núcleo da poesia para suas extremidades em um movimento que representa a elipse, descentrada. O primeiro poema gregoriano que cotejaremos com essas noções teórica é “A Jesus Cristo nosso senhor”, no qual um ser terreno arrependido por ter pecado, assumindo a culpa e anseia o perdão divino para que possa ser salvo, contudo ressalta que a Igreja/Deus precisa do pecado para que possa perdoar, justificando assim o seu ato de pecar. Procuraremos neste poema perceber o silogismo, as imagens que se deslocam e estão presentes em “todo lugar”, movimentando-se conforme a cosmologia das ações verbais, criando a forma elíptica, elemento barroco por excelência, que se desvelará ao decorrer da leitura:

162 Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado Se basta a vos irar tanto um pecado, A abrandar-nos sobeja um só gemido, Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado Se uma ovelha perdida, e já cobrada Glória tal, e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. (GREGÓRIO DE MATOS, 2010, p.313) Logo no primeiro verso, podemos observar o verbo pecar “Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado” e, no quarto verso, o verbo perdoar, “Vos tenho a perdoar mais empenhado”, mostrando-nos que a elipse se dá nessa Cosmologia da movimentação das duas


ações residentes nos referidos verbos. Na segunda estrofe, o primeiro verso, “Se basta a vos irar tanto um pecado” e o terceiro e quarto, “Que a mesma culpa, que vos há ofendido/Vos tem para o perdão lisonjeado”, constroem o percurso do cristão pecado-culpa-perdão para que possa encontrar a salvação, delineando um movimento circular incessante, elíptico. Como mencionado anteriormente, Gregório de Matos fora um leitor da Bíblia como afirma Santos (2011), e, em muitas de suas obras, parodiou as escrituras sagradas. O poeta resgata a parábola bíblica (Lucas: 15) da ovelha desgarrada. Nos primeiros versos da terceira e quarta estrofes, respectivamente, nos deparamos com a imagem da ovelha perdida/desgarrada, “Se uma ovelha perdida” e "Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada", a ovelha que se perdeu em meio ao pecado e que precisa ser recuperada e acolhida no perdão divino. E ainda novamente, o eu-lírico assume-se como pecador e implora a misericórdia divina, especialmente nos dois últimos versos da última estrofe, “Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino/Perder na vossa ovelha a vossa glória”, entretanto ressalva que Deus, perdoando-a, não perderá a sua glória, provocando o leitor e mostrando assim a profanação em meio a sacralidade de seu poema. O poema faz lembra Lacan: É verdade que a historieta do Cristo se apresenta não como o empreendimento de salvar os homens, mas como o de salvar a Deus. É preciso reconhecer que, para aquele que se encarregou desse empreendimento, o Cristo nominalmente, ele pagou o preço é menos que se pode dizer. [...] “Donde se torna concebível que a salvação de Deus é precária, e entregue em suma à boa vontade dos cristãos” (LACAN, 1985, p. 147).

Quanto a essa profanação, consideramos as ideias acima de Lacan, o Cristianismo se apresenta com o propósito de salvar a Deus e não ao homem, haja vista, que para ser divino, tem que perdoar, o perdão é uma “obrigação” a ser concebida ao pecador para manutenção do poder supremo e inquestionável benevolência e divindade de Cristo diante do humano pecador que precisa da salvação, o perdão concebido por Deus é benéfico a ele mesmo, então o ser terreno precisa pecar, arrepender-se, assim será perdoado e não salvará somente a si, mas principalmente a Cristo, implicando que a salvação de Cristo fique “nas mãos” dos cristãos, processo inverso do que prega a Igreja cristã. O outro poema gregoriano que analisaremos é “A N. Senhor Jesus Cristo com atos de arrependimentos e suspiros de amor”. Aqui, como no outro, temos também um pecador que

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delinquiu e que assume que ofendeu a Deus, mas que está arrependido e busca a remissão junto ao ser divino. O humano parece está no dia do juízo final, confessando seus pecados e delitos; suplicando que Deus o acolha em seus braços com o seu amor e misericórdia. Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade, É verdade, meu Deus, que hei delinquido, Delinquido vos tenho, e ofendido, Ofendido vos tem minha maldade. Maldade, que encaminha à vaidade, Vaidade, que todo me há vencido; Vencido quero ver-me, e arrependido, Arrependido a tanta enormidade. Arrependido estou de coração, De coração vos busco, dai-me os braços, Abraços, que me rendem vossa luz. Luz, que claro me mostra a salvação, A salvação pretendo em tais abraços, Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus. (MATOS, 2010, p. 315) Quanto à retórica barroca no poema, podemos percebê-la na medida em que o poema vai se construindo, a cada verso. Temos, em sua estrutura, um movimento circular, cada construção verbal se articula com o próximo e ainda a última palavra de cada verso gregoriano repete-se no início do seguinte Isso nos levando em um movimento elíptico, que nos faz desenhar a elipse barroca gregoriana. Temos a sensação de que podemos ler o poema em várias direções, pois ele vai fazendo “voltas” e compondo o movimento elíptico, característica da retórica barroca. Se observarmos nos vocábulos grifados do segundo verso da primeira estrofe, no terceiro da estrofe seguinte e no primeiro da terceira estrofe, construímos uma elipse projetando em nosso imaginário a via sacra, que está implícita nesse movimento percorrido pelo cristão; remetendo-nos também ao preceito religioso, pecado-arrependimento– salvação, um movimento circular que não cessa O cristão é pecador, por isso precisa arrepender-se para poder salvar-se. Ressaltemos ainda que o poema em análise pode nos proporcionar sua leitura de baixo para cima, indo e vindo, circulando, eclipsando.

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O poema deixa percebermos o movimento elíptico, torcido, pois os versos vão se encaixando. É notável o afastamento e a aproximação entre o sagrado e o profano, terreno e divino, material e espiritual, enfim, a dualidade do homem barroco que se depara na dialética entre o céu e a terra. Nesse movimento elíptico, o eu-lírico assume sua fraqueza e mostra sua sucumbência ao pecou, “Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade/É verdade, meu Deus, que hei delinquido”, mas que se arrependeu, “Arrependido estou de coração”, e quer a salvação, “Luz, que claro me mostra a salvação/A salvação pretendo em tais abraços”. *** Embora o escritor baiano seja reconhecido por sua lírica religiosa, é possível encontrar nesses textos tanto aspectos sacros quanto profanos em seus poemas, como por exemplo, nos poemas que analisamos nesse ensaio, nos quais o poeta provoca o leitor nas entrelinhas, quanto a perdão ser mais propício para a salvação do homem ou de Deus, haja vista que, para Deus ser considerado, supremo precisa perdoar o humano de seus pecados, como evidenciou Lacan (1985). Portanto, diante do que foi exposto sobre a poética gregoriana, ficou evidente que a noção de elipse barroca pode ser salutar para leitura da obra seiscentista. O poeta constrói um movimento circular, elíptico que representa o percurso do cristão em busca da salvação, pecado-culpa-arrependimento-perdão-salavação. Dessa forma, constrói a imagem da via sacra, que outrora fora suscitada novamente pelo escritor em outro de seus poemas intitulado como “Aos missionários em ocasião que corriam a Via Sacra”, dessa vez explicitamente. A elipse é um recurso essencialmente barroco, que indica a ruptura do circulo perfeito, conforme Sarduy (1988), ou que rompe com os padrões clássicos ao se contrapor ao quadrado/tensão referente ao Renascimento como elucida Sant’anna (2000). REFERÊNCIAS LACAN, Jaques. Do Barroco. In: LACAN, Jaques. O seminário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. Seleção e organização José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro, Rocco, 2000. ______. O lado poético da ciência. (Entrevista concedida a Carla Almeida). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13 (suplemento), p. 213-22, outubro, 2006. SANTOS, Ciro Soares dos. Deus e o diabo na poesia de Gregório de Matos. Natal: UFRN, 2011. SARDUY, Severo. Barroco. Trad. Maria de Lurdes Júdice e José Manoel de Vasconcelos. Lisboa: Vega, 1988. SILVA, Francisco Ivan. A Poesia Barroca Brasileira na Idade do Ouro. In: Colóquio barroco III (Org.) Francisco Ivan, Samuel Lima. Natal, RN: Editora da UFRN, 2012. ______. Ensaios para um Concerto Barroco. Natal, RN: EDUFRN, 2013. SPINA, Segismundo. Gregório de Matos. In: COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986.

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O CLASSICISMO NA MISCELÂNIA BARROQUIANA: REFLEXÕES ACERCA DE DOIS SONETOS DE CAMÕES52 Taynã Alves Rebouças (Graduação DLV – UERN) Francisca Berlandia da Silva Paiva (Graduação DLV- UERN) Maria Selma dos Santos (Graduação DLV – UERN)

Luiz Vaz de Camões, escritor aclamado, viveu no período do renascimento e do surgimento do classicismo, quando as relações entre a filosofia e a teologia tanto tentaram se aliar quanto se distanciaram pela sua oposição, na medida em que o pensamento antropocêntrico permitia a aparição da mente aberta dos povos que viam na evolução da ciência, uma resposta plausível para as questões que a religião não podia responder. Embora não se conheça muito sobre a vida de Camões, sabemos qual foi o período histórico no qual foi publicada a obra chave da valorização do povo de Portugal. O século XVI foi marcado pelas grandes navegações marítimas portuguesas, que caracterizaram uma das mais gloriosas qualidades dessa nação em ascensão internacional. Os portugueses tinham a necessidade de encontrar riquezas e melhorar o sistema comercial de importação e exportação. Isso contribuiu grandemente para o desenvolvimento das buscas por terras através da via marítima. Portugal já era um grande comerciante com a Índia e, como vencer percursos terrenos era bastante demorado, os comerciantes decidiram procurar outros meios, mais rápidos, para alcançarem o seu destino sem muita demora. Essa expansão comercial se estabelece no período do Renascimento, em que a ciência tomava o espaço que a religião havia dominado por tantos séculos. O homem passou a se tornar antropocêntrico, dando valor mais aos seus pensamentos e reflexões filosóficas do que a ordens e dogmas religiosos que restringiam o seu desenvolvimento intelectual. A ciência tendia a crescer cada vez mais, pois: As circunstancias históricas e uma peculiar situação geográfica confiaram ao povo lusitano um papel de relevo na evolução do Renascimento. É que Portugal, através de alguns estudiosos e particularmente, das descobertas marítimas, colaborará de 52

Trabalho realizado para a disciplina Literatura Portuguesa I, pelos estudantes-autores da Graduação em Letras Vernáculas, semestre letivo 2014.1, ministrado pela professora doutora Leila Maria de Araújo Tabosa.

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modo direto e intenso no processo renascentista: letrados portugueses, como os Gouveias (André, Antônio, Diogo), Aquiles Estaço, Aires Barbosa, e outros, disseminavam as novas ideias em universidades estrangeiras, entre elas a de Paris. Todavia, foi o alargamento do horizonte geográfico, com sua corte de consequências econômicas e políticas, que conferiu ao povo português relevância histórica no período que corre desde os fins do século XV até meados do século XVI (MOISÉS, 2006, p. 49).

Deste modo, a cartografia, que também fazia parte do campo científico estudado pelas universidades que começavam a se tornar menos clericais, dava uma das maiores contribuições para o desenvolvimento marítimo dos portugueses. Portugal chegou a se equiparar à Suméria antiga e ao poderio inglês, em termos de navegações pelo mar. Este evento logo fez a nação tornar-se reconhecida, especialmente quando encontrou as terras do Novo Mundo. Dessa região, retirariam as maiores riquezas aos senhores de Portugal. Aliás, foi essa série de conquistas na América que conferiu à região ibérica um poder econômico e político característicos de uma superpotência. Em outros termos, Portugal era proprietário de manufaturas que eram importadas dos países com os quais fixou compra e venda de produtos dos mais variados, dentre os quais podemos destacar os relacionados à arte e ao luxo, como tapeçarias, tintas, perfumes e tecidos diversos; e, no âmbito alimentício e gastronômico, como plantas, frutas, ervas, legumes, etc., como podemos perceber nos comentários de Bastos (2012). O autor comenta as conquistas de Portugal e, com estas, o consequente e poderoso mercantilismo, advindo da iniciativa de não apenas importar, mas exportar essas especiarias para outros lugares com vistas a obter lucro, que, com o tempo, aumentaria até alcançar o auge, tornando a coroa portuguesa uma das mais ricas do mundo: O que havia de sofisticado e exótico no mercado europeu vinha do Oriente. Eram pedras preciosas, como esmeraldas da Índia, safiras e pérolas do Ceilão e rubis de Burma; sedas, damasco e musselinas; ervas medicinais e as famosas especiarias. Este termo genérico referia-se a uma quantidade enorme de produtos, desde os condimentos usados no preparo, aromatização e conservação dos alimentos, até as drogas, tintas, perfumes, cosméticos e unguentos. A variedade era tão grande que um catálogo comercial do século XIV chegou a listar nada menos que 288 especiarias diferentes, entre as quais, onze tipos de açúcares, variadas ceras, borrachas e cola a goma arábica (BASTOS, 2012, p. 5).

Em meio a toda essa riqueza de bens, com os quais os portugueses tomavam a inteligente liberdade de aumentar o seu capital, por meio de vários movimentos comerciais; o renascimento, que começava a dominar o pensamento social, tentava restaurar os modelos

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e as formas clássicas da Antiga Grécia, com força de influência dos seres mitológicos do Monte Olimpo, com intenção de imitar as culturas já esquecidas dos Greco-latinos, que eram a representação da perfeição para o período em questão. Ao mesmo tempo, o antropocentrismo ganhava potência por meio dos estudiosos que se destacavam na época, como Galileu e Newton, grandes cientistas que revolucionaram o mundo com estudos dedicados à física. Em meio a esse clima de aparente quase independência da religião, o classicismo entra em cena, quando os poemas apresentam o ideal amor platônico, a exaltação ao homem por si só, a imitação dos autores clássicos, como Homero, Virgílio e Ovídio (momento em que as produções literárias estavam aproveitando-se da prevalência da razão sobre a crença), além da introdução da linguagem simples e objetiva. Foi exatamente nesse cenário conturbado e repleto de contradições ideológicas que Camões utilizou-se dos silogismos aristotélicos para criar sonetos que o sopro do tempo jamais deixaria que fossem apagados da história. Surgia, assim, a lírica camoniana, que abarcaria uma série de temas centrados nos acontecimentos que marcavam a época das navegações, do antropocentrismo sobre o teocentrismo e de uma mistura no material compositivo das produções poéticas que simplesmente estavam colocando Camões no topo da magia literária. Por essa razão: Os sonetos são a parte mais conhecida da lírica camoniana. As composições líricas de Camões oscilam entre dois pólos: o lirismo confessional, em que o autor dá vazão à sua experiência íntima, e a poesia pura arte, em que pretende transpor os sentimentos e os temas a um plano formal, lúdico. Em outras palavras, Camões demonstra, em seus sonetos, uma luta constante entre o amor material, manifestação da sensualidade e do desejo, e o amor idealizado, puro, espiritualizado, capaz de conduzir o homem à realização plena. Isso faz que o poeta abstraia a mulher, ou as mulheres, em favor da Mulher. Camões pinta com o auxílio da Razão o retrato da Mulher, formado da reunião de todas e de nenhuma em particular, porque subordinado a um ideal de beleza perene e universal. Nessa perspectiva, o poeta concilia o amor como ideia e o amor como forma, tendo a mulher como exemplo de perfeição, ansiando pelo amor em sua integridade e universalidade. O poeta procura conhecer, conceituar o Amor, o que só consegue realizar lançando mão de antíteses e paradoxo (PEB II, apud MOISÉS, 2006).

Portanto, Camões apresenta uma reflexão a respeito dos mistérios do Amor, que passa a ter existência própria, sendo personificado. Essa meditação quase exaustiva se faz repetir nas questões da condição humana. Sobre o que Camões escreveria a fundo era a vida, que tinha muito mais material de estudo filosófico do que tanto o amor quanto a mulher, por si

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sós, e o único recurso do qual se utilizaria para estudar esse aspecto existencial era a partir da auto-observação, a busca pelo entendimento de sua própria vida, onde encontraria o essencial para a natureza da tragédia humana. Partindo da análise que daí se segue, Camões vai reparando que o fatalismo nos impede de recorrer ao próprio desespero. Esse estranho sentido de premonições e revelações de futuras tragédias será chamado de “Fado”, que é a partir de onde se misturam os paradoxos e pensamentos desencontrados, que não são atenuados ou resolvidos nem mesmo com o “auxílio” do desespero, uma vez que o mundo é o próprio desconserto. Portanto, como exprimiria Lima (2011): “o núcleo da poesia reflexiva de Camões: ‘a vida não tem razão de ser, e descobri-lo e pensá-lo incessantemente é inútil, além de perigoso, pois apenas acentua quão irremediavelmente miserável é a condição humana’”. Ao mesmo tempo em que se introduzia nas marés das contradições, transmitidas exclusivamente pelos paradoxos e pelas antíteses, Camões conseguiu adentrar a corrente daqueles que já não viam o ímpeto vital do sentido da harmonia e do colorido tão característico do Renascimento, pois seus poemas conseguem também se inserir na corrente chamada Maneirismo, segundo a qual existia uma força da realidade de que a vida é passageira e que as coisas são incertas e efêmeras. A Reforma Protestante teve um impacto muito forte nesses ricochetes de ideias entre si mesmas, pois, com as 95 Teses, Martinho Lutero abria um largo mar de sentimentos no homem que só vivia sob os mandos da Igreja. Portanto, esse período literário faz uma ponte perfeita, embora difusa, entre o Renascimento e o Barroco. As contradições verificadas nos sonetos de Camões são perfeitamente observáveis nos silogismos, que nem sempre obedecem à sequência proposta por Aristóteles, devido ao trabalho com opostos: luz e sombra, o sensível e o inteligível e o sumo bem e a vil ignorância. Nos sonetos, Camões representa dicotomia controversa com as tentativas de unir as formas poéticas a questões existenciais e filosóficas. E é dessa forma que a lírica camoniana é regida. Além disso, o autor de Os Lusíadas abrilhanta os seus sonetos com a maestria de, como poeta, se utilizar do silogismo filosófico desenvolvido desde os conceitos iniciais de Sócrates, passando por ideias de Platão, e, assim, culminando com a silogística de Aristóteles. Exemplo perfeito disso é o soneto Amor é fogo que arde sem se ver:

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Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? Neste soneto, Camões comprova a ineficácia de se tentar explicar a sublimidade do Amor, seja por sua conceituação simples, no sentido de ler e entender, e complexa, em termos de interpretar e compreender, ou por sua natureza silogística, que sofre uma modificação cabível à própria natureza do poder da entidade amorosa; esta, por sua vez, trazendo ao homem sentimentos tão elevados quanto contraditórios. Nos primeiros versos, observamos uma estrutura bimembre, cujas partes se distribuem antiteticamente. Há, nesses versos, a presença das antíteses, que são ideias de oposição entre si, como em “Amor é fogo que arde” e, no entanto, “não se vê”: refletindo, é um jogo de palavras que exprimem duas antíteses, a primeira relatando uma coisa e a segunda outra contrária a ela (PIVA, 1980). Acrescenta-se ao caráter neoplatônico uma personificação do Amor (com o A maiúsculo), que, para Camões, tratava-se de um ser supremo, ao qual tentávamos alcançar sem êxito, uma vez que somos seres decaídos e incapazes de compreender esse poder universal que foge à razão humana. Deste modo, de acordo com Piva (1980), o poeta, diante de quem se encontram inúmeras contradições, se esforça por conceituar a natureza do Amor. As premissas dos primeiros versos se completam quando apresentam duas dimensões em sua estrutura bimembre: uma sensível, que encontramos quando Camões escreve “ferida que dói”, “dor que desatina”, e uma transcendental, como em “e não se sente” e “sem doer”. Observa-se que o uso da conjunção “e” para unir as duas premissas em “é ferida que dói e não

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se sente” reflete uma coordenação entre as orações, ou seja, não se estabelece uma oposição entre elas, uma vez que, como já foi dito, ambas se complementam. É, no entanto, importante salientar que Camões se via preso a ideias experimentadas na vida e outras na razão. Por um lado, suas paixões lhe traziam o lado sensível; e, por outro, a razão se fazia presente com o raciocínio lógico. Por isso, ao fim da sua tentativa de explicar a natureza do Amor, ele se surpreendeu ao constatar que o próprio Amor causa desconformidade. Em síntese, através da explicação silogística aristotélica, não se consegue explicar este sentimento superior nem mesmo com os melhores argumentos, já que existe para ser sentido e não analisado ou interpretado. O soneto de Camões, como diria Piva (1980, p. 34), “enaltece a impotência de uma operação racional sobre a realidade sentimental”. Este aclamado autor renascentista não apenas se utilizou de silogismos para causar efeitos extraordinários em seus sonetos, mas também lançou mão de um recurso filosófico bastante difundido pela escolástica: a dialética. No poema abaixo, pode-se observar igualmente a imponderabilidade da paixão amorosa através dos raciocínios dialéticos.

172 Já é tempo, já, que minha confiança Se desça de uma falsa opinião, Mas Amor não se rege por razão Não posso perder, logo, a esperança. A vida, sim; que uma áspera mudança Não deixa viver tanto um coração, E eu só na morte tenho a salvação. Sim, mas quem a deseja não a alcança. Força é, logo, que eu espere e viva. Ah! Dura lei de Amor, que não consente Quitação numa alma que é cativa! Se hei-de viver, enfim, forçadamente, Para que quero a glória fugitiva De uma esperança vã que me atormente? Este soneto apresenta-se de modo a permitir diálogo com a leitura do analisado anteriormente, pois mostra a dialética razão-sensibilidade através do reconhecimento de que o Amor é grosseiro para aquele incapaz de alcançá-lo. O amor possui asperezas que deixam o


poeta em tristeza profunda, embora ainda lhe reste uma esperança longínqua, que se constitui o mérito da sua situação. A angústia se torna bastante intensa nos versos desse poema, uma vez que o principal foco é o reconhecimento de que é preferível que a morte chegue ao poder que a esperança desapareça. Comparando a realidade camoniana aos dias de hoje, pode-se observar que a questão antitética do Amor ainda existe, e não envolve apenas o amor entre um homem e uma mulher, mas pode se referir ao do homem em relação ao conhecimento, ao êxtase que o leitor sente ao entrar em contato com os livros e ainda do amor entre os homens em geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os silogismos nos sonetos de Camões são, antes de qualquer coisa, uma reflexão não só sobre o amor e o Amor, mas principalmente sobre quem é o homem e de que modo ele pode melhorar o seu eu. E que é através desse Amor sublime se consegue expressar a verdadeira essência do ser humano. Não existiram filosofias geniais ou explicações baseadas em raciocínio lógico que conseguissem tratar do Amor. Pensadores tentaram explicar esse fenômeno tão superior e jamais algum definiu com toda a certeza qual seria a sua natureza.

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REFERÊNCIAS BASTOS, Maria Malvina Gomes e Souza. As Grandes Navegações Portuguesas e a Conquista das Águas Profundas pelo Brasil. 2012. Disponível em: <http://ecen.com/eee87/eee87p/navegacoes.html> Acesso em: 25 jul. 14. BÍBLIA, Moisés. Coríntios, capítulo 13, versículo 2. LIMA, Valéria de Cassia Pisauro. Lirismo Camoniano. 2011. Disponível em: <http://valiteratura.blogspot.com.br/2010/10/lirismo-camoniano.html> Acesso em: 20 jul. 14. MOISES, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2006. PIVA, Maria Helena Ribeiro da Cunha. O Lirismo e a epopeia em Luiz de Camões. São Paulo: Cultrix, 1980.

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A LIRA MALDIZENTE DO TROVADORISMO NA POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS E CAETANO VELOSO. Jéssica Marissa Mendes da Silva (UERN) Orientadora: Profa. Dra. Leila Maria Araújo Tabosa (UERN/DLV)

INTRODUÇÃO

Para muitos leitores, a poesia agradável de ler e de ouvir é a aquela que faz relatos de sentimentos, de casos amorosos, de amores correspondidos ou não, de saudade e exaltação da pessoa amada, mas sabe-se que essa não é a única temática existente quando se trata de escrever versos. Há também poemas, cantigas e músicas que abordam temas considerados confrontantes como a temática lírico-satírica. Desde o Trovadorismo, os versos “embriagados de amor” foram substituídos pelos versos críticos, satíricos e peçonhentos. O Trovadorismo português caracterizou-se pela poesia cantada e instrumentada. Os trovadores compunham e cantavam suas cantigas. Elas eram uma espécie de poesia provençal no idioma galego português e propunham não só uma temática lírico-amorosa, mas também uma poesia satírica, expressa nas cantigas de escárnio e de maldizer. De acordo com Moisés: O lirismo trovadoresco instalou-se na Península Ibérica por influência provençal. Na transladação, sofreu, como seria de esperar, o impacto do novo ambiente e alterou algumas de suas características. Provavelmente a principal modificação tenha constituído no recrudescimento do aspecto platonizante da confidência amorosa: dentro do trovadorismo português, o ponto mais alto de processo sentimental situava-se antes de a dama atender aos reclamos do apaixonado. Duas eram as espécies de poesia trovadoresca: a lírico-amorosa, expressa em duas formas, a cantiga de amor e a cantiga de amigo; e a satírica, expressa na cantiga de escárnio e maldizer (MOISÉS, 1976, p. 15).

Os trovadores compunham cantigas de amor e de amigo em que o eu-lírico fazia uma confissão amorosa, falando de seu sofrimento por um amor não correspondido ou do

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sentimento de abandono por alguém que foi embora. Entretanto, nas cantigas de escárnio e de maldizer, o eu-lírico utiliza a sátira, podendo conter uma espécie de zombaria, duplo sentido, xingamento e até palavras de baixo calão. Um aspecto interessante na composição dessas cantigas satíricas era que o trovador as compunha numa tentativa de “desmoralizar” outro trovador, inclusive, criticando as cantigas do “adversário”. Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma relação entre a lira maldizente apresentada nas cantigas de escárnio e de maldizer do Trovadorismo e a poesia barroca de Gregório de Matos. A reflexão estende-se à reconfiguração de poema gregoriano na música contemporânea de Caetano Veloso, tendo em vista seus aspectos satíricos e a função social que elas passaram a cumprir. Far-se-á uma análise de como esse recurso se reverberou na literatura e das mudanças que aconteceram na arte de unir poesia e sátira ao longo do tempo.

AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E DE MALDIZER

176 É importante ater-se aos conceitos de cantiga de escárnio e de maldizer. “Cantigas de escárnio são aquelas em que o trovador critica sem individualizar a personalidade criticada” (ABDALA & PASCHOALIN, 1990, p. 19). Apesar de o conceito apresentado ser sucinto, pode-se entender que esse tipo de cantiga não se refere diretamente a uma pessoa, mas o seu conteúdo sarcástico funciona como um jogo de duplos sentidos (MOISÉS, 1976). “Maldizer é aquela em que a pessoa criticada é individualizada” (ABDALA & PASCHOALIN, 1990, p. 19). Nesse caso, a crítica é direta e se expressa na cantiga de uma forma objetiva e agressiva como também descreve Moisés (1976). A seguir, será feita uma breve análise de uma cantiga que Pêro Garcia Burgalês fez para criticar outro Trovador: de acordo com Moisés (1976), Rui Queimado era um trovador dos fins do século XIII e início do século XIV. Ele teria composto uma cantiga na qual dizia morrer de amor por “Saneta Maria”, alguém que o ignorava:

Rui Queimado morreu con amor Em sus cantares, par Saneta Maria,


Por ua dona que gran bem queria, E, por se meter por mais trovador. Porque lh’ela non quis [o] ben fazer, Fez-s’el em seus cantares morrer, Mas ressurgiu ao tercer dia! Esto fêz el por ua sa senhor Que quer gran bem, e mais vos em diria: Porque que cuida que faz i maestria Enos cantares que fêz a sabor De morrer i e desi d’ar viver; Esto faz ele que x’o podo fazer, Mas outr’omen per ren non [n] faria. E non há já de sa morte pavor, Senon sa morte mais la temeria, Mas sabede ben, per sa sabedoria, Que viverá, dês quando morto fôr, E faz [s’] en seu cantar morte prender, Desi a viver: vêde que poder Que lhi Deus deu, mas que non cuidaria. E se mi Deus a mim desse poder, Qual oi’el há, pois morrer di viver, Jamais morte nunca temeria. (BURGALÊS, Pêro Garcia. In: MOISÉS, Massaud.1976, p. 29-30)

Na última estrofe da cantiga acima, Pêro Garcia, em tom de deboche, diz que, se Deus lhe desse o poder de morrer e permanecer vivo, como Rui Queimado em seus cantares, jamais temeria a morte. Pêro Garcia não critica agressivamente a Rui Queimado, mas usa uma estratégia interessantíssima: sua sátira é voltada para a construção poética do adversário. De certo modo, trata-se de um jogo de sutilezas apresentado para indiretamente zombar do outro trovador. Esse tipo de estratégia possibilitou ao Trovadorismo português uma versatilidade poética em que não se cantava apenas o amor, pois a poesia também passou a ser usada para satirizar, criticar, escarnecer, xingar e zombar, seja de forma perspicaz ou sem rodeios.

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A LIRA MALDIZENTE NA POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS

Essa lira maldizente reverberou-se mais tarde na poesia barroca do Baiano Gregório de Matos. O poeta ficou conhecido em sua época como “Boca do inferno”: atributo que não lhe veio por acaso. Depois de vir de Lisboa (onde estudou) para o Brasil o poeta “espicaçou o vezo de satirizar os desafetos pessoais e políticos, motivo de sua deportação para Angola de onde voltou, um ano antes de morrer, indo parar em Recife, que foi sua última morada” (BOSI, 1994, p. 37). Sua poesia era petulante e seus desafetos pessoais e políticos eram alvos de seus “dardos inflamados”, isto é, de seus versos carregados de crítica, sátira e zombaria. Gregório maldizia a quem desejava e o que lhe incomodava, até mesmo com humor. Não economizava em suas críticas e foi assim que seus versos pretendiam atingir não somente uma pessoa em particular, mas principalmente a sociedade conforme relata Veríssimo:

178 Rebelou-se, fazendo-se ao mesmo tempo o flagelo e o divertimento dos seus concidadãos, o “boca do inferno”, como é de tradição o alcunhavam. Não se limitava a versejar por sua conta, se não que fazia versos para outros. Como se de fato quem satíricos e malédicos mais e melhor os fazia, atribuíam-lhe quantos neste gênero apareciam de autoria desconhecida (VERÍSSIMO, 1963, p. 80).

Os versos malédicos de Gregório se tornaram características peculiares de sua poética. Seus poemas poderiam ser encarados como venenosos e peçonhentos, mas traziam consigo a ousadia de dizer o que para muitos não era agradável ler ou ouvir. Um dos seus sonetos mais famosos foi o poema “Triste Bahia”. Nele, Gregório de Matos critica a rendição do estado da Bahia à prática mercantil. Bosi explica que: Gregório de Matos moteja aqueles senhores de engenho que, já mestiçados de português e tupi presumiam igualhar-se em prosápia com a velha nobreza branca que formaria o “antigo estado” da Bahia. E é com os olhos de culpa que o poeta vê o novo mercador lusitano e os associados deste na Colônia ávidos de lucro e interessados em trocar por ninharias o ouro doce das moendas. No forte e bem travado soneto “Triste Bahia”, Gregório de Matos se identifica com sua terra espoliada pelo negociante de fora, o “sagaz Brichote”, e impreca a Deus que faça tornar o velho tempo de austeridade e de contensão (BOSI, 1994, p. 38).


Nesse soneto, o poeta não faz uma simples queixa: era a sua terra natal que ele via sendo explorada, que dava o que tinha de melhor e recebia ninharias em troca de suas riquezas. E foi essa situação desfavorável que lhe impulsionou a escrever “Triste Bahia”:

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. Oh se quisera Deus que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! (MATOS, Gregório de. Triste Bahia. In: BOSI, Alfredo. 1994, p. 38)

Gregório de Matos expressa nesse soneto o seu inconformismo com a condição da Bahia que sofria as mazelas da prática mercantil. O poeta descreve uma Bahia outrora rica, mas que se tornou pobre. Pobreza tal constata que a viu “dessemelhante de seu antigo estado”. Mas esse soneto não se resume apenas a um lamento e desgosto do poeta. Há também uma crítica, motejo, denúncia contra aqueles que se privilegiam com os negócios e trocas e não fazem caso do processo de decadência da Bahia. O poeta moteja a postura dos senhores de engenho por tratarem a Bahia com indiferença: utiliza um tom antitético de um antigo estado rico e de um atual estado pobre para responsabilizar os senhores de engenho e os mercadores pela realidade pouco produtiva da Colônia. Gregório denuncia essa “Bahia abelhuda” que aceita ninharias do “sagaz Brichote” e que julga estar fazendo um bom negócio quando na verdade está se rebaixando da condição

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de riqueza à de pobreza. Gregório de Matos estava atento aos detalhes (característica forte do Barroco) e não se retraía para falar daquilo que lhe indignava. Em sua poesia satírica, Gregório de Matos assemelha-se muito à lira maldizente das cantigas de escárnio e de maldizer dos trovadores portugueses. Assim como no Trovadorismo, o poeta dedicou muito de seus poemas às críticas pessoais, individualizadas, mas, em “Triste Bahia”, ele transpassa essa linha da queixa pessoal e engendra nesse soneto a crítica social. Observa-se que os aspectos de zombaria, escárnio e maledicência transportaram-se ao longo do tempo do Trovadorismo para o Barroco, entretanto, a crítica passou a ser feita não só de forma direta ou indireta, mas também se transferiu para a esfera social indo muito além de uma queixa.

A “TRISTE BAHIA” DE CAETANO VELOSO

180 A poesia contemporânea também recebeu forte influência dessa lira maldizente. Caetano Veloso trouxe, no Tropicalismo, mais uma vez, a união de poesia e sátira. Em tempos de Ditadura, Caetano Veloso viu-se em exílio: semelhante a Gregório de Matos. O cantor utilizava a música para expressar contestação frente à política ditatorial de sua época. Alguns versos que o cantor incorporou ao soneto de Gregório para musicá-lo podem ser vistos como uma maneira de o poeta expressar seu desconsolo e sua revolta diante da dura realidade que o Brasil enfrentava: Os acontecimentos políticos que se seguiram ao lançamento de Tropicalia ou Panis et Circensis redundariam na prisão e exílio de Caetano e Gil, considerados pelos militares “perigosos para a segurança nacional”. A temporada londrina não significaria, contudo, um hiato: ambos os músicos continuariam a compor e a gravar. Caetano lançou em 1971 um disco com canções compostas em inglês (dentre as quais “London London”, a sua “Canção do Exílio”) e, em seguida, o LP Transa (em que musicou o poema “Triste Bahia”, de Gregório de Matos). Em ambos, o tom de desconsolo pelo afastamento do Brasil é evidente (MELLER, 2006, p. 144).

Caetano critica, delata, à sua maneira, a repressão militar. O fato de estar longe de seu país e dos respectivos acontecimentos políticos e sociais não significou que ele estivesse


alheio. Caetano traz de volta a poesia de Gregório de Matos para denunciar não só uma triste Bahia, mas um triste Brasil. Sentia-se cansado de tanto horror e intolerância ao ver seus ideais censurados. O cantor, também baiano, musicou o soneto “53Triste Bahia” de Gregório de Matos: Triste Bahia, oh, quão dessemelhante… Estás e estou do nosso antigo estado Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado Rico te vejo eu, já tu a mim abundante Triste Bahia, oh, quão dessemelhante A ti tocou-te a máquina mercante Quem tua larga barra tem entrado A mim vem me trocando e tem trocado Tanto negócio e tanto negociante Triste, oh, quão dessemelhante, triste Pastinha já foi à África Pastinha já foi à África Pra mostrar capoeira do Brasil Eu já vivo tão cansado De viver aqui na Terra Minha mãe, eu vou pra lua Eu mais a minha mulher Vamos fazer um ranchinho Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua E seja o que Deus quiser Triste, oh, quão dessemelhante ê, ô, galo canta O galo cantou, camará ê, cocorocô, ê cocorocô, camará ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará Bandeira branca enfiada em pau forte… Afoxé leî, leî, leô… Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte… O vapor da cachoeira não navega mais no mar… Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante Maria pé no mato é hora… Arriba a saia e vamo-nos embora… Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora… A letra da canção de Caetano Veloso foi extraída do site letras.mus.br. (Cf. Referências Bibliográficas). 53

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Oh, virgem mãe puríssima… Bandeira branca enfiada em pau forte… Trago no peito a estrela do norte Bandeira branca enfiada em pau forte… Bandeira… Considerado um subversivo, em exílio, talvez fosse ele (Caetano) a pessoa de “pé pequeno” obrigado a ir embora e “ir pra lua” seria uma tentativa de fuga da situação difícil de estar na terra e não poder estar em seu lugar de origem. “Bandeira branca enfiada em pau forte” é uma metáfora que expressa o desejo do poeta de que a paz se restabeleça com firmeza. Esses versos vão além de uma lástima, pois criticam aqueles que faziam do Brasil o país da não liberdade, da repressão e do domínio dos poderosos sobre os fragilizados. Assim como Gregório, Caetano sentiu saudades de um antigo estado e lamenta o estado atual da política no Brasil. Musicar “Triste Bahia” relembrou a poesia cantada e instrumentada pelos trovadores e valer-se da sátira e da crítica envolvendo um contexto social vigente revigorou a poesia satírica (de raízes trovadorescas) de Gregório de Matos. O cantor Baiano fundiu Tropicalismo, Trovadorismo, Barroco e contemporaneidade sem deixar de posicionar-se como sujeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se perceber que a sátira praticada pelos poetas trovadores foi de grande valia não só para a literatura. Ela serviu para dar uma efetiva função político-social à poesia. É importante constatar que o ato de zombar, satirizar, ridicularizar, falar mal e escarnecer não são recursos utilizados na poesia por quem não sabe o que diz. Tais estratégias surgiram não apenas como um estilo literário, mas também como uma necessidade diante das mudanças sociais ao longo do tempo, em benefícios de uns e em detrimento de outros. Os poemas de Gregório de Matos mantiveram-se nos modelos tradicionais: sonetos, rimas, métricas, mas eles não se resumem ao que é esteticamente “belo”

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de se ler e ouvir, pois o poeta cumpre em seus versos sua função política de expor à sociedade aquilo que fere os princípios de uma nação que pretende ser justa. Também se evidenciou que a poesia foi, desde o Trovadorismo, um mecanismo significativo na construção de um sujeito que reclama a sua liberdade de expressão e isso também pode-se notar na música de protesto e lamento de Caetano Veloso, que reivindicou seus direitos incessantemente. Conter-se ou refrear-se de falar o que é preciso ser dito nem sempre é uma atitude plausível. Poemas como os de Gregório de Matos são engajados em causas, em defesa de alguém ou de algo, por isso encorajam pessoas a expressarem seus ideais. Compreende-se, então, porque a lira maldizente tem se reinventado e tem participação indispensável para a construção de uma sociedade que visa progredir.

183 REFERÊNCIAS ABDALA JR, Benjamin & PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura Portuguesa. 3 ed. São Paulo: Editora Ática, 1990. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 1994. MELLER, Lauro. O desafio do “Antropófago” Caetano Veloso. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/graphos/article/view/9320> Acesso em 24 de maio de 2014. MOISÉS, Massaud. A literatura Portuguêsa através dos textos. 7 ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1976. VELOSO, Caetano. Triste Bahia. Disponível veloso/423798/> Acesso em: 27 de maio de 2014.

em:

<http://letras.mus.br/caetano-

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. 4 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.


GREGÓRIO DE MATOS, POESIA LÍRICA E A IDENTIFICAÇÃO ENTRE OS OPOSTOS Gina Cristina Costa dos Santos (Graduação DLV- UERN) Joana Tamires Silveira Bezerra (Graduação DLV- UERN)

N'esta vida um soneto já ditei; Se d'esta agora escapo, nunca mais: Louvado seja Deus, que o acabei. Gregório de Matos

“Poesia muito mais rica, a do baiano Gregório de Matos Guerra (1623-1696), que interessa não só como documento da vida social dos Seiscentos, mas também pelo nível artístico que atingiu” (BOSI, 2001, p.41). Sem dúvida, as melhores produções da literatura barroca brasileira foram as de Gregório de Matos. Conhecido, na Bahia, como o “Boca do Inferno”, fez jus a essa nomeação devido às suas astutas críticas à sociedade de seu tempo. Sua poesia satírica não poupava um grupo social sequer, nem o clero, nem a aristocracia, nem mesmo as mulheres, segundo Abdala Júnior e Youssef Campeelli (1985) em Tempos da Literatura Brasileira. Araripe Júnior (1849, p. 389) afirma que Gregório de Matos possuía um “Pessimismo objetivo, alma maligna, caráter rancoroso, relaxado por temperamento e costumes”. Seus poemas seguiam os mais diversos estilos. Dentre eles destacam-se os textos satíricos e críticos ao meio social, por vezes vulgares, além da lírica amorosa ao lado da lírica sacra, que resultava de suas reflexões religiosas. Bosi afirma: Em toda a sua poesia o achincalhe e a denúncia encorpam-se e movem-se à força de jogos sonoros, de rimas burlescas, de uma sintaxe apertada e ardida, de um léxico incisivo, quando não retalhante; tudo o que dá ao estilo de Gregório de Matos uma verve não igualada em toda a história da sátira brasileira posterior (BOSI, 2001, p. 45). O artista assim situado é o poeta “responsável autoral por uma obra exuberante em sua pluralidade de criações, recriações e traduções poéticas em número tão elevado que somente um homem de gabinete com tempo para leitura seria capaz de elaborar

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e digno de se lhe atribuírem a autoria dos versos que trazem seu nome à contemporaneidade” (SANTOS, 2014, p. 12).

Escolhemos para este trabalho a poesia lírica de Gregório de Matos, mais precisamente, a sua lírica amorosa, composta baseada em Camões e Petrarca (ABDALA JÚNIOR; CAMPEDELLI, 1985) e voltada para o antagonismo presente nos sentimentos e nas emoções humanas. O platonismo é bem evidenciado em suas temáticas amorosas como algo puro, sublime e sempre relacionado à mulher branca. Por outro lado, é presente a sensualidade e o erotismo como representação da tropicalidade da mulher mulata para expressar o sentimentalismo brasileiro.. As nuances antitéticas, assim como a semelhança entre os pares de opostos, serão apresentados através do estudo do seguinte poema: “Aos afetos e lágrimas derramadas na ausência da Dama a quem queria bem” Ardor em firme coração nascido; Pranto por belos olhos derramado; Incêndio em mares de água disfarçado; Rio de neve em fogo convertidos. Tu, que em um peito abrasas escondido; Tu, que em um rosto corres desatado; Quando fogo, em cristais aprisionado; Quando cristal, em chamas derretido. Se és fogo, como passas brandamente? Se és neve, como queimas com porfia? Mas ai, que andou Amor em ti prudente! Pois para temperar a tirania, Como quis que aqui fosse a neve ardente, Permitiu parecesse a chama fria. (MATOS,1997, p. 218) Este soneto faz parte da produção lírico-amorosa de Gregório de Matos Guerra. Podese verificar que é estruturado por 14 versos decassílabos com rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD e versos regulares. De acordo com Norma Goldstein (1994, p. 57), “o soneto costuma conter uma

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reflexão sobre um tema ligado à vida humana”. Ele apresenta a forma fixa mais encontrada na literatura medieval, principalmente na poética camoniana. Na unidade dos 14 versos do poema, é possível perceber a unidade do conjunto de estrofes, além do tema – uma reflexão sobre as contradições do amor. Pode-se verificar um eu lírico em conflito dominado por sentimentos antitéticos. O poema pertence `a linha do cultismo, que foi característica da poesia barroca, “com construções obscuras e preciosistas” (ABDALA JÚNIOR; CAMPEDELLI, 1985, p. 23). Nas composições do cultismo, as rimas, métricas, ritmo e formas são indispensáveis e servem para enfatizar as representações poéticas e ideológicas com utilização exaustiva de figuras de linguagem e de pensamento. A valorização da imagem é com base na metáfora, focando nos detalhes. As figuras antitéticas e paradoxais, além de determinar a temática do poema, fundamentam as características barrocas, conforme explicita Abdala Júnior e Youssef Campedelli (1985, p. 22): “o Barroco procurava jogar com formas mais ambíguas. Fazia largo emprego das figuras de linguagem que indicassem conflitos, como a antítese.” Ou seja, a característica barroca mais evidente neste poema é o seu contraste, a identificação entre opostos. Logo no primeiro quarteto, percebemos o eu lírico em lamentação, vivenciando um duelo entre "paixão" (simbolizado através de imagens como "fogo" e “incêndio") e "dor" (simbolizado por "neve" e "água", remetendo às “lágrimas”). Nesse caso, percebemos que imagens e sons se mutuam poeticamente para o efeito sensorial presente nos versos: “Ardor em firme coração nascido;/Pranto por belos olhos derramado”. Nos versos seguintes, “Incêndio em mares d’água disfarçado/ Rio de neve em fogo convertido”, além da hipérbole evidente em “mares d’água”, podemos destacar o processo de identificação entre opostos através do jogo de semelhança, como ressalta Alfredo: A paisagem e os objetos afetam-no pela multiplicidade dos seus aspectos mais aparentes, logo cambiantes, com os quais a imaginação estética vai compondo a obra em função de analogias sensoriais. O orvalho e a pele clara podem valer pelo cristal; o sangue pelo cravo ou pelo rubi; o espelho pela água pura ou o metal polido. No mundo dos afetos, a “semelhança” envolve os contrastes, de modo a camuflar toda percepção nítida das diferenças objetivas (BOSI, 2001, p. 35).

O eu-lírico porta um subjetivismo emocional como uma espécie de fuga para o mundo interior como autodefesa contra a solidão. Salete de Almeida Cara (1990, p. 30), descrevendo

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a poesia lírico-amorosa, afirma: “por esse caminho a poesia romântica pode correr o risco de transformar-se em mero balbucio emotivo, sufocado na esfera pessoal, e o texto será expressão dessa emotividade”. Por esse motivo, Antonio Candido em seu Estudo Analítico do poema (1996, p. 17) afirma: “num texto literário há essencialmente um aspecto que é tradução de sentido e outro que é tradução do seu conteúdo humano, da mensagem através da qual um escritor se exprime, exprimindo uma visão do mundo e do homem ”. Ou seja, o eu lírico passa a descrever o seu sentimento conflitante, conforme a sua visão de mundo, para depois investigá-lo racionalmente. A relação inconstante do eu lírico com a dama fica ainda mais nítida com o segundo quarteto: “Tu, que em um peito abrasas escondido;/Tu, que em um rosto corres desatado;/Quando fogo, em cristais aprisionado;/ Quando cristal, em chamas derretido”. O trecho evidencia uma reação causada pela donzela, ora em uma demonstração paradoxal de que a dor causada pela amada é uma brasa escondida, (alusão aos versos camonianos “amor é fogo que arde sem se ver”); ora utilizando imagens semelhantes para a relação entre chamas derretidas e lágrimas derramadas pelo eu lírico. Notemos o paradoxo contido nessas expressões, principalmente um tipo de antítese chamado “Quiasmo”, o cruzamento de dois grupos sintáticos paralelos, de forma que o grupo de vocábulos do primeiro se repete no segundo em ordem inversa: “Quando fogo(A), em cristais(B) aprisionado/ Quando cristal(B), em chamas(A) derretido”. Com isso, o eu lírico declara a contradição dessa paixão que lhe consome, atentando para o jogo com a palavra em busca da tentativa de pacificar ou ao menos desvendar as antinomias. Esse sentimento é extremamente baseado na perspectiva lírica: A crise que se anuncia como uma questão de foro íntimo, lamentando a profunda solidão do ‘eu’. Esse ‘eu’, assim como o próprio artista na sociedade, pretende manter seu lugar assegurado, e o faz através da valorização do sentimento e da emoção individual (CARA, 1990, p. 30).

No terceto que se segue, o eu lírico retrata o engano entre a realidade e o jogo amoroso: “Se és fogo, como passas brandamente? /Se és neve, como queimas com porfia? / Mas ai, que andou Amor em ti prudente!”. Os versos atentam para a natureza contraditória deste amor. Vale ressaltar ainda o diálogo do eu lírico consigo mesmo, figurando em um questionamento com o “Amor”. A primeira letra em maiúsculo indica personificação. Essa

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ideia de diálogo com um interlocutor sobre o possível critério de consolo parece impossível, tendo em vista o fato do sujeito lírico, muito embora se dirija a alguém, não permiti que alguém, além de si próprio, responda aos seus questionamentos. Este acontecimento é destacado por Salete de Almeida Cara da seguinte forma: São as sugestões fônicas que amarram a paisagem no interior de um clima de desejo do sujeito lírico: pela extrema unidade e coesão não permitem a intromissão de nenhum outro ‘eu’, mas apenas o desdobramento, num momento extremo, desse ‘eu’ num ‘tu’, interlocutor que é apenas uma inútil consolação de si mesmo (CARA, 1990, p. 35).

Conforme se verifica no último verso do primeiro terceto e no segundo terceto (última estrofe do poema), o eu-lírico abstém-se do seu sentimentalismo exagerado e explicita que a prudência entrou em cena para suavizar a tirania do Amor: “Pois para temperar a tirania, / Como quis que aqui fosse a neve ardente, / Permitiu parecesse a chama fria”. Destaca-se, nesta estrofe, a presença do Oximoro – figura de linguagem que une dois conceitos opostos em uma expressão, dando liberdade para um terceiro conceito-, “neve ardente” e “chama fria”. Assim, “incêndio”, “fogo” e “chamas” exemplificam, no soneto, a paixão ardente; “mares”, “rio” e “neve”, lágrimas derramadas pelo eu lírico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A poesia lírico-amorosa de Gregório de Matos é construída em torno de contradições e pares de opostos, utilizando figuras de linguagens como oximoros, antíteses, paradoxos que reforçam essas contradições e indicam o estilo barroco. O processo de identificação opera nos jogos de palavras, nos trocadilhos e nas antinomias destacadas no texto analisado como representação de um eu-lírico em conflito consigo mesmo, com o amor e com o mundo que o rodeia. Ele utiliza imagens que se fundem, gerando sentimentos antagônicos, característicos do Barroco. O soneto em análise está marcado pela predominância do aspecto Cultista ou Gongórico, pelo jogo de palavras e o predomínio do elemento sensorial. Gregório de Matos

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retoma um tema clássico: os paradoxos desencadeados pelo amor e os seus desvendamentos no texto literário.

REFERÊNCIAS

ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Gregório de Matos. Rio, 1849 in: Obra Crítica. Rio, MEC, 1960, vol.II. ABDALA JÚNIOR, Benjamim; YOUSSEF CAMPEDELLI, Samira. Tempos da Literatura Brasileira. São Paulo: Ática, 1985. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 40. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. CANDIDO, Antonio. O Estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações /FFLCH/USP, 1996. CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 8.ed. São Paulo: Ática, 1994. MATOS, Gregório de. In: WISNIK, José Miguel (sel., intr. e notas). Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix. 1997, p. 218. SANTOS, Ciro Soares dos. “Gregório de Matos vai ao cinema: duas antologias e uma narrativa cinematográfica” in: PRAZERES, Armando dos. Literatura e cinema: Gregório de Matos, sor Juana Inés de la Cruz, Haroldo de Campos/ Armando dos Prazeres, Ciro Soares dos Santos, Leila Maria de Araújo Tabosa- Natal: Armando Sérgio dos Prazeres, 2014.

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B- Exposição de BANNER'S realizada pelos estudantes da Graduação da Faculdade de Letras e Artes (DLV e CEEL)


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C - Catálogo da Exposição de pintura do artista Isaías Medeiros "BARROCO TROPICAL: UNA FIESTA DE COLORES" Curadoria e catálogo: Leila Tabosa (UERN) Coordenação da Exposição: Pedro Adrião (UERN)


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